A convergência de normas contábeis sempre foi um desafio para o mercado investidor globalizado, os números reportados nas demonstrações contábeis em algumas situações passavam de lucro para prejuízo por divergências de critérios adotados nos diferentes países, como o clássico caso da Daimler-Benz, muito citado na época (1993), que apresentou lucro pelas normas locais e prejuízo pelas normas norte-americanas. No Brasil também houve caso parecido, os resultados da Telebrás apresentavam-se divergentes em 60% em relação aos padrões norte-americanos (1996), deixando os investidores e o mercado inseguro quanto a realidade dos fatos.
Diante deste desafio, o mundo assistiu a criação e o desenvolvimento do IASB (International Accounting Standards Board), em 2001, que deu sequência com mais vigor às atividades do IASC (International Accounting Standards Comitee) que já vinha atuando na tentativa de uniformização e adoção das normas contábeis internacionais.
As normas contábeis internacionais IFRS (International Financial Accounting Standard) foram introduzidas no Brasil, em 2008, e as empresas passaram a ter a obrigatoriedade de publicação das Demonstrações Contábeis em padrões do IASB a partir do exercício encerrado em 2010, com o comparativo de 2009 (Lei 11.638/07 e 11.941/2009). Atualmente são mais de 140 jurisdições que adotaram as IFRS.
Desde essa ocasião, Professora Marina Yamamoto e eu acompanhamos de perto este importante movimento que beneficiaria o mercado de capitais, trazendo o Brasil para a baila dos países que poderiam se tornar mais atrativo aos investimentos globais, tendo em vista a melhoria da comparabilidade do desempenho das empresas em termos internacionais, bem como a percepção de risco. O processo de convergência da contabilidade brasileira impôs uma mudança de filosofia e de postura, evolvendo aspectos legais, culturais, técnicos, organizacionais e educacionais, pois as demonstrações financeiras elaboradas de acordo com essas normas devem possuir maior poder preditivo e oferecer melhores condições para a tomada de decisões.
Na época muito se falou sobre a capacidade de as empresas se prepararem para o novo modelo contábil e o significado de se ter um modelo de padronização de reporte baseado mais em princípios do que em normas, o famoso “essência sobre a forma”. O assunto também foi discutido nesta Revista RI, sempre preocupada em abordar em primeira mão temas relevantes para o mercado de capitais. O artigo “IFRS – Os desafios para o Mercado de Capitais” (Revista RI, pags. 24-25, dez. 2009) exemplifica esse movimento do mercado, companhias e profissionais de RI.
Ouvi inúmeras vezes, em palestras e workshops muitos, inclusive, ministrados pela própria Profa. Marina, que o mercado de capitais e as companhias brasileiras estavam diante de uma oportunidade única de mudança de paradigma em que o reporte contábil envolveria ainda mais todas as áreas da empresa, desde sua área operacional até a controladoria, a área financeira incluindo RI. A estruturação das empresas, implementando uma área específica para atender às demandas por informações, saindo do modelo tradicional em que a posição de RI era exercida, na maioria das empresas, pelo diretor presidente ou financeiro, foi impulsionada, sem dúvida, pelo aumento da complexidade das informações a serem reportadas. Atualmente, na maior parte das empresas, se fazem presentes analistas de RI que oferecem suporte a área.
Como não poderia deixar de ser diferente, toda mudança causa desconforto inicial, houve muito ceticismo na época e dúvidas se as empresas conseguiriam se preparar a tempo e colocar a casa em ordem para migrar para o novo padrão contábil. Foi preciso muito esforço, treinamento e educação de todos os profissionais envolvidos. Os primeiros anos de adoção foram de aprendizagem, conversão de rotas e ajustes. As empresas brasileiras foram bem-sucedidas e hoje as normas contábeis internacionais, já incorporadas pelos órgãos reguladores por meio do CPC (Pronunciamentos Contábeis Básicos), se encontram estabelecidas em suas estruturas internas. Houve a oportunidade para serem introduzidas novas ferramentas de gestão para auxiliar o processo decisório e os níveis de comprometimento dos diversos setores da empresa ultrapassaram os limites da contabilidade.
A importância da evidenciação das informações pôde ser reforçada e as decisões sobre a representatividade dessas informações não estão mais restritas à Contabilidade, mas também ao Conselho de Administração e Fiscal e à Diretoria Executiva da empresa. Todas essas áreas junto com o profissional de RI devem trabalhar de maneira harmoniosa, como uma orquestra, para promover o melhor nível de transparência possível.
Hoje, dezesseis anos depois, estamos assistindo novamente a movimentação do mercado rumo ao atendimento da demanda de informações relativas aos aspectos ESG (Environmental, Social and Governance, tradução para Ambiental, Social e Governança). É consenso de que a integração bem-sucedida dos três pilares do ESG é essencial para as empresas que buscam prosperar economicamente, mantendo-se rentável e, principalmente, criar um impacto positivo no mundo, garantindo sua própria sustentabilidade a longo prazo.
Há novamente a necessidade de reflexão e implementação de formas alternativas de gerenciamento, introduzindo os valores da sustentabilidade como valor das companhias, ou seja, uma mudança significativa dos atuais paradigmas é o grande desafio para o atendimento dos requisitos das normas do ISSB (International Sustainability Standards Board).
No Brasil, atualmente, temos, entre outros, o Relato Integrado (Resolução CVM 14), o Formulário de Referência (Resolução CVM 59) e outras resoluções direcionadas a setores específicos, tais como, Banco Central, SUSEP entre outros, que de alguma maneira incorporaram as demandas exigindo o reporte das ações referente à sustentabilidade.
Em termos globais, existem várias iniciativas como o GRI (Global Reporting Initiative), que desenvolveu padrões de sustentabilidade para fornecer um conjunto abrangente de diretrizes para empresas e organizações relacionadas ao seu desempenho econômico, ambiental, social e de governança, bem como a fundação do Sustainability Accounting Standards Board (SASB) que emitiu normas de divulgação de sustentabilidade.
Como proposta de padronizar e acompanhar esse processo de geração e reporte de informações foi criado em 2021, o ISSB “irmão” do já conhecido IASB (2001). A grande vantagem em ter uma entidade reconhecida globalmente e que possui o background de emissão de normas é a eficiência que esse processo possa apresentar, ou seja, padronizar e uniformizar os procedimentos e a divulgação das informações sobre o ESG e o reporte sobre os impactos financeiros de riscos e oportunidades climáticos. As normas são aplicáveis a todos e potencialmente relevantes para todas as empresas, mas as jurisdições decidem individualmente sobre sua adoção oficial, semelhante às Normas Internacionais de Contabilidade que têm sido utilizadas desde 2003.
A adoção das normas pressupõe que as divulgações de sustentabilidade sejam conectadas às financeiras, como um mesmo “pacote” e possuam visão de longo prazo (forward-looking) sobre riscos e oportunidades de sustentabilidade que podem afetar perspectivas financeiras.
Desse modo, a implementação da norma possui diversos desafios a serem considerados em sua adesão completa e eficiente, uma vez que a empresa deve atender e divulgar os tópicos contemplados no S1 e S2, incluindo como qualificar e mensurar a razoabilidade do impacto no fluxo de caixa das questões que considerar relevante.
A norma IFRS S1 Sustainability Disclosure Standard visa integrar informações de sustentabilidade aos relatórios financeiros das empresas, exige que as organizações divulguem informações relevantes sobre os riscos e oportunidades relacionados à sustentabilidade que podem afetar suas perspectivas e fornecer aos usuários uma visão completa de seu desempenho em relação a essas questões. Isso marca um passo importante na convergência entre a contabilidade financeira tradicional e a divulgação de informações não financeiras.
A IFRS S2 direciona-se a todas as empresas e trata das mesmas perspectivas (estratégia, gestão de riscos, governança e métricas e metas) do IFRS S1, porém considerando o aspecto climático. O objetivo das divulgações financeiras relacionadas ao clima sobre governança é permitir que os usuários de relatórios financeiros de propósito geral entendam os processos, controles e procedimentos de governança que uma entidade usa para monitorar, gerenciar e supervisionar riscos e oportunidades relacionados ao clima.
O desafio de capacitação das empresas e profissionais para a adoção das IFRS S1 e S2 representa um marco importante na integração dos temas de sustentabilidade aos relatórios financeiros, em que as empresas precisam olhar para dentro das suas estruturas, entre outras ações, identificar, avaliar e monitorar os riscos e oportunidades relacionados ao clima. Além disso, devem integrá-lo com a gestão geral de risco e entender o seu desempenho em relação a esses riscos e as oportunidades que poderão surgir.
Este é um trabalho conjunto que deve envolver vários setores da empresa, como o de planejamento, de finanças, de contabilidade, de auditoria, de riscos, jurídico, além da própria área operacional. Essa última área deve contribuir com a orientação do status e o planejamento das ações voltadas à sustentabilidade já existentes ou a serem implementadas nas operações para obtenção de melhores resultados.
Levando-se em conta que o relatório será elaborado de acordo com as normas do ISSB, deve ser feito sob o ponto de vista do investidor, usuário externo, e isso muda a perspectiva, pois as informações produzidas, na medida do possível, devem satisfazer a demanda desse público. Portanto, deve-se evitar assim, a chamada seleção adversa que penaliza a empresa pela informação não fornecida. Chamamos mais uma vez a atenção para uma mudança de paradigma em relação às informações ESG até então divulgadas. Os relatórios devem ser confeccionados com informação clara, precisa, seguindo um padrão estabelecido e acima de tudo, devem ser sucintos.
Neste cenário de mudança, a área de RI assume um papel significativo no esclarecimento ao mercado dos impactos financeiros reportados, bem como, o olhar sob a nova ótica da ordem econômica que tem sido discutida há alguns anos e parece ter sido impulsionada no início deste século.
Neste período de transição e implementação das normas, muito ainda há que ser aprendido e temos mais dúvidas do que respostas, natural em todo processo de mudança. A proposta de implementação a partir de 2026 imposta pela CVM representa um deadline para o desenvolvimento de processos por parte das empresas para que os relatórios possam ser reportados com a qualidade requerida pelo mercado.
Utilizando a metáfora do iceberg tão bem colocada por Vania Borgerth, vice coordenadora de Relações Internacionais CBPS (Comitê Brasileiro de Pronunciamentos de Sustentabilidade), em suas considerações no painel “Mudanças contábeis – S1 e S2 – regras IFRS a serem adotadas”, na 25ª edição do Encontro de RI e Mercado de Capitais (promovido pelo IBRI e pela ABRASCA em junho de 2024), é um mergulho para dentro das águas profundas da companhia.
Será preciso entender o que de fato impactará os resultados, no curto, médio e longo prazo e ainda planejar aquilo que pode ser feito para o cumprimento das normas nestes prazos. Ou seja, explorar o que há debaixo do iceberg porque a parte visível em relação às mudanças climáticas e outros aspectos de sustentabilidade, que conseguimos enxergar, são as informações divulgadas atualmente de controles já existentes e reportados tradicionalmente. Essas informações representam apenas a ponta visível do iceberg.
Já a massa gigante de gelo “invisível” que está abaixo da superfície, geradora de riscos e oportunidades, e que se refere às questões de natureza ambiental, social e de governança precisa ser mais bem explorada, conhecida, investigada e gerida para não se tornar uma ameaça e “afundar” a empresa. Como bem representado no filme Titanic o que afunda os grandes navios é a parte desconhecida do iceberg.
Conhecer e lidar com as ameaças e, se possível, transformá-las em oportunidade é o grande desafio das empresas para implementação das normas S1 e S2. Não existe um modelo pronto de relatório a ser seguido, a norma é principiológica, portanto, oferece abertura para as empresas produzirem um relatório com aquilo que mais se encaixa ao seu negócio com muita criatividade e inovação. “Não vistam um manequim que não é o seu tamanho”, encorajou Vania Borgerth.
Marina Mitiyo Yamamoto
é Professora - Livre Docente e Coordenadora da Câmara de Pós-Graduação da UNIFESP- EPPEN-DCC.
prof.marinamy@gmail.com
Jennifer Almeida
é jornalista com mais de 15 anos de experiência em mercado de capitais, MBA em ESG pelo IBMEC, assessora de comunicação do IBRI e subcoordenadora da Comissão ESG do IBRI.
jennifer.almeida@gmail.com