Ética

COMITÊ DE ÉTICA: AJUDA OU ESTORVO?

Em tempos de mudanças climáticas, corrupção e princípios morais voláteis, nós, humanos, temos tentado desenvolver mecanismos, e mais mecanismos, de disciplinar nossa humanidade.

Disciplinar parece ser o termo certo, já que a sociedade mostra um movimento pendular de volta, vinda do extremo racionalista que tudo pode, que legisla sobre as terras, as águas, o espaço sideral, as famílias, os animais, a comida, a indústria, o comércio, as religiões, os deuses e, chegando no extremo, o pêndulo volta com um impulso tentativo de arriscar outros e novos modelos e estratégias de fazer acontecer a vida. Assim, temos como resultado um contexto sensorial de desorganização do que antes parecia controlado. É nesse ponto que estamos, numa condição que lembra uma montanha russa no meio da qual, para completar, vem a pandemia.

Numa leitura mais político-panorâmica, vemos governos eleitos em diferentes países da Terra por sua capacidade aparente de “por ordem nas coisas”. O desejo da sociedade ordenar e sentir que assumiu o controle “novamente” definiu uma era política mundial com um perfil de lideranças baseado no resgate da ordem.

Esse é o pano de fundo dos movimentos pela ética e integridade que a sociedade tem vivido no seu trabalho cotidiano, nas corporações, no mercado financeiro. Na semântica usamos termos como compliance e ESG (Environmental, Social, Governance), dando roupa nova ao conceito da Sustentabilidade. Nessa cadência nos vemos hoje tentando organizar nossa ética. Assim chegamos ao Comitê de Ética, que faz parte do Compliance e da busca pela integridade dentro das instituições.

Este artigo procura esclarecer essa pequena célula componente do tecido ético nas empresas. Mas, não desvenda tudo. Isso só se consegue vivendo um Comitê de Ética.

Afinal, o que é um Comitê de Ética?
Comitê de Ética é órgão de governança corporativa. Não estatutário, é criado com a função de zelar pelo respeito aos princípios e aos valores éticos da empresa. Esse organismo assessora o Programa de Sustentabilidade no aspecto da Governança da Integridade (ou simplesmente, conforme a urbanização das áreas, diretamente à Área de Compliance) na apuração de violações às regras, valores e princípios contidos no Guia de Conduta Ética e no sistema regulatório do setor econômico específico da companhia.

O Comitê de Ética também deve incentivar e assegurar o comprometimento da Alta Administração das organizações nas ações resolutivas necessárias em cada caso julgado.

Essa natureza de zeladoria implica em que o Comitê funcione de modo autônomo, pois deve julgar e aconselhar as questões éticas relacionadas a pessoas, ao patrimônio e à imagem da empresa, deliberando sobre condutas questionáveis do ponto de vista ético levadas ao seu conhecimento.

Quais os instrumentos para esse trabalho?
Leis. O primeiro requisito para que um Comitê de Ética funcione bem é que haja clareza sobre as leis e regulações que afetam o setor onde a empresa atua. Geralmente as Áreas de Qualidade, Gestão de Pessoas, Finanças, Sustentabilidade ou, se não houver, as áreas componentes dela, como Gestão Ambiental, Estratégia, Inovação e Compliance completam o contexto legal em diferentes aspectos. Como degraus de uma escada, o cumprimento legal é o básico, o ponto de partida de qualquer empresa rumo à ética corporativa.

Guia de Conduta. Num nível acima vem o cumprimento dos princípios éticos acordados dentro do ambiente corporativo e que são válidos para as relações externas, o que é formalizado por um documento comumente chamado de Guia de Conduta Ética. Esse Guia servirá para referenciar o Comitê em suas análises e julgamentos e deve, necessariamente ser elaborado a partir de processos participativos internos. Assim, quando aprovado pelo Comitê, os colaboradores já estarão engajados e isto economiza tempo e trabalho futuros. Se não houver na empresa uma área dedicada a isso, o Comitê pode designar um subcomitê para sua construção. Dentro do Guia de Conduta Ética estão os princípios que regem a conduta em diferentes áreas do negócio: comercial, compras, relacionamento com Governo, entre pessoas, fornecedores e clientes, incluindo operações que significam riscos ESG, como bonificações, amostras, brindes, impactos sociais e ambientais, proteção de dados, governança, e conflitos de interesses.

Políticas e Fluxos. Outro instrumento a serviço do Comitê de Ética que vai além do sistema regulatório é o conjunto “Políticas e Fluxos”. São as orientações escritas para cada operação estratégica da cadeia de valor do negócio, inclusive precificação e investimentos socioambientais de caráter filantrópico. Políticas e Fluxos que mostram como as operações funcionam e qual a hierarquia na tomada de decisões. Por aí é possível ver onde alguma operação desobedeceu o fluxo combinado e onde os desvios éticos tiveram lugar.

Canal de Denúncias. Situações desconformes com a lei ou a ética da companhia são passíveis de serem denunciadas. Quando uma pessoa presencia ou desconfia de situações suspeitas de fraude, assédio, crime ou qualquer violação da lei ou das políticas internas ela deve reportar - é um DEVER – ao canal. Para viabilizar as denúncias com sigilo e proteger o denunciante de retaliação no ambiente laboral, o canal de denúncias é, geralmente, hospedado em plataforma terceirizada e neutra, obrigada por lei a tratar a informação de forma profissional com CNAE apropriado, com sigilo e confidencialidade da recepção à conclusão de cada caso. As denúncias são triadas por área específica (geralmente Compliance), investigadas e cada qual relatada em documento específico ao Comitê de Ética, que vai julgar o tratamento a ser dado no caso.

Como funciona um Comitê de Ética?
Cada organização determina como quer que seu comitê seja formado e composto, o que é redigido num documento interno chamado “Regimento Interno do Comitê de Ética”.

Composição - Geralmente o Comitê é formado por membros do corpo funcional que representem áreas estratégicas... Gestão de Pessoas, Sustentabilidade, Comercial, Contábil/Financeira, TI. Será importante ter também um membro externo independente, que será uma pessoa com conhecimento sobre o funcionamento de Comitês de Ética ou de Governança Corporativa, cujo papel é alavancar o conhecimento do Comitê e aprimorar seu funcionamento, além do papel de ser uma força neutra de julgamento nos casos denúncia. Esse membro não é um colaborador nem consultor da companhia.

Os membros do Comitê podem ser indicados pela Área responsável pela gestão de compliance e referendados pela Diretoria. Não receberão qualquer remuneração adicional pelas funções desempenhadas e poderão solicitar acesso a quaisquer informações e esclarecimentos necessários ao fiel desempenho da sua função.

Deve a Diretoria participar do Comitê de Ética? É melhor que ao menos um membro do corpo diretivo acompanhe os trabalhos. Isto vai economizar tempo e vai dar legitimidade à discussão. Caso a Diretoria inteira participe, automaticamente referenda as conclusões e já recebe a informação direta, saindo das reuniões com encaminhamentos mais amadurecidos.

Reuniões e mandatos
Reuniões ordinárias, ao menos semestrais, são aconselháveis para manter a vitalidade do grupo, mas, em casos de assuntos emergentes e urgentes pode haver convocação em caráter extraordinário. Não há tempo de mandato ideal, mas, recomenda-se que não exceda muito a dois ou três anos, pois a renovação do grupo pode beneficiar a empresa com novas abordagens e pontos de vista.

Conflito de Interesses
Aqui temos um tópico de profunda importância. Sempre que o Comitê for discutir casos de denúncias ou relacionados a qualquer risco de conformidade, deve atentar para as áreas envolvidas naquele tópico. Para manter a imparcialidade, toda vez que houver amigos ou interesses privados que se confrontem com a imparcialidade nos julgamentos de casos e tópicos, tal membro deve se auto declarar ou ser declarado pelo Comitê de Ética como impedido de participar daquela reunião.

Sigilo
Daí vem a legitimidade do Comitê de Ética: examinar as matérias que lhes forem submetidas emitindo parecer fundamentado e voto que delibere sobre o tratamento daquela pauta de forma justa. Também se pede aos membros que somente expressem opinião sobre fatos que estejam em análise ou que possam vir a ser objeto de deliberação formal no ambiente interno do Comitê. Afinal, as conseqüências dos assuntos podem ser determinantes para a vida profissional dos envolvidos ou para a vida da empresa, uma vez que estratégias também podem ser discutidas no âmbito da ética nos negócios.

Cada membro do Comitê tem o dever de guarda e sigilo dos documentos e das informações recebidas em função de seu cargo, não podendo, de qualquer modo, divulgar seu conteúdo para outros profissionais da companhia ou para quaisquer outros terceiros.

Um Comitê de Ética ajuda ou atrapalha?
O Comitê de Ética é um organismo que só concorre para o bem do exercício corporativo... trata de tudo que possa causar dano à empresa, aos sócios, aos administradores e colaboradores em geral, e em última análise aos investidores.

No caso de pesquisas científicas, o Comitê de Ética é fundamental para proteger os participantes em sua integridade e dignidade.

No âmbito comercial corporativo, o Comitê de Ética trabalha para controlar desvios e violações legais ou do código de conduta da organização. Os riscos ESG são muito melhor administrados quando há um Comitê de Ética para julgá-los e orientar seu gerenciamento junto aos colaboradores. Neste caso, as áreas de sustentabilidade e compliance estão intrinsecamente envolvidas de forma interdisciplinar e o sucesso do Comitê deve ser medido conforme a sua resolutividade.

Diz-se que comitês atrapalham porque são uma instância a mais que a empresa tem para fazer gestão. Porque o próprio Comitê deve ser gerenciado. Os mandatos, os documentos, a composição, as pautas, as reuniões. Mas, é um trabalho compensador. Os males evitados por essa zeladoria vão de multas a imagem pública, passando pela eficiência das operações e o respeito interno dos colaboradores.

A sociedade agradece.

Rosana Kisil
é mestre em Administração de Empresas / Sustentabilidade – EAESP-FGV, engenheira agrônoma – ESALQ-USP. Atua em consultorias estratégicas e como executiva de Sustentabilidade e Compliance. Autora de Manual de Elaboração de Projetos e Propostas para Organizações da Sociedade Civil, Projetos Sociais em Pauta – um modelo de construção coletiva e artigos relacionados ao setor. Educação Experiencial, Fenomenologia e Teoria U são as bases de sua prática profissional - sempre que possível em ambientes naturais ao ar livre.
rokisil@gmail.com


Continua...