Governança Corporativa

IMPACTOS DO CORONAVÍRUS NA GOVERNANÇA: por Adriana de Andrade Solé

Há cerca de dois meses no Brasil e no mundo desde dezembro de 2019, todas as instâncias de nossas vidas foram chacoalhadas por algo invisível, acelular, tóxico, agressivo, veloz e letal denominado COVID-19, o Coronavírus. Considero como primeiro tempo desta pandemia, os seis primeiros meses de 2020.

De forma silenciosa e surpreendentemente inusitada, este vírus transformou o planeta em um campo de teste de resistência humana introduzindo o isolamento social como o contra ataque mais eficaz até agora percebido e recomendado. Como fluido venenoso ou toxina, causa infecções respiratórias comprometendo não só a nossa capacidade de captar oxigênio do meio ambiente e de liberar o gás carbônico, como também afeta o nosso olfato e nossa fala. Dependendo do hospedeiro pode causar até morte física. Enfim, este vírus compromete a nossa capacidade de respirar... e Respirar é Viver!

É um vírus que atua sutilmente como é sutil o vinculo entre a respiração e a vida afirmado na palavra spiritus que em latim além de significar espírito, coragem e vigor também significa respiração. Essa mesma conexão é confirmada e repetida em diversas línguas conhecidas como semíticas: árabe, maltês ,hebraico, aramaico, amárico e o tigrínia, onde a palavra para espírito é associada a aspectos do ar, incluindo a respiração, o vento e até mesmo o odor. E em sâncristo, a palavra prana, além de significar alento e respiração, refere-se ao Principio vital, energia, vitalidade, espírito e “ares vitais”. E o Coronavírus tem a capacidade de interromper de forma ágil e sorrateira esta conexão entre vida e respiração.

Introduzindo as instâncias de Governança neste racional sutil de conexão vital , o primeiro impacto que consigo perceber desta pandemia COVID 19 é a evidencia da TRANSVERSALIDADE entre os Princípios e entre as Instâncias de Governança: Governança Global, a Governança dos Estados Nação/Países e a Governança Corporativa/Institucional. Entendo Transversalidade como particularidade, característica de um fato que fornece instrumentos para compreender outros por meio da evidenciação das relações entre elas.

A Governança global ,jargão que se legitimou depois da Guerra Fria para designar a maneira pela qual o mundo se articula graças a cooperação, reflete simultâneo aumento da participação e influência de agentes da sociedade civil- principalmente do empresariado e do terceiro setor- em processos que criam e gerenciam acordos e organizações internacionais, como ONU, FMI , OMC, OMS e outras.

A Governança dos Estados Nação diz respeito a questões dos países: soberania, relacionamentos, força política e democrática, poder da opinião pública, ambiente legal e controle de corrupção em todos os níveis de uma sociedade. E, por último a Governança Corporativa focada no mundo dos negócios, das corporações e instituições e o seu atual poder para influenciar todas as instâncias da sociedade.

Estas três instâncias são pautadas e direcionadas por quatro princípios considerados socialmente irrecusáveis atualmente: Fairness - senso de justiça, Compliance - Conformidade legal, Accountability - Prestação responsável de contas e Disclosure - transparência.

A Figura 1 abaixo evidencia os Princípios e as Instâncias de Governança.

O COVID-19 evidenciou de forma contundente a transversalidade entre a Governança Global, dos Países, Corporativa, Institucional, Empresarial, atingindo todos os setores da economia mundial impactando inclusive a dinâmica dos pequenos negócios e núcleos familiares. Transformou o planeta em um campo de prova exigindo que organizações multilaterais, nacionais, corporativas trabalhem em conjunto para minimizar o impacto e a expansão deste vírus. Embora conhecido como vírus chinês, o seu impacto não tem nacionalidade e colocou a humanidade em geral no mesmo lado contra esta pandemia. Uma cartilha única foi internacionalmente reconhecida como eficaz e eficiente no combate e está sendo em boa parte obedecida e respeitada : distanciamento social, utilização de máscaras e álcool gel na prevenção e identificou a necessidade de respiradores artificiais de última geração no tratamento e intensificou estudos e pesquisas em todo o planeta na busca do antídoto para o mesmo como Cloroquina / hidroxicloroquina, antivirais contra HIV, esclerose múltipla e ebola; Plasma, Cordão umbilical e verme marítimo.

Notícias como israelenses e palestinos trabalhando juntos no combate ao Coronavírus na faixa de gaza e outras evidenciando a solidariedade entre os países passaram a ser comuns. Páscoa, Ramadã e Pessach, rituais sagrados das 3 maiores religiões do planeta coincidiram este ano com auge das medidas de isolamento impostas no combate à pandemia de Covid-19. Com a proibição de reunião, os tempos atuais exigem flexibilidade religiosa e criatividade. De forma geral, o grau de dificuldade individual no atendimento e cuidados necessários que cada um tem percebido durante esta quarentena , guardadas as devidas proporções é o mesmo para os países e para o planeta. Isso caracteriza a transversalidade. Se tínhamos interfaces comuns entre as três instâncias de Governança anteriormente agora temos quase uma sobreposição entre as mesmas. Entendendo a dinâmica e o efeito deste vírus nas relações em cada instância compreendemos as dinâmicas relacionais das outras instâncias.

A Figura 2 abaixo evidencia a transversalidade entre as Instâncias de Governança

Uma palavra que se tem evidenciado fortemente nos meios de comunicação em geral representando uma capacidade necessária a ser desenvolvida no combate ao Coronavirus é RESILIÊNCIA, o segundo impacto em Governança que consigo perceber. RESILIÊNCIA, palavra originária do latim resilio, resilire. Resilio, de acordo com dois dicionários latim-português (Faria, 1967; Saraiva, 2000), seria derivada de re (partícula que indica retrocesso) e salio (saltar, pular), significando saltar para trás, voltar saltando.O Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa (Ferreira, 1986, p. 1493), por exemplo, traz as seguintes definições para a palavra "resiliência": "Resiliência [do ingl. resilience] S.f. 1. Fís. Propriedade pela qual a energia armazenada em um corpo deformado é devolvida quando cessa a tensão causadora de uma deformação elástica. 2. Fig. Resistência ao choque".

Estamos sendo convidados diariamente a aumentar o nosso grau de resiliência. A cada expediente temos noticias inusitadas , de grandes magnitudes, com impactos nacionais e internacionais cujas respostas não são claras e na maioria das vezes incertas, imprecisas e indefinidas. Se transferirmos esta situação para a Governança dos Países a variável Cultura toma parte deste contexto definindo o grau de fracasso ou de sucesso no combate ao vírus. Os países respondem de acordo com as respectivas culturas nacionais ,com os respectivos ciclos de desenvolvimento sócio econômico, fortemente influenciados pela respectiva liderança política. Isso tem provocado respostas e efeitos diferenciados no combate a pandemia.

A sociedade civil planetária está em rede, articulada e empoderando a cada dia que passa a voz da opinião coletiva, exigindo de todos os sistemas políticos existentes a legitimidade de suas ações. O entendimento público do porque fazer isso ou deixar de fazer aquilo é importantíssimo para o sucesso nesta luta contra o Covid 19. O senso daquilo que é justo que faz sentido e que acima de tudo é sério sob o ponto de vista público nunca foi tão importante. O grande desafio que temos neste ponto analisando as instâncias até agora comentadas, a Global e a dos países é fazer os incalculáveis recursos que estão sendo disponibilizados mundialmente ao combate deste vírus, chegar na ponta onde é mais necessária e de forma rápida. Sabemos a luta hercúlea necessária para garantir a transparência e ir contra o mau uso dos recursos públicos nas respostas às crises.Os líderes nacionais sabem que urge a resposta no combate ao vírus e que decisões precisam ser tomadas sem se ter a noção completa da amplitude dos riscos inerentes as escolhas feitas. Sabem que virá a responsabilização pessoal sobre as decisões tomadas mas é prerrogativa de qualquer Executivo, o fazer acontecer.Nesta pandemia, o que está em jogo é a vida humana se estes recursos disponibilizados não tiverem a destinação correta e chegarem no tempo necessário. Comoção social aliada ao inusitado, incerteza , e a percepção pública de incompetência ou covardia governamental para lidar com o Coronavírus será o “Inferno de Dante” instalado no contexto de cada governante.

E, entrando no âmbito da Governança Corporativa, o Coronavírus além de colocar em cheque a perenidade da empresa, sua sustentabilidade ao longo do tempo tem chacoalhado também as estruturas internas da sua Governança, questionando estruturas montadas, atribuições e posturas anteriormente definidas, exigindo um senso de urgência em respostas a questões até então inusitadas. Qual tem sido a postura dos nossos Conselhos de Administração na monitoração e suporte da Diretoria Executiva nesta crise, apoiando, direcionando e redirecionando estratégias não planejadas em tempo hábil? O quanto nossos Diretores Executivos estão sendo os “campeões da causa” para suas respectivas equipes, liderando positivamente o seu público interno? Que tipo de entrega está sendo cobrado de um CEO durante esta crise? Qual está sendo a postura e expectativas dos investidores institucionais durante esta pandemia: o retorno as suas expectativas de ganho ou uma participação da investida de forma cuidadosa, solidária, cooperativa, confiante e participativa no combate a esse vírus no seu âmbito de atuação?

Dependendo da estratégia de curto prazo escolhida, das posturas corporativas incorporadas durante o Covid 19, a sustentabilidade empresarial pode estar altamente comprometida.

Algumas tendências corporativas consideradas há 4 meses passaram a ser realidade praticamente da noite para o dia ,como o trabalho generalizado em home office e o meio digital se transformando como principal meio de interação, integração e comunicação empresarial. Entretanto, para mim, o mais surpreendente foi o nocaute que o data driven ESG - Environment, Social e Governance aplicou no direcionador estratégico que estava fase de elaboração pelas melhores empresas, o ASG - Ambiental, Social e Governance. De uma hora para outra, o Covid-19 evidenciou como os meios ambientais (Environmental) são relacionados, interligados e interdependentes afetando tudo e a todos do planeta, subvertendo a importância da inclusão dos stakeholders e do meio ambiente nas estratégias empresariais.

Independente da dimensão que se queira levar em conta, pessoal , organizacional, nacional, ou planetária o grande desafio durante esta pandemia,me parece ser, garantir a INTEGRIDADE, o que considero como terceiro impacto causado pelo Covid 19: passe o que tiver que passar, o planeta, os países ,as organizações e cada ser humano terão que sobreviver e se manterem íntegros. A palavra INTEGRIDADE vem do latim integritate, significa a qualidade de alguém ou algo ser íntegro, de conduta reta, pessoa de honra, ética, educada, briosa. São exemplos de integridade moral e corporal: a vida íntegra, a integridade física, dos bens sociais e individuais, integridade da honra e da fama, a integridade da intimidade pessoal, do nome, da imagem e dos sentimentos.

No nível empresarial, estamos tendo a oportunidade de testar o que já temos estruturado e, ou o que precisamos formalizar ou otimizar. Por exemplo, as organizações que nos últimos 2 anos instituíram seus programas de Compliance e Integridade, podem testar a eficácia e eficiência dos mesmos neste momento. Tomemos como exemplo as 3 principais evidências que determinam se uma organização possui ou não um Programa de Compliance e Integridade: a existência de um Código de Conduta, um canal de denúncia e um Comitê de Ética. Os colaboradores trabalhando em home office sem supervisão direta, possuem como referencia o código de conduta da empresa para tomar as decisões e saberem a margem de manobra em atitudes e tomadas de decisão com a autonomia necessária? Os colaboradores foram bem treinados e se sentem seguros quanto ao uso do canal de denúncias, sabem o que denunciar e como podem acessá-lo? O comitê de ética durante esta pandemia está presente? Para as organizações que ainda não estruturaram estes programas, faz sentido estruturar, facilitaria a implementação das novas dinâmicas internas?

No nível pessoal, o combate ao Coronavirus tem chamado a atenção e estimulado cada pessoa a garantir a sua integridade física, mental, emocional e espiritual. Fomos obrigados a colocar o pé no freio no ritmo frenético e quase autônomo que estávamos. Desaceleramos, estamos distantes socialmente e lidando com um grau de incerteza absurdo caracterizado por não conseguirmos prever sequer o que ocorrerá no próximo expediente. Estamos sendo convidados a privilegiar o básico, o simples, o necessário, o possível no momento e a pensar naquilo que realmente faz sentido no meio disso tudo.

Estamos percebendo que embora distantes socialmente ,a vitória contra o coronavirus dependerá da SINCRONICIDADE das atitudes individuais na direção do entendimento de que SOMOS TODOS UM. Terminando este artigo mantendo o estilo adotado desde o inicio, a palavra SINCRONICIDADE tem origem grega “syn”, junto, e “Chronos”, tempo; como conceito criado por Carl Gustav Jung, a sincronicidade define acontecimentos que se relacionam não por relação causal, mas por relação de significado; e,finalizando agregando Vitor Franklin “Quem tem um porque , enfrenta qualquer como” e “Tudo pode ser tirado de uma pessoa, exceto uma coisa, a liberdade de escolher sua atitude em qualquer circunstância da vida.” 

Adriana de Andrade Sole
é Conselheira de Administração certificada pelo IBGC desde 2010.Engenheira Eletricista, pós graduada em Gestão de Negócios e Engenharia Econômica. Especialista, professora , palestrante e Consultora em temas ligados a Governança Corporativa, Compliance, Riscos e Códigos de Conduta. Pesquisadora da Fundação Gorceix, Co autora dos livros Governança Corporativa : Fundamentos, Desenvolvimento e Tendências; Código de Conduta: A Ponte entre a Ética e Organização.
adrianasole@globo.com