Ativismo

MARLI & EU: REMUNERAÇÃO DE EXECUTIVOS

A Marli é a mulher mais importante da minha vida. Eu a vejo apenas uma vez por semana. Penso nela poucas vezes. Marli pode fazer o que quiser. Marli é casada e muito feliz no casamento. Mas Marli é a mulher mais importante da minha vida.

Quando ela chega toda a terça-feira é uma alegria. Ela trabalha enquanto eu trabalho. Ela pode ouvir o programa do Pedro Augusto no rádio e do Padre Marcelo Rossi benzendo águas. Ela gosta. Isso no meu Grundig tipo “Pantaleão”, aos uivos, que tem até manivela e ondas curtas. Ela gosta do seu Cruzeiro e do seu Botafogo. Marli é a mulher mais importante da minha vida. Trocamos pouquíssimas confidências, falamos o necessário. Apesar de vê-la muito pouco, eu confio mais nela do que em qualquer outra mulher é óbvio, pois não sou bobo. Apesar do pouco contato, eu pago o INSS da Marli. Algo que a lei disse que não seria necessário, no caso. Mas eu julguei que não seria ético e justo não pagar. Eu sei que se eu me estrepar na vida, eu tenho um cantinho lá com a Marli e sua família onde me será servido um bom feijão mineiro da roça. Isso perto de Niterói.

E pago a Marli pelos serviços que me presta. Ela é uma profissional exemplar. Se pudesse daria tudo pra Marli ficar mais feliz ainda. Junto todas as moedas que me sobram e uso como bonificação mensal de “renda variável”. Sai muitas vezes um bom percentual do salário fixo. Ela é maravilhosa profissional e tem um dedo de “interior designer” que deixaria seguidores do feng shui de cabelo em pé. Geralmente se saio a reuniões de negócios, posso voltar ao meu modestíssimo escritório-residência que parece um “studio” novaiorquino no tamanho, e encontrar móveis em locais inusitados e estantes em novas posições, coisas do gênero. Mas nunca nada fica como está. Eu sei o quanto a Marli ganha por mês. Eu sei o quanto ela me custa. E rezamos juntos para que Deus me ajude e assim eu posso ajudá-la enquanto eu respirar. Agora arrumei outra pessoa, um homem e sua mulher, fazendo um papel similar em outro local e em outras circunstâncias. Espero o mesmo. Vamos criando responsabilidades trabalhistas. Sei exatamente o quanto me custa essa pessoa (física). E as novas. Seria uma temeridade não saber isso.

Eu tenho, por questões profissionais, uma grande admiração por Armínio Fraga. Confesso que não conheci ainda pessoalmente. Mas faz parte do meus ídolos como Fish do Marillion, Mark Leyner, Sérgio Dias, Joni Mitchell, Wendy Wasserstein, William James, Santo Antônio, a própria Marli, Frei Clemente, Frei Floriano, Lulucha, A Gorda Cigana, meus familiares, amigos, filhas, a “personal”, que eu tenho só “de mente” (ih, ficou maneiro!) e não “de corpo”. Tenho duas “personal” algumas vezes. E por aí vai.

O Armínio é gestor de recursos agora, mas suas credenciais dispensam comentários, mesmo que o sujeito comungue ou não de sua cartilha. E digo mais, eu comungo direto. Ele é casca grossa. Sua preocupação com as boas práticas de governança em nossas empresas é sabida e ele sempre lutou a boa luta. Além de ser um grande professor, mente brilhante, “sang froid no pega pra capá”, na mesa de operações, handicap baixo no golfe, tudo de bom.

Mas, em um tema não concordo. Alguma coisa está fora da ordem, da nova ordem mundial. O Armínio Fraga, a quem devemos tanto nesse país, se pronunciou em relação ao que a CVM quer fazer com a divulgação de remuneração de executivos e conselheiros na Instrução 202, sendo revista, e que prevê milhares de mudanças em relação ao que as companhias abertas devem divulgar. E falou de um ponto crítico.

Ele, como outras pessoas que respeito, se posiciona contra a divulgação detalhada da remuneração de conselheiros e executivos de companhias abertas. Alega(m) que o motivo seria o de segurança no nosso país. Pois a pessoa pode correr riscos. Como diríamos em inglês, “fair enough...” Podemos debater tal preocupação.

Já vi vários argumentos contra ou a favor da divulgação. Uns apontam que na África do Sul, com o King Report sacramentado, a controvérsia acabou e o país tem um perfil similar ao nosso em termos sócio-econômicos. Outros dizem que os bandidos profissionais sabem quem são as celebridades e que não faria a menor diferença a divulgação ou não, pois sabem quem anda de carro blindado. Furto de inteligência e não violência, maturado e decantado.

Mas enfim. Eu acho que estamos perdendo completamente o foco. Esses pontos são firulas. Se vai vazar para o povaréu, who (s)cares? Agora, o que é absolutamente inconcebível é que eu, como acionista de uma companhia aberta, não saiba o quanto ganha quem trabalha na minha empreitada. O cara trabalha para mim, e, em última (falta de) análise, eu não sei o quanto pago??????? Velho problema conceitual de sociedades ibéricas onde não sabemos a diferença entre agência e titularidade. Coisa pra causídico.

E vamos descambar logo para o politicamente incorreto. Vocês acham que o pacato cidadão que mora na comunidade vai entrar numa Lan House pra ver um proxy statementpostado na CVM e tirar conclusões sobre quem é mais apetitoso? Não tem nem o endereço do cara... Chega a ser risível. Eu já vejo o pagode do Benedito, regado a Skol, com discussões sobre o vesting period de opções com ações restritas ou não qualificadas ou phantom options. Muito plausível. Dá até partido alto com rima... Ou então o Funk da Opção.

A Marli é CEO do meu escritório-residência. Eu sou acionista na empreitada da minha vida e imagina se eu não soubesse o quanto pago a Marli por mês???? Não seria esquisito? Os executivos das maiores companhias do Ibovespa, caso eu tenha ações das mesmas (e as tenho) são iguais a Marli para mim. Aliás, a Marli é muito mais importante. Como frisei antes. Mas eu tenho que saber o quanto estou pagando para esses caras. Se vai cair na boca do povo é outra coisa. Mas eu como acionista quero saber. Risco e retorno. Quer ser milionário no Terceiro Mundo (e não são) o problema não é do acionista. Este gera empregos e é capitalista nato. Muitas vezes contra sua vontade ideológica como veremos adiante. Mas do capitalismo brutal não se escapa. Nem por trás da cortina da CVM.

E então vamos levar o argumento não ao extremo, mas ao desdobramento normal. Ora o maior investidor em companhias abertas de porte no país é o governo, via Tesouro ou BNDES. Então o acionista final (beneficial owner) é o povo brasileiro. Ergo, ele tem que saber o quanto ganha a cúpula das companhias onde o governo mete o bedelho. Estamos todos pagando o salário da turma e não saber quanto sai a fatura é uma irresponsabilidade. Nos EUA chegou a um ponto que até o Obama teve que dar pitaco.

Não tem nada de esquerda ou direita, segurança ou insegurança, ativismo ou “passivismo”. Falamos de transparência e prestação de contas. Cobramos do Congresso, e a comissão que regula o mercado não pode exigir tal informação para os sócios das empreitadas listadas em Bolsa???? Trata-se de ferro na boneca. Algo que a lógica trata de dar o touché final. Ora, se não sei quanto pago aos cabras, estaria negligenciando meu dever fiduciário como acionista, institucional ou não. Fere o espírito da lei não ter o dever de fidúcia cumprido e esse é o mais básico de todos. Como não saber sobre as despesas da companhia???? E ainda mais em se tratando de renda variável com ações, que gera diluição???? Seria uma loucura não divulgar os emolumentos, ainda mais no clima atual.

Então o Armínio, (não fiquei íntimo, falo da persona e não da pessoa) e outros preocupados com o tema, deveria parar e pensar nisso. E olha que já me prolonguei tanto que nem falei sobre os relatórios dos gringos em relação ao tema. Eles são completamente ativistas e não querem nem saber do escamoteamento de tais informações. Essa é uma briga que eu não compro mesmo. Pois se os caras levantarem a tenda da Bovespa e partir com a mirra e incenso, vai ser um auê. Eu teria que ir embora com eles. E aí? Como fica a Marli?

Mais uma decepção afetiva. Como dizia. A Marli é a mulher mais importante de minha vida. Isso é relevante para a discussão da reforma da 202. Uma coisa meio piegas e Saint-Exupery mesmo. Somos responsáveis pelo que cativamos. E eu quero saber quanto está saindo a hora dos malandros que estão lá tocando meus negócios. Acho que, no fim das contas, se ele ver por esse ângulo, o da Marli, a mulher mais importante da minha vida, e por ser brasileira, sócia nessa empreitada toda, o Armínio – e os outros - também vão querer saber.

Fernando Carneiro
é managing director da Ipreo - e escreve no Blog “Sociedade Anônima” do Globo On-line (http://oglobo.globo.com/blogs/sociedadeanonima), de onde foi extraído este “post” publicado em 06/05/2009.
fernando.carneiro@ipreo.com


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