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ANÁLISE PRAGMÁTICA DA DECLARAÇÃO SOBRE PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO

No dia 22 de julho, foi publicada a Medida Provisória nº 685/15, que instituiu o Programa de Redução de Litígios Tributários – PRORELIT; autorizou o Poder Executivo a realizar a atualização monetária de taxas relacionadas ao exercício do poder de polícia e a serviços públicos no âmbito federal; e, por fim, criou a obrigatoriedade de entrega de declarações sobre “planejamento tributário” (“DPT”) realizado pelos contribuintes. Neste breve artigo, indicaremos, objetivamente, as características dessa polêmica declaração e, de forma pragmática, quais os possíveis desdobramentos dela decorrentes.

É importante registrar, desde já, que a DPT ainda depende de regulamentação pela RFB para que atinja sua eficácia plena, e, ainda, da conversão de seu texto em lei, o que – espera-se – não ocorra (pelo menos, não em seu texto original). Também deve ser dito que a matéria, embora restrita a curtos artigos, é merecedora de trabalho de fôlego da doutrina, permeado de análise teórica fundamental e indispensável. Não é esse, entretanto, o objetivo do presente artigo, que se dividirá em dois blocos: (i) indicação dos elementos previstos na MP a respeito da DPT e (ii) apontamentos críticos ao seu texto.

Entendendo o que é a famigerada declaração
Em linhas gerais, o contribuinte deverá declarar à RFB o conjunto de operações realizadas no ano-calendário anterior que envolva atos ou negócios jurídicos que acarretem supressão, redução ou diferimento de tributo, até 30 de setembro de cada ano, quando (i) os atos ou negócios jurídicos praticados não possuírem razões extratributárias relevantes; (ii) a forma adotada não for usual, utilizar-se de negócio jurídico indireto ou contiver cláusula que desnature, ainda que parcialmente, os efeitos de um contrato típico; ou (iii) tratar de atos ou negócios jurídicos específicos previstos em ato da Secretaria da Receita Federal do Brasil.

Para cada conjunto de operações executadas de forma interligada, o contribuinte apresentará uma DPT. Não há definição, na MP, do que sejam operações interligadas, tarefa que foi delegada ao Poder Executivo. Determina, ainda, que a DPT pode relatar atos ou negócios jurídicos ainda não ocorridos, situação em que será tratada como consulta sobre a legislação tributária, ou seja, deverá impedir a aplicação de multa de mora e de juros de mora, relativamente à matéria consultada, a partir da data de sua protocolização até o 30º dia seguinte ao da ciência a respeito da solução da consulta.

Se a RFB não reconhecer, para fins tributários, as operações declaradas, o sujeito passivo será intimado a recolher ou a parcelar, no prazo de 30 dias, os tributos devidos acrescidos apenas de juros de mora, com exceção de operações declaradas que já estejam sob fiscalização quando da apresentação da declaração.

A DPT, inclusive a retificadora ou a complementar, será ineficaz quando: (i) apresentada por quem não for o sujeito passivo das obrigações tributárias eventualmente resultantes das operações referentes aos atos ou negócios jurídicos declarados, (ii) omissa em relação a dados essenciais para a compreensão do ato ou negócio jurídico; (iii) contiver hipótese de falsidade material ou ideológica; e (iv) envolver interposição fraudulenta de pessoas. A MP dispõe, ainda, que a forma, o prazo e as condições de apresentação da declaração, inclusive hipóteses de dispensa da obrigação, serão disciplinadas pela RFB.

Por fim, e o mais surpreendente, a MP prevê que a falta de apresentação da DPT ou a sua ineficácia caracterizará omissão dolosa do sujeito passivo com intuito de sonegação ou fraude e os tributos devidos serão cobrados acrescidos de juros de mora e da multa qualificada.

Apontamentos críticos
Na exposição de motivos, curiosamente, a proposta de revelação de estratégias de planejamento tributário é sustentada com o objetivo de “segurança jurídica no ambiente de negócios do país e gerar economia de recursos públicos em litígios desnecessários e demorados”. Paradoxal, no mínimo, logo na primeira afirmação, já que, como é sabido, litígios desnecessários e demorados não decorrem, absolutamente, do que se convencionou denominar – de modo pejorativo – de “planejamento tributário”. Em outras palavras, a interpretação da legislação tributária, a complexidade do sistema e a liberdade assegurada às atividades empresariais são exercícios legítimos de direitos constitucionalmente assegurados.

Não defendemos aqui a liberdade absoluta que se funda em abusos que devem, de fato, ser combatidos, mas a ideia de que interpretações antagônicas da legislação não podem ser objeto de repressão indiscriminada e delegada ao sabor lotérico do juízo das autoridades fiscais. A legislação em vigor já oferece mecanismos para o combate de abusos (artigo 149, inciso VII, do CTN – quando houver dolo, fraude ou simulação). Para não ficarmos no campo teórico, quase que filosófico, do maniqueísmo (fisco x contribuinte; bem x mal) que parece se instaurar cada vez mais, analisemos cada detalhe da DPT.

Valer-se da expressão “atos ou negócios jurídicos que acarretem supressão, redução ou diferimento de tributo”, para identificar a situação que torna necessária a apresentação da DPT, não parece ter sido fruto do acaso. Basta ver o que a legislação tipifica como fraude e crime contra a ordem tributária (artigo 72 da Lei nº 4.502/64 e artigo 1º da Lei nº 8.137/90, respectivamente) para identificar que os verbos empregados representam, potencialmente, a materialidade de tais atos ilícitos. Admita-se, apenas por hipótese, que o contribuinte tenha, de fato, praticado atos fraudulentos. Seria sustentável a obrigação de declará-los ao fisco?

Parece-nos que não passaria nem pelo teste mais superficial de constitucionalidade. Em emblemático julgado, a Ministra Laurita Vaz, do Superior Tribunal de Justiça, brilhantemente, citando o não menos respeitável Ministro Sepúlveda Pertence, do Supremo Tribunal Federal, afirmou (com grifos originais) que “o direito do investigado ou do acusado de não produzir prova contra si foi positivado pela Constituição da República no rol petrificado dos direitos e garantias individuais (art. 5.º, inciso LXIII). É essa a norma que garante status constitucional ao princípio do “Nemo tenetur se detegere ” (STF, HC 80.949/RJ, Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, 1.ª Turma, DJ de 14/12/2001), segundo o qual, repita-se, ninguém é obrigado a produzir quaisquer provas contra si.”.

Embora isso, por si só, já bastasse para concluir que a MP merece severos reparos com relação à DPT, outros pontos merecem críticas igualmente consistentes. Além da presença de supressão, redução ou diferimento de tributos, exige-se determinado complemento ao verbo, embutido em três hipóteses distintas, todas absolutamente inquietantes.

A primeira delas diz respeito a “atos ou negócios jurídicos praticados não possuírem razões extratributárias relevantes”. Razão carrega, em sua etimologia, opinião, julgamento. Seguramente, o ordenamento jurídico-tributário não convive com subjetivismo deste nível. E, neste ponto, encontra-se um obstáculo prático instransponível: não há como mensurar ou objetivar a compreensão humana no exercício de seu julgamento íntimo: o que representa razão extratributária para alguns pode, simplesmente, não representar para outros.

Preocupa também o emprego do adjetivo “relevante”. O que deve ser considerado relevante?

Não se trata de mera preocupação retórica. A MP não define e, supostamente, a RFB deverá indicar o seu entendimento a respeito de “razão extratributária relevante” em futura regulamentação. Contudo, diversas operações questionadas pelo fisco (o mesmo que definirá o que é razão extratributária relevante), com acusação de simulação ou fraude, foram validadas nas disputas administrativas.

Exemplo simples disso é a segregação de atividades (indústria x comércio, com pessoas jurídicas distintas e existentes de fato e de direito, com desempenho normal das atividades empresariais) na qual, em última análise, a economia tributária representa o único objetivo. Se não há qualquer vício (dolo, fraude ou simulação) na realização dos atos e negócios jurídicos, significa que o contribuinte tenha que percorrer, necessariamente, o caminho mais oneroso do ponto de vista fiscal? Obviamente, a resposta é negativa.

Diga-se de passagem, por oportuno, que “razão extratributária” surgiu exatamente na jurisprudência administrativa fiscal (não é critério legal). Ocorre que, mesmo no âmbito dos julgamentos, operações complexas estão longe de terem juízos de valor uniformes. Aliás, observa-se que situações praticamente idênticas são autuadas de forma diversa pelas autoridades fiscais. Ora com a pecha de simulação; ora como fraudulentas; ou, simplesmente, como mera falta de recolhimento de tributos. Por vezes, as autuações cancelas; outras, mantidas. Por unanimidade ou voto de qualidade (desempate).

Dando mais um passo, a segunda hipótese de apresentação da DPT se configura quando a forma adotada não for usual, utilizar-se de negócio jurídico indireto ou contiver cláusula que desnature, ainda que parcialmente, os efeitos de um contrato típico. Novamente, a jurisprudência administrativa é o berço da qualificação prevista na MP.

Contudo, na doutrina (e nos próprios julgados do início da década passada), a definição de “negócio jurídico indireto” é extremamente controvertida. Para além disso, e agora com enfoque mais pragmático, forma não usual e contrato típico são figuras absolutamente relativas no cenário empresarial contemporâneo. Na atividade fiscalizatória, não raras vezes, o parâmetro adotado para aferição de usualidade (ou normalidade) de determinados negócios praticados é a realidade de pequenas e médias empresas. Sofisticação e complexidade não podem ser confundidas com atipicidade ou anormalidade. A régua não pode ser a mesma para medir situações naturalmente desproporcionais.

A terceira - e última hipótese - se configurará quando os atos praticados corresponderem aqueles especificamente previstos pela RFB. Parece-nos que essa previsão tem inspiração na prática da administração tributária americana, que lista determinadas operações que devem ser objeto de declaração ao fisco. Ainda que com certos temperamentos, a diferença entre os modelos jurídicos adotados pelo Brasil (Civil Law) e pelos EUA (Common Law) justificam, em grande medida, o expediente que lá se adota.

Entretanto, em vista da legalidade (tributária e penal), não nos parece viável que a RFB indique quais operações deverão ser declaradas sob pena de a conduta do contribuinte, por mera falta de entrega da DPT, ser considerada fraudulenta ou com o objetivo de sonegação, com exigência do tributo e penalidade qualificada. Somente pode haver exigência fiscal nestes moldes mediante lançamento tributário que demonstre e comprove a ocorrência de fraude/sonegação, não bastando a mera falta de entrega da DPT.

Não esqueçamos que tributo não corresponde, por definição legal, à sanção de ato ilícito, de tal modo que a falta de apresentação da DPT – ou a sua ineficácia – jamais pode ser equiparada à fraude tributária e, principalmente, dar causa à exigência de tributos.

Embora o momento econômico atual imponha ajustes fiscais e o aumento de arrecadação, a DPT não se revela como o caminho ideal para atingir esses propósitos. A julgar pela pretensão inserida na MP, seria mais coerente que fossem editadas normas especificamente voltadas a determinadas operações que se pretenda controlar (a exemplo das regras de vedação à compensação de prejuízos fiscais; de ágio entre partes dependentes; de subcapitalização e preços de transferência; de dedutibilidade de perdas entre partes relacionadas; de regras de distribuição disfarçada de lucros; de dedutibilidade de royalties etc).

Certamente, outros pontos relevantes deixaram de ser abordados neste breve artigo, mas esperamos ter contribuído para o debate frutífero sobre a DPT.


Diego Aubin Miguita
é advogado do Vaz, Barreto, Shingaki e Oioli Advogados. Formado pela PUC/SP. MBA em Gestão Tributária e extensão em IFRS pela FIPECAFI/FEA/USP. Mestrando em Contabilidade pela FECAP e pós-graduando em Direito Tributário Internacional pelo IBDT. Membro do IBDT, ABDF, IFA e da comissão do contencioso administrativo tributário da OAB/SP.
dmiguita@vbso.com.br


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