AMEC | Opinião

O VÍRUS, OS JUROS & A EMERGÊNCIA DOS STAKEHOLDERS

Há mais de sete meses vivendo os impactos da crise, é inevitável divagar sobre como esse período será lembrado no futuro e sobre a persistência de seus efeitos sobre a economia brasileira. Apesar de toda a incerteza, com impactos e abrangência inéditos, muitas lições foram assimiladas e que permitem uma inferência sobre como será o mundo pós-pandemia. Um exemplo é o aumento da relevância dos temas ESG e também o crescente reconhecimento do poder dos acionistas quando assumem postura de cobrança e de parceria para geração de valor junto às companhias.

Outro componente essencial nessa equação de transformação é o movimento de juros nominais muito baixos e próximos de zero em várias economias. O ambiente recessivo e a busca por estímulos deixam a sensação de déjà vu da crise de 2008, ainda que seus mecanismos de transmissão tenham sido distintos.

Não vou explorar aqui o processo de transformação digital da indústria bancária e nem a mudança do perfil do investidor brasileiro que chega à bolsa pela primeira vez, mas quando somamos todos os efeitos, vemos a indústria financeira, em uníssono, buscando adaptação rápida para essas mega tendências. Se por um lado a jornada por rentabilidade faz com que a sensibilidade do investidor ao risco seja alterada, significando maiores aportes em participações acionárias, a conscientização dos donos dos ativos sobre seu papel social tem alterado a maneira como esses se relacionam e buscam informações sobre empresas.

Está claro que quando o investidor exerce o diálogo com as companhias, está também colaborando para que essas melhorem suas práticas de governança, o que ganha relevância não só no atual momento de pandemia, mas também gera efeitos culturais duradouros. Os benefícios desse engajamento são amplos, representando uma aplicação na prática de conceitos e códigos de stewardship.

À luz do cinquentenário do famoso artigo “The Social Responsibility of Business is to Increase Its Profits”, de Milton Friedman, analistas de todo o mundo aproveitaram a oportunidade para debater o atual papel do capitalismo frente à atual crise. Se o conceito de shareholders capitalism de Friedman, onde o lucro se coloca como a maior responsabilidade de uma empresa, já era visto com outras perspectivas há alguns anos, o surgimento do conceito de stakeholders capitalism levou o debate a outro nível.

Esses foram só alguns dos gatilhos do também chamado “capitalismo de engajamento”. Trata-se de uma transformação de porte, dessas que não acontecem a toda hora. O modelo tradicional de atenção quase exclusiva aos investidores está sendo substituído por uma visão mais geral, voltada para diferentes públicos que abrangem o ambiente que cerca as empresas. Não é difícil perceber as mudanças que essa transição está exigindo, com uma ampliação tão grande de relacionamentos.

Entre tantos outros pontos, o protagonismo das partes interessadas significa que os investidores institucionais estão passando a cobrar compromissos que afetam todos os públicos da empresa. É uma tarefa e tanto, mas esse caminho já está sendo trilhado. Desde que a pandemia do Covid-19 se espalhou pelo mundo, por exemplo, tem-se observado uma saudável migração para esse novo modelo.

Várias empresas no Brasil estão reforçando desde o início do ano seus compromissos com o cumprimento dos princípios ESG. E não demorou para que surgissem no mercado financeiro fundos de investimento compostos exclusivamente por ativos de companhias que aderem às práticas ambientais, sociais e de governança. Vemos que a aderência a essas ações não só serão os diferenciais dos portfólios com perspectiva de longo prazo, mas também irão colaborar para o aprofundamento do mercado de capitais em perspectiva de ganhos sociais.

Vale lembrar ainda que grandes investidores internacionais expressaram sua preocupação com questões ambientais junto ao governo federal e os três maiores bancos privados do país apresentaram um plano de ações sustentáveis para a preservação da Amazônia. Esses são sinais incontroversos de que sim, estamos presenciando uma grande transformação.

Há desafios e incertezas de sobra, que remetem aos obstáculos para se estabelecer, avaliar e acompanhar métricas baseadas em critérios ESG. Mas felizmente os acionistas têm dado passos efetivos na direção correta. A boa notícia é que esse novo ambiente de negócios tem despertado o apoio de investidores institucionais de peso no cenário global, por meio de seus compromissos públicos. No entanto, como todo processo filosófico de mudança, este também será feito em ondas onde novas e velhas práticas terão espaço ainda por longo período. 

Fábio Henrique de Sousa Coelho
é presidente-executivo da Associação de Investidores no Mercado de Capitais (Amec) e professor da FGV.
fabio.coelho@amecbrasil.org.br


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