Mercado de Ações

CASO GAMESTOP: COMO OS INVESTIDORES PESSOA FÍSICA VIRARAM O JOGO CONTRA WALL STREET?

A onda de revoltas nos Estados Unidos chegou ao mercado acionário. De “Occupy Wall Street” à “Black Lives Matter”, no final de janeiro aconteceu o que chamaríamos no Brasil de “Revolta das Sardinhas”.

Vamos entender quem são os jogadores dessa partida:

GameStop (NYSE:GME): em seu site de RI, a empresa se define como uma varejista global multicanal com foco em videogames, brinquedos “pop culture” e eletrônicos. Fundada em 1996, e sediada no Texas, é a maior varejista de videogames do mundo, incluída entre as Fortune 500, com mais de 35.000 funcionários em todo o mundo e faturamento superior a US$ 5 bilhões. Pela última apresentação de resultados disponível (3T20), a empresa está em processo de reestruturação, que começou em agosto de 2019 e foi batizado de GameStop Reboot. Reduziram custos com G&A por meio de fechamento de lojas e demissões, desinvestiram e estão focando recursos na digitalização do negócio, incluindo o lançamento de um novo App em outubro de 2020. A ação há anos é foco de short sellers (hedge funds que apostam na queda das ações). Vale destacar que a companhia informa que no 3T20 recomprou 38,1 milhões de ações a um preço médio de US$ 5,21.

Reddit: plataforma de troca de ideias que permite aos seus usuários discutir e votar no conteúdo que os outros usuários enviaram. No Reddit se fala de tudo: esportes, política, namoro, pets... e, logicamente, ações. Para ajudar a policiar o site e evitar que spammers bombardeiem os leitores, o Reddit criou pontos chamados “karma”. Os usuários ganham karmas por seus comentários e links avaliados por outros membros da comunidade.

r/wallstreetbets (WSB): fórum do Reddit (chamado de subreddit) considerado um dos melhores para traders discutirem ações. Foi criado em junho de 2012, tinha 4,5 milhões de membros em janeiro de 2021, e na data de hoje soma mais de 9 milhões de membros participantes.

Robinhood: corretora de valores online, fundada em 2013, que permite aos seus clientes negociar ações, opções e outros títulos, inclusive criptomoedas, sem pagar comissões ou taxas, e sem manter valores mínimos em conta. Antes dela, o custo de um trade variava de US$ 5 a US$ 10, e era necessário investir no mínimo US$ 500 para abrir uma conta. A corretora, em seu site, apresenta sua crença de que o sistema financeiro deve ser construído para funcionar para todos, e que cria produtos que permitem ao investidor começar a investir no seu próprio ritmo, e em seus próprios termos. Com essa missão em mente, seu app foi construído para tornar o mercado financeiro mais fácil e acessível. Há inclusive uma percepção no mercado de que a corretora “gamificou” o investimento, tendo assim atraído um publico mais jovem e inexperiente. Se tornou unicórnio e queridinha do Vale do Silício em 2017, quando seu valuation atingiu US$1,3 bilhões. Esse valor chegou a US$11 bilhões na última rodada de investimento privado, em setembro de 2020, já em preparação para um possível IPO em 2021. Estatísticas oficiais falam em 13 milhões de usuários cadastrados, mas com a pandemia estima-se que esse número pode ter chegado a 20 milhões no final de 2020. Em comparação, a Charles Schwab informa ter 12,7 milhões, enquanto a E-Trade tem 5,5 milhões de usuários. A idade média do cliente da Robinhood hoje é de 31 anos, e mais da metade informa que nunca tinha investido antes de aderir à plataforma.

Keith Gill: o investidor que começou o movimento no Reddit e no YouTube, conhecido pelos codinomes DeepF***ingValue ou DFV no Reddit e Roaring Kitty no YouTube. Keith, que até recentemente atuava na área de marketing de uma seguradora americana, começou a investir na GameStop em junho de 2019. Apesar de o mercado enxergar a GameStop como uma nova Blockbuster, Keith tinha uma visão diferente: achava que a companhia seria capaz de entregar o turnaround com os planos de transformação digital, apostou nela, e compartilhou essa informação por meio dos seus canais de comunicação. Em seu depoimento para o Congresso Americano, Keith comentou que o fato de a ação ter subido demonstra que ele estava certo.

Melvin Capital Management: a empresa se apresenta como “investment advisor” na única página do seu website. De fato, é um hedge fund que tem centenas de clientes, entre os quais diversos endowments e fundações, inclusive de pesquisa médica, fundos de pensão e aposentados. Foi fundado em 2014 por Gabriel Plotkin, um dos mais admirados traders da indústria americana de hedge funds, que explicou em seu depoimento ao Congresso americano que investe em empresas que “criam empregos, movimentam a economia, e desenvolvem novos produtos para consumidores”, ao mesmo tempo em que se posiciona como vendido em modelos de negócios com perspectivas negativas. A Melvin Capital vinha apostando contra a GameStop desde 2014, já que Plotkin acredita que seu modelo de negócios foi mais que ultrapassado pelos downloads de jogos em mídias digitais pela internet. E essa tendência só se acelerou em 2020, já que com a pandemia o movimento de downloads explodiu com as pessoas baixando mais e mais jogos em casa durante os lockdowns. Como resultado, a indústria de videogames teve seu melhor ano de todos os tempos, enquanto a GameStop continuou apresentando perdas significativas, mesmo registrando crescimento de suas vendas online em mais de 1.500% apenas entre março e abril de 2020.

Scion Asset Management: o fundo do famoso investidor conhecido pelo filme “The Big Short” Michael J. Burry, se envolveu em uma campanha de ativismo com a GameStop. Em agosto de 2019, Burry, detentor de cerca de 2,4% do capital, enviou diversas cartas ao Conselho da Companhia pedindo que aprovassem a utilização do caixa da GameStop (estimado na época por ele em US$480 milhões) para recomprar todo o valor autorizado no programa de recompra (US$237,6 milhões), visando reduzir as ações em circulação e aumentar o lucro por ação. O valor aprovado pelo Conselho para a recompra era por volta de US$6 dólares por ação. Burry informa o conselho que, no dia 31 de julho de 2019, relatórios da Bloomberg mostravam que 57.226.706 ações da GameStop estavam vendidas a descoberto, representando 63% do total de 90.268.940 ações em circulação. Ele concluiu que quando os preços das ações estão nas mínimas históricas ou muito próximas, e mais de 60% das ações estão vendidas a descoberto, mesmo com a companhia tendo em caixa um valor ainda maior do que seu próprio valor de mercado, significa que o mercado não confia mais na estratégia de alocação de capital da administração. Em junho de 2020, numa nova batalha entre acionistas para a eleição do Conselho, Burry se posicionou contra outros dois hedge funds que queriam eleger dois nomes para o Conselho, com apoio da empresa de aconselhamento de voto para acionistas ISS – e perdeu.

Hestia Capital Partners e Permit Capital – os "Ativistas": detentores em conjunto de 1,3% do capital da GameStop em fevereiro de 2019, os dois fundos iniciaram uma campanha de ativismo para trazer novos conselheiros para a GameStop, mais preparados para fazer o turnaround tão necessário para a varejista de videogames concorrer na nova realidade do mercado. Em abril, a GameStop anunciou um acordo de cooperação com os dois acionistas após a nomeação de George Sherman como CEO. A empresa nomearia dois novos conselheiros independentes e seguiria algumas de suas recomendações, e em troca, Hestia e Permit parariam de reclamar e encerrariam a campanha. Não adiantou, e na AGO de junho de 2020, agora detentores de cerca de 7,5% do capital, os ativistas conseguiram eleger seus candidatos – mas até o momento, o novo conselho não apresentou um novo plano de negócios para a Companhia.

Ryan Cohen: o fundador e ex-CEO da Chewy.com, que ficou bilionário após a venda da empresa para a PetSmart, investiu por meio de seu fundo RC Ventures cerca de US$ 76 milhões no final de 2020 ao adquirir mais de 9 milhões de ações da GameStop a um preço médio de US$8,43, representando uma participação de 12,9% no seu capital, com a clara intenção de se envolver diretamente na reestruturação. O plano de Ryan é de usar todo o expertise adquirido na Chewy, um dos maiores varejistas online americanos de produtos para pets para reerguer a GameStop. A GameStop foi receptiva à proposta de Cohen: concedeu três assentos no conselho de administração para ele e dois ex-executivos da Chewy, o CFO e o CMO. A notícia de que Ryan estava assumindo as rédeas do conselho da GameStop foi divulgada no dia 11 de janeiro deste ano, e vista com bons olhos pelo mercado: dois dias depois, em 13 de janeiro, a ação já subiu 50%. No comunicado, a empresa informou que os três conselheiros farão parte da chapa de 9 membros que vai concorrer à eleição na próxima AGO, a ser realizada em junho de 2021. Quatro dos atuais 13 membros já informaram que não vão tentar se reeleger.

O Caso
Agora que você já conhece todos os personagens, fica mais fácil de entender. Em resumo, investidores pessoa física participantes do fórum WallStreetBets do Reddit, detendo informações públicas de vendas a descoberto da GameStop, decidiram virar o jogo contra os grandes hedge funds que apostam nas quedas das cotações de determinados papéis, e passaram a comprar ações da empresa, consequentemente elevando o seu preço, forçando os hedge funds posicionados em vendas a descoberto (short sellers) a recomprarem as ações para fecharem suas posições. Tal movimento levou as ações da GameStop a subir de US$17 em 1º de janeiro de 2021 para a máxima de US$469 em 28 de janeiro de 2021. Na data de elaboração desse artigo, 1º de março, as ações estão cotadas a US$110. Os fundos de hedge que apostavam contra a empresa perderam quase US$20 bilhões. Só o Melvin Capital perdeu 53%.

O “povo” do WallStreetBets teve ainda o apoio de ninguém menos que Elon Musk, que em 26 de janeiro deu a ajuda final que faltava ao publicar o termo “Gamestonk!!” no seu perfil do Twitter as 4:08 da tarde, horário de Nova York. Naquele dia, após o fechamento do mercado, as ações pularam mais 140% e abriram no dia 27 de janeiro cotadas a US$354,83.

Muitas dessas compras – tanto de ações como de opções - foram feitas pela plataforma da corretora Robinhood, que acabou decidindo proibir, em 28 de janeiro, compras adicionais das ações da GameStop e de outras ações que apresentaram picos de volatilidade, 24 horas após a SEC se pronunciar de que estava “monitorando” a volatilidade do mercado. A corretora explicou que foi forçada a restringir as negociações em função da escalada da necessidade de garantias que precisava oferecer para sua câmara de compensação com a explosão no número de ordens. A decisão provocou a ira de seus clientes, que entenderam que a corretora privilegiou os hedge funds – que puderam continuar operando normalmente – ao invés de proteger os investidores individuais, a quem sempre prometeu defender. A informação que circulou, de acordo com dados da revista online Motherboard, é que mais de 50% dos clientes da Robinhood detinham ações da GameStop. Mais de 100 mil avaliações negativas do app chegaram a ser publicadas no Google Play Store e App Store, puxando a avaliação da Robinhood para baixo, mas foram posteriormente apagadas.

O mercado entrou em parafuso quando percebeu que, na prática, os pobres estavam efetivamente tirando dos ricos. Reações imediatas começaram a surgir de todos os principais stakeholders, incluindo membros do governo como a deputada democrata Alexandria Ocasio-Cortez e o senador republicano Ted Cruz, inimigos públicos que chegaram a concordar no Twitter sobre a necessidade de investigar a decisão da Robinhood de bloquear as compras de ações.

Essa decisão levou ainda a uma discussão acalorada sobre o modelo de negócios da corretora. Quando um usuário manda uma ordem de compra de uma ação, a Robinhood não registra esse pedido diretamente na bolsa. Ela recorre a um market maker para efetivar a transação. Esse market maker cobra uma margem muito pequena sobre o valor real da ação, permitindo que a Robinhood não cobre taxas de seus clientes. Em troca por esse valor baixo, o market maker recebe da Robinhood informações e acesso a sua base de clientes. Como a essa altura você já deve saber, se você não paga pelo serviço, isso significa que o serviço é você.

Um dos principais market makers utilizados pela Robinhood é a Citadel Securities, um dos maiores investidores da Melvin. No dia 25 de janeiro, a Melvin anunciou que Citadel e Point72 aportaram recursos da ordem de US$2,75 bilhões em seu fundo, em adição à US$1 bilhão que já haviam aportado em 2019. Seria coincidência? Kenneth Griffin, CEO da Citadel, comentou na audiência no Congresso o quão anormal foi o volume de compra e venda de ações no final de janeiro desse ano. Só a Citadel executou ordens movimentando 7,4 bilhões de ações para investidores de varejo no dia 27 de janeiro – montante maior que o volume médio negociado de todo o mercado de renda variável dos EUA em 2019.

Mas o que está realmente em jogo?
O uso de mídias sociais para garimpar dicas de ações não é novidade nem nos Estados Unidos, nem no Brasil. No mercado americano, bem mais desenvolvido, plataformas de conversas sobre ações como Seeking Alpha (2004), Stocktwits (2009), TradingView (2011) e Scutify (2015) existem há décadas. Motley’s Fool foi fundado em 1993. Jim Cramer já comentava sobre ações na TV na década de 90 e lançou o programa Mad Money em 2005. Analistas técnicos que acompanham movimentos de ações usam essas plataformas para prever retornos das ações mais comentadas.

Vendas a descoberto, ou short selling, também sempre existiram e já causaram muito lucro, muito prejuízo e muita dor. Uma das histórias mais conhecidas sobre esse tema é a de Jesse Livermore, investidor que já na virada do século 20 operava ações, viveu entre altos e baixos e acabou se suicidando em 1940.

As discussões sobre o tema no Congresso americano também são frequentes. Uma busca rápida no Google mostra discussões diversas em vários anos, principalmente após crises como a bolha tech no ano 2000 e a crise do subprime de 2008. A Lei das S.A. americana é datada de 1934, e muitos acreditam que está na hora de revisitá-la de maneira mais ampla.

Os próprios depoimentos dos principais envolvidos nesse imbróglio da GameStop trouxeram discussões relevantes à tona. Vlad Tenev, fundador e CEO da Robinhood, levantou a discussão sobre a liquidação em D+2. Na visão dele, deveria ser em tempo real. Se já conseguimos realizar tanta coisa online em tempo real, por que não conseguimos desenvolver sistemas que façam todas as checagens necessárias e façam a transferência de recursos e ações em tempo real? Será que o bitcoin resolveria esse problema?

No Congresso americano, esse assunto parece também unir democratas e republicanos: representantes de ambos os partidos concordam que é necessária maior regulação sobre a venda a descoberto, ou pelo menos maior transparência, e já começaram discussões sobre a introdução da informação de vendas a descoberto oficialmente nos relatórios 13F. Vale destacar que essa é uma questão que o National Investor Relations Institute (NIRI) vem pressionando junto à SEC por vários anos, e que agora ganhou o reforço de milhares de usuários do Reddit. O NIRI, juntamente com diversas associações de RI mundiais, conseguiu barrar uma tentativa recente da SEC de elevar o limite mínimo de divulgação de informação de propriedade de ações pelos fundos de investimento, uma mudança que afetaria a transparência do mercado americano ainda mais. Os hedge funds, por outro lado, pensam o contrário: o que possibilitou esse short squeeze de GameStop foi justamente a informação pública de vendas à descoberto. Não será uma discussão fácil, e nós como RIs precisamos acompanhar de perto essas discussões e possíveis mudanças regulatórias.

Ou seja, a grande novidade agora é a força dos investidores de varejo, obtida por meio das mídias sociais. Segundo Tiger Williams, investidor institucional veterano em Wall Street, “os investidores individuais estavam sempre errados. Agora não mais. Agora temos 50 milhões deles, todos operando juntos, e agora eles fazem a diferença”. Inclusive até para forçarem mudanças nas leis.

Empresas, investidores, legisladores, todos precisam entender cada vez melhor quem é esse novo investidor pessoa física das bolsas mundiais, que tanto no mercado americano como no brasileiro já representam 25% de todo o volume negociado. No Brasil, essa tendência já vem sendo acompanhada de perto pela CVM, que têm regulado o relacionamento entre empresas e influenciadores digitais e sido bastante vocal sobre suas posições nesse sentido. Ainda estamos longe de ser 50 milhões, estamos chegando aos 5 milhões, mas a estabilidade econômica e a manutenção da taxa de juros em níveis baixos no Brasil, aliada a um mercado com cada vez mais opções em termos de empresas abertas, corretoras, casas de análise independentes e aplicativos de informações tendem a impulsionar esse crescimento.

E qual a diferença entre o fórum de investidores da Reddit e nosso Fintwit aqui no Brasil? Precursor da Fintwit (entendedores entenderão), o Fórum da ADVFN também era lotado de perfis com nomes curiosos, sem foto ou identificação. Por aqui também vemos traders postando suas carteiras, suas telas, seus ganhos e perdas, e memes impagáveis. Seria possível algo semelhante acontecer por aqui?

Para Guillermo Parra-Bernal, sócio do TradersClub, uma das principais plataformas brasileiras de investimentos para pessoas físicas, “uma ação como a do grupo WallStreetBets dificilmente poderia dar certo no Brasil, por conta das regulações da CVM e a experiência da B3 – ambas impediram que o movimento dos sardinhas nas ações da IRB Brasil criassem um evento de liquidez. Claro, ninguém gosta que dificultem suas operações, mas às vezes controlar a emoção é o melhor que alguém pode fazer pelo investidor”.

Em situações como a da GameStop, a transparência e a segurança se tornam elementos fundamentais e desafios para os RIs e as plataformas de investimentos como o TC, ele disse. “Estamos vivendo uma grande revolução no nosso mercado. O compromisso do mercado organizado é municiar uma nova geração de investidores com as ferramentas certas para que invistam com mais segurança e assertividade”, disse Parra-Bernal.

Para os RIs, ficam várias mensagens e aprendizados. A grande maioria das empresas já percebeu que esse novo investidor de varejo demanda informações e atendimentos diferenciados, e tem trabalhado para se aproximar desse público de maneira efetiva. A demanda é por uma segmentação do atendimento do RI que não é de fácil implementação em equipes enxutas como as que temos no Brasil. Por essa razão, o futuro exigirá muita criatividade e inovação, acompanhadas do uso cada vez mais intensivo de dados e inteligência de RI.


Fabiane Goldstein
é sócia-fundadora da InspIR Group, consultoria de relações com investidores.
fabiane@inspirgroup.com


Continua...