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Investimentos

INVESTINDO NO MERCADO DE ARTE

O que têm em comum o quadro de Édouard Manet, “Déjeuner sur L´Herbe”, e a escultura de Auguste Rodin “O Homem do Nariz Quebrado”? Essas obras foram recusadas no Salão de Arte de Paris, de 1898, e hoje valem milhões. Esse é um exemplo do mercado da arte, que gira em torno do prazer, emoções e valores. Pendurar um quadro na sua sala, situar uma escultura no jardim e saber que esses objetos, além da reflexão e do insubstituível prazer contemplativo, ainda poderão resultar em um bom retorno financeiro ao longo do tempo, dependendo da valorização dos trabalhos do artista, constituem situações singulares. Como disse o colecionador Luiz Galvão, mercado de arte é a precificação do prazer que não tem preço.

Como funciona esse mercado no Brasil?
Há um mínimo de segurança jurídica? As respostas a estas questões pretendem dar um rápido panorama do setor e mostrar que o investimento em arte tem muito glamour, uma certa informalidade – que precisa de aprimoramentos - e ainda pode dar bons resultados financeiros.

Impulsionado pela criatividade dos artistas, atuação de galerias e críticos de arte, surgimento de museus e de uma nova geração de colecionadores, o mercado das artes vem conquistando cada vez mais espaço. O ciclo “artista-obra-colecionador” sintetiza uma relação com inúmeras variáveis, que se desdobra em amplíssimo espectro de negócios. Em paralelo, a área jurídica começa a se desenvolver no amplo ramo do direito das artes (Art Law é um termo global hoje) que se relaciona com o todo o mundo jurídico (áreas de direito autoral, do consumidor, patrimônio, liberdade de expressão, tributário, penal, etc.). O que faz uma pessoa comprar um quadro por uma fortuna, (quando a matéria prima tem valor relativamente insignificante)? Como transferir e guardar essas “expressões da genialidade do ser humano” com o máximo de garantia e o mínimo risco para os colecionadores e investidores?

O ciclo de comercialização das obras de arte tem início com a formação do artista (aqui destaco a Escola de Artes Visuais do Parque Lage, no Rio de Janeiro, celeiro de grandes artistas contemporâneos, e a FAAP de São Paulo), que corporifica as suas sensações em obras e se sujeita ao gosto do público quando as coloca no mercado. Nem sempre a aceitação é imediata, ou constante, mas o ponto de partida é a colocação do trabalho no mercado, por meio de venda ou doação a colecionadores, galerias e museus. Aqui o primeiro aspecto jurídico; relevante assinar um contrato escrito, que deve conter a declaração de autenticidade da obra, a responsabilidade do vendedor, a data da transferência e ainda possíveis restrições do artista a exibição do trabalho.

Na etapa de comercialização inicial da obra no chamado “mercado primário”, isto é, diretamente pelo artista, tem um grande papel as galerias, que muitas vezes são as primeiras compradoras. Sua relação com o artista pode se estender para a simples representação, com ou sem cláusula de exclusividade; para o financiamento da produção de algumas obras suas – e recebimento de parte do preço de venda - até cláusulas de obrigação de oferta para recompra de obra, geralmente visando a manter as obras em seu acervo e monitorar seu preço. Importante para artista e galerias catalogar os trabalhos criados – de grande ajuda em caso de falsificações - documentar as operações comerciais e manter contabilidade precisa.

Posta em circulação a obra, as galerias também atuam muito no chamado “mercado secundário”, pois, antes de comercializarem os trabalhos, rastreiam peças desejadas pelos clientes, indicam novos artistas, apontam tendências e contribuem para formar o gosto do mercado, que é capaz de endeusar artistas, levando os preços de suas obras a estratosfera. A constelação de artistas brasileiros contemporâneos é enorme (a título de exemplo menciono Adriana Varejão, Vik Muniz, Ernesto Neto, Waltercio Caldas, Beatriz Milhazes e José Bechara), e pode ocorrer, em função da demanda, até compra de obra futura ou encomenda de obra específica. Marco aqui a necessidade, principalmente nessas duas hipóteses, de um contrato claro, pois a lei brasileira de direito autoral, apesar de ser modesta, em relação às obras de artes plásticas, regula a compra de direitos sobre obras futuras (art. 51, Lei 9.610/98).

O histórico da comercialização do trabalho importa muito na sua valorização nesse mercado, pois pode ser de época de rara produção de determinado artista, ou ter pertencido a coleções de destaque, circunstâncias que valorizam a obra. Novamente se destaca o papel da respectiva documentação, que facilita a autenticação do trabalho e a identificação do seu percurso. Por experiência própria, informo que assessorei cliente na venda de quadro antigo e valioso para grande colecionador, tendo pesado muito na operação o fato do vendedor ter a nota original de aquisição da obra, pelo seu avô, em 1915!

O aparentemente simples deslocamento físico das obras postas no mercado chama a atenção sobre outros dois setores; transportes e seguros especializados. Como transportar obra de arte com segurança e integridade entre continentes com grandes variações climáticas, no caso de grandes exposições, ou mudança de dono? Essas operações têm respaldo na área jurídica, exigindo contratos claros, com definição de valores, obrigações, direitos, responsabilidades e riscos. O mercado já conta com algumas empresas especializadas em transporte e armazenamento de obras de arte, bem como corretoras de seguros, indispensáveis na realização de grandes exposições e na guarda de obras por colecionadores particulares, categoria discreta, mas em grande expansão.

As grandes exposições e coleções movimentam outro núcleo de atividades profissionais. Os peritos que promovem expertises e verificam a autenticidade de obras; os restauradores que, unindo habilidade, sensibilidade e alta tecnologia, conseguem repor as obras em sua condição original; monitores e acadêmicos organizam visitas especiais e criam programação para o público de museus; editoras criam catálogos específicos para as exposições, disputadíssimos pelo público, para registro da participação das obras, com textos de estudiosos e registro das obras por fotógrafos especializados; empresas de segurança e climatização são indispensáveis para o rígido protocolo internacional de exposições. O reflexo jurídico dessa atividade são os contratos que envolvem, por exemplo, o empréstimo das obras pelos seus donos, o patrocínio das exposições, a utilização de museus, os incentivos fiscais e exigem conhecimento desses setores para a sua boa realização.
 
Ainda no aspecto de exibição das obras, o boom contemporâneo de museus, com sofisticada arquitetura e altíssima tecnologia, satisfaz o direito de acesso do público à cultura e movimenta indústria milionária. MAM, Museu do Amanhã e MAR, no Rio de Janeiro; MASP, Museu da Palavra e Pinacoteca em São Paulo; Inhotim em Minas Gerais, e muitos outros, são frutos nacionais dessa nova safra, assim como a Fundação Louis Vuitton, Guggenheim Bilbao, Louvre de Abu Dhabi são exemplos internacionais, sem falar dos clássicos museus Metropolitan, Louvre, Tate e Prado. Além dos prédios já serem obras de arte de arquitetos estelares, coexistem ainda duas áreas; a de exposição e licenciamento das obras de arte para produtos derivados e a de gestão dessas instituições, que movimentam milhões em direitos, bilheterias, empréstimos e pesquisas. Permeiam todos esses itens os contratos de encomenda de construção, de comercialização de produtos, a forma de gestão com compliance de regras e publicidade de balanços, a política de aquisição e gestão de acervo, além da recepção de doações do público.

Entrando na cultura de doação de obras, chama a atenção a antiguidade dessa prática nos países da Europa e América, mas que também tem seus bons exemplos no Brasil. Sem Niomar Muniz Sodré e Assis Chateaubriand, MAMRIO e MASP não existiriam. Um grande número de doadores contribuiu decisivamente para compor o acervo do MAR; recentemente toda a Coleção de Ester Emilio Carlos foi legada ao MAMRIO; parte da coleção Geyer vai para o Museu Imperial de Petrópolis, a Casa de Cultura Laura Alvim no Rio é fruto de legado, dentre vários outros exemplos. Além disso vários colecionadores deixam suas obras em comodato em museus, como Gilberto Chateaubriand no MAMRIO e João Satamini no MAC de Niterói. Uma política de incentivos fiscais deveria ser aprimorada e divulgada nesse particular, para estimular a formação de acervo público, bem como na área de empréstimo de obras para o exterior cuja tributação é elevadíssima. Caso curioso o do colecionador norte-americano Chester Dale, que doou sua estupenda coleção de impressionistas a National Gallery, de Washington, com a condição de nunca serem emprestados os trabalhos, que só podem ser vistos naquele museu. Novamente destaco a necessidade de instrumentos jurídicos para respaldo de todas essas operações, de modo a assegurar o desejo dos doadores e comodantes e garantir o bom usufruto das obras pelos donatários e comodatários, e principalmente o proveito público.

Na área empresarial saliento duas modalidades recentes. O fundo de investimento em obras de arte e o uso dos direitos sobre obras de arte como garantia de operações. O fundo é composto de obras de arte que são adquiridas e revendidas após período determinado, distribuindo-se os resultados. Na parte das garantias chama a atenção, o caso da fotógrafa norte-americana Annie Leibovitz, que, ao contrair empréstimo para pagar impostos da herança de sua companheira Susan Sontag, deu como collateral os direitos autorais sobre as vendas futuras de seus trabalhos. Há também o caso de garantia oferecida por casas de leilões para calçar operações financeiras consistentes nas comissões de vendas futuras. Desnecessário ressaltar a necessidade de adequada arquitetura jurídica para esses tipos de operações, de modo a satisfazer credores e devedores, assegurando o fluxo do capital e a disponibilidade dos direitos sobre obras de arte e sobre comissões.

Falando em leilões, as duas casas mais destacadas no cenário internacional, Sotheby´s e Christie´s, se caracterizam por sua discrição, segurança e vulto das operações realizadas. Por trás dessa fama estão alinhados peritos, historiadores, economistas e advogados, que investigam a procedência e autenticidade das obras submetidas, eventualmente financiam operações, elaboram contratos com cláusulas especiais, asseguram o sigilo das partes interessadas e se distribuem em representações no mundo inteiro. No Brasil os grandes leilões ainda são fonte de boas aquisições, recomendando-se sempre atenção a origem das peças, a documentação de seu percurso e a verificação no acervo do artista, de modo a evitar surpresas desagradáveis.

Ressalto, ainda, a importantíssima – e pouco praticada - questão do planejamento sucessório, em decorrência da morte do artista e do colecionador. Muitos herdeiros e museus administram patrimônios deixados por artistas, como o Projeto Portinari no Brasil e a Sucessió Miró, na Espanha, com aparente êxito e boa organização. No entanto, não raro artistas famosos têm sua reputação abalada por casos criados pelos herdeiros – vedação injustificada de exposição de obras, reprodução de peças sem controle - assim como acervos formados cuidadosamente ao longo de anos são dissolvidos após a morte do colecionador. Aqui o aspecto jurídico se destaca. No primeiro caso, recente decisão do STF (maio 2017) alterou abruptamente o regime de sucessão de companheiros, equiparando-o ao da sucessão entre cônjuges. Traduzindo: até maio de 2017 a regra de herança para quem vivia em união estável estabelecia a transmissão da maioria dos bens para os filhos; agora o (a) companheiro (a) recebe parte da herança de modo que ele (a) pode vir a ser co-titular dos direitos autorais do artista, com poderes de veto e negociação, alterando toda a regra que sempre existiu. Já no caso de colecionador é possível que ele determine a manutenção da sua coleção, pela inalienabilidade das obras (ou parte delas) durante um período após a sua morte, ou a sua transferência para alguma entidade cultural. São medidas jurídicas recomendadas para artistas e colecionadores, que visam a evitar problemas após a sua morte do artista e a preservar a integridade de acervos.

Não posso deixar de mencionar que também há espinhos nesse mundo. Furtos encomendados, lavagem de dinheiro através de obras de arte e falsificações, são problemas que afetam o mercado mundial, mas que vem sendo reduzidos pelo combate através de rede de informações e de órgãos que monitoram obras, verificam preços e restringem a comercialização irregular.

Por último, destaco o surgimento e crescimento de práticas alternativas de solução de conflitos no mundo das artes. O Judiciário brasileiro está sobrecarregado, lento, e nem sempre as questões técnicas das artes passam pelo mundo jurídico, o que torna pouco comum o seu julgamento convencional. Assim, cláusulas prevendo a mediação, num primeiro momento, como meio de composição amigável de conflitos e num segundo a arbitragem, em razão dos custos mais elevados, tem sido inseridas em contratos do setor das artes, como soluções alternativas para eventuais conflitos, como tive a oportunidade de informar na ARTRIO 2016, em exposição feita com Fernando Cochiaralle, Curador do MAMRIO.

Concluindo essa visão geral do setor, estou certo de que o público já dispõe de mecanismos suficientes para efetuar investimento seguro no setor das obras de arte, pois o mercado vem amadurecendo constantemente e a seleção natural vai consolidando o papel dos profissionais do setor. Falta apenas o aprimoramento de práticas e hábitos, principalmente o do emprego de contratos escritos, para maior segurança de mercado que ainda prima pela informalidade. 

Gustavo Martins de Almeida
é advogado, mestre em direito, atua na área civil e comercial com ênfase no direito das artes. É Conselheiro do MAM e da AMEAV e membro da Comissão de Direito Autoral da OAB -RJ e do IAB.
gma@gmalaw.com.br


Continua...