Educação Financeira

O RISCO DA INTELIGÊNCIA

É comum ver pais felizes quando seus filhos são chamados de inteligentes. Qual pai ou qual mãe não adora quando seus filhos chegam em casa com notas escolares elevadas? Você já viu algum pai comentar satisfeito que o filho tira boas notas mesmo sem estudar muito?

A inteligência é um dos aspectos mais valorizados na sociedade. Mas será que ela é mesmo tão importante? Antes de responder essa pergunta, vamos entender um pouco mais sobre o assunto.

A primeira tentativa de testar a inteligência aconteceu na China, no século VII, com os Exames Imperiais, que avaliavam o conhecimento de obras clássicas e a capacidade de escrever e fazer contas.

No início do século XX, os psicólogos psicometristas Alfred Binet e Theodosius Simon criaram a escala de Binet-Simon. A princípio, eram testes que visavam identificar alunos com dificuldade de aprendizagem escolar. Porém, logo se transformaram em testes para identificar aspectos como rapidez e habilidade para raciocinar, planejar, resolver problemas e pensar de forma abstrata – e essas habilidades passaram a ser sinônimo de inteligência.

Os testes de QI tiveram seu auge nos anos 1970. Depois disso, passaram a ser muito criticados. Na década de 1980, um grupo de pesquisadores da Universidade de Harvard liderado pelo psicólogo Howard Gardner criou o conceito de inteligências múltiplas. Segundo a teoria, os testes de QI não são suficientes para descrever a grande variedade de habilidades cognitivas humanas.

Mesmo considerando que não existe uma definição exata nem um tipo único de inteligência, quase todos sabem quando estão diante de alguém muito inteligente. Mas o inverso não é verdadeiro. Se parece fácil perceber quando a inteligência existe, muitas vezes erramos ao supor que ela não existe.

Há 33 anos, sou professor universitário e, no início de minha carreira, acreditava que a inteligência era o fator que mais contribuía para alguém alcançar o sucesso.

Entre meus alunos, rapidamente identificava, admirado, aqueles que eu considerava “muito inteligentes” e acreditava que teriam grande sucesso profissional. Porém, ao contrário de minhas crenças, alguns anos depois de formados, muitos daqueles alunos não se destacavam profissionalmente. Já outros que eu nem havia notado passavam a ter grande sucesso.

Prestando atenção aos alunos da minha classe, percebi que a maioria dos que eu considerava inteligentes estudava muito pouco. Outros, por sua vez, cientes de suas limitações cognitivas, estavam dispostos a estudar com afinco para superar a desvantagem inicial. Passei a chamar esse grupo de “esforçados”.

Alguns anos depois, cheguei à conclusão de que era justamente no grupo dos esforçados que se concentrava o percentual de ex-alunos com maior sucesso profissional. A inteligência, que em princípio parece uma grande vantagem, estranhamente algumas vezes se torna uma inimiga.

Como o professor precisa se preocupar com todos os alunos, a exigência na sala de aula reflete o rendimento médio da turma – um nível, em geral, inferior ao dos alunos que têm mais facilidade de aprendizado. Assim, os muito inteligentes acabam obtendo boas notas sem precisar se esforçar. Passam, então, a acreditar que o sucesso pode ser alcançado facilmente.

No mercado de trabalho, os considerados pouco inteligentes e pouco esforçados são colocados em funções básicas, que não exigem grande dedicação ou talento. Já as tarefas de destaque são muito disputadas.

Um dos exemplos dessa disputa são os processos de seleção de trainee, em que milhares de candidatos concorrem para preencher poucas vagas. Muitas vezes, as empresas fazem escolhas focadas em habilidades cognitivas que eram medidas pelos tradicionais testes de QI. Além disso, valorizam conhecimento de línguas estrangeiras e de outras culturas. Assim, são selecionadas pessoas das classes mais abastadas que nem sempre aprenderam a ter garra e suportar os inevitáveis obstáculos que uma carreira empresarial apresenta.

Só que, no campo de batalha da vida real, os bem formados terão que enfrentar os obstinados esforçados. Nesse campo, alguns fracassam justamente por subestimar a importância do esforço na garantia da vitória.

Fico muito feliz em ver que algumas empresas já estão abrindo espaço nos seus processos de trainee para aqueles que não vieram da elite econômica. Muitas pessoas ainda acham que essas empresas estão apenas fazendo caridade ou marketing, mas eu discordo totalmente dessa visão. Acredito que elas vão ganhar muito ao colocar ao lado dos bem formados pessoas que aprenderam na dura batalha da vida a lutar com garra e determinação para superar as lacunas que uma educação de baixa qualidade lhes deixou.

O Brasil precisa muito de pessoas inteligentes e esforçadas. Infelizmente, o acesso à boa escola ainda é um desafio e, por vezes, sequer chegamos a descobrir o potencial de nossas crianças. Temos inúmeros diamantes usados como cascalho.

Os professores que identificam alunos considerados inteligentes devem mostrar caminhos alternativos, que permitam ir além daquilo que é dado em sala de aula. Inteligência sem esforço pode se transformar em arrogância e acomodação. Inteligência não desafiada e não cultivada pode ser apenas fonte de frustração de alguém que pensava estar destinado ao sucesso e que no futuro irá se descobrir derrotado, porque não aprendeu a lutar duro na vida.

Muitos pais se dizem orgulhosos dos filhos que, mesmo sem pegar nos livros, sempre tiram excelentes notas. Poucos se orgulham dos filhos que precisam de muito estudo para conseguir um bom aproveitamento escolar. Mas é o esforço para tirar uma nota dentro da média que ensina o valor do trabalho duro e aumenta as chances de sucesso na vida.

Os pais precisam mostrar aos filhos que a inteligência, assim como a beleza, é resultado de um golpe de sorte na loteria genética. A criança ou o adolescente deve entender que seu mérito não está na característica em si, mas em como esse talento será aproveitado.

Se você, jovem, é muito inteligente, parabéns! Você teve muita sorte na grande loteria genética da vida. Porém, entenda que sem esforço e dedicação sua sorte pode se transformar em uma enorme desvantagem. Mas se você aproveitar sua sorte genética e se dedicar com garra e afinco, provavelmente será um grande vencedor.

No passado, a riqueza de um país podia ser medida na fertilidade de suas terras e nos recursos minerais. Na sociedade industrial, a riqueza vinha das fábricas. Já na sociedade atual, o verdadeiro patrimônio está no conhecimento. Pessoas inteligentes, motivadas e lutadoras são uma enorme riqueza que não podemos desperdiçar.  

Jurandir Sell Macedo
é doutor em Finanças Comportamentais, com pós-doutorado em Psicologia Cognitiva pela Université Libre de Bruxelles (ULB) e professor de Finanças Pessoais da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
jurandir@edufinanceira.org.br


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UM SÉCULO ENTRE PANDEMIAS

A primeira epidemia global ou pandemia aconteceu em 1817, em decorrência do vibrião colérico. O número de mortos é incerto. A cólera já matava os humanos há milênios, mas a evolução dos meios de transporte ajudou a espalhar um surto mundial – e até hoje somos afetados por essa doença. Aprendemos a combatê-la com higiene e saneamento, mas ela ainda nos atormenta.

Um século depois, o mundo voltou a sofrer com uma nova pandemia, a da gripe espanhola. Os óbitos foram tantos que sequer puderam ser contabilizados. As projeções estimam que morreram entre 50 e 100 milhões de pessoas, ou seja, de 2,5% a 5% da população mundial. Tivemos que vencer o inimigo com o atávico recurso desenvolvido e aprimorado pelo Homo sapiens por, no mínimo, 350 mil anos: a imunização de manada. O velho mecanismo felizmente funcionou.

Mais um século, e voltamos a sofrer com uma pandemia, a da Covid-19. Contabilizamos até aqui 1,1 milhão de mortes ou 0,0142% da população mundial. A gripe espanhola foi entre 175 e 350 vezes mais mortal que o Coronavírus. Agora, temos relativo conhecimento do inimigo e estamos muito próximos de criar uma ou várias vacinas em tempo recorde.

Quando uma vítima da gripe espanhola olhava para o mundo que enfrentou a cólera no início do século XIX, poderia contemplar uma grande evolução. Mas quando nós, vítimas da Covid-19, olhamos para o mundo do início do século XX, a diferença é imensa.

Entre 1920 e 2020, um tempo ínfimo em termos da nossa história como espécie, tivemos uma enorme evolução. Um observador atento, no início do século XX, poderia ver que grande parte das invenções que transformaram o mundo já estava ali presente, se ainda não como produto ao menos como uma ideia tecnicamente viável.

Já havia carros rodando. Eram poucos, mas estava evidente que substituiriam as carruagens tocadas a tração animal. Os aviões já voavam, os tratores já aravam os campos, as máquinas a vapor estavam sendo automatizadas, o rádio já era realidade no mundo, a teoria microbiológica da doença já existia, algumas vacinas já haviam sido desenvolvidas, e as pesquisas que deram origem à penicilina e aos antibióticos já estavam em curso.

O telefone já estava em algumas empresas e residências. Cabos submarinos começavam a cruzar o mundo, e uma rede de telex iniciava a história das telecomunicações instantâneas. A televisão estava teoricamente pronta nos laboratórios de Vladimir Zworykin e Philo Farnsworth. Mesmo os computadores só dependeram da união da máquina de Charles Babbage com a teoria da lógica moderna de George Boole. Todas essas invenções colocadas em prática transformaram o mundo.

Agora, olhando para as invenções que hoje estão entre nós em estágio inicial de utilização ou já concebidas teoricamente, podemos estimar o tamanho das mudanças que vêm pela frente.

Redes de celulares cada vez mais velozes conectam o mundo de forma instantânea. O 5G está sendo implantado, enquanto redes muito mais velozes estão nos laboratórios. A internet das coisas já é uma realidade, conectando objetos a objetos, que tomam decisões autônomas com base em algoritmos. A biometria facial vem com possibilidades reais de reconhecer qualquer ser humano na Terra. O blockchain torna dispensáveis os mecanismos de intermediação centralizados como bolsas de valores, cartórios, bancos comerciais e bancos centrais – e a própria moeda como a conhecemos.

Computadores quânticos tornam a inteligência artificial plenamente possível. Telemedicina, cirurgias robóticas assistidas a distância, dispositivos vestíveis ou implantáveis diretamente em órgãos coletando informações vitais das pessoas. Possibilidade de cultivo de tecidos e órgãos. Transportes autônomos e até carros voadores. Manipulação genética de alimentos, animais e pessoas. Concretas possibilidades de exploração espacial.

Todas essas invenções certamente irão impactar nossa vida sobre a Terra. Então vem a pergunta: como será o mundo daqui a um século? Será que nossos descendentes olharão o mundo atual com o mesmo estranhamento com que olhamos o mundo dos nossos antepassados que superaram a gripe espanhola?

Como será o mundo onde grande parte do trabalho será feito por máquinas e sistemas de inteligência artificial? Segundo Yuval Noah Harari, professor da Universidade Hebraica de Jerusalém e autor da trilogia “Sapiens”, “Homo Deus” e “21 lições para o século XXI”, uma nova classe de pessoas deve surgir até 2050: a dos inúteis. “São pessoas que não serão apenas desempregadas, mas que não serão empregáveis”.

Como bem observa Harari, esse grupo poderá acabar sendo alimentado por um sistema de renda básica universal. A grande questão, então, será como manter esses indivíduos satisfeitos e ocupados. “As pessoas devem se envolver em atividades com algum propósito. Caso contrário, irão enlouquecer”. Ou será que as classes dominantes poderão se diferenciar tanto desses “inúteis” que resolvam eliminar esse contingente de pessoas?

E, para nublar ainda mais nosso futuro, como será a sociedade com uma população predominantemente de velhos em um mundo com pouco trabalho?

Será que conseguiremos superar o grande fantasma do aquecimento global que ronda o nosso futuro? A democracia representativa ainda terá futuro? Como será o tabuleiro geopolítico global com a inevitável ascensão da China? Teremos novos e imprevisíveis desafios pela frente como foi a bomba atômica no século XX?

Podemos olhar para o futuro com esperança e otimismo ou com pavor e pessimismo. Pessoalmente, sou um otimista incorrigível. Como não estarei vivo daqui a 100 anos, só me resta imaginar como será.

Jurandir Sell Macedo
é doutor em Finanças Comportamentais, com pós-doutorado em Psicologia Cognitiva pela Université Libre de Bruxelles (ULB) e professor de Finanças Pessoais da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
jurandir@edufinanceira.org.br


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