Livro em Foco

UM NOVO CAMINHO PARA O BRASIL

Este é um livro que tem como objetivo contribuir para um debate fundamental sobre o futuro do nosso país. No entanto, não se repete aqui aquelas velhas narrativas sobre o atraso do Brasil, bem ao estilo melancólico que resta paralisado diante da influência da colonização ibérica, nem mesmo copiam-se modelos europeus ou americanos que, supostamente, permitiriam uma solução efetiva nos nossos problemas institucionais. Modelos ideais não podem existir, de tal forma que o que nos resta é lutar por mudanças gradativas, fruto de um diagnóstico rigoroso acerca das especificidades históricas que impedem o eficiente e democrático funcionamento de nossas instituições.

Neste sentido, trata-se aqui de defender uma tese que pode contribuir para o encaminhamento de novas práticas, novas organizações. E o núcleo fundamental dessas reflexões passa pela compreensão da sociedade civil (o conjunto de relações entre indivíduos, grupos e classes sociais que se desenvolvem à margem das relações de poder que caracterizam as instituições políticas) como peça indispensável para pensarmos e propormos um modelo atento às condições que marcam nossa história, uma resposta à crise de representatividade e uma defesa da eficácia material da democracia e da participação da sociedade civil.

A sociedade civil precisa se conscientizar de que ela é parte essencial da sociedade, e que por isso mesmo, cabe a ela se organizar e agir para resolver problemas sociais e, simultaneamente, contribuir para o crescimento econômico e social de nosso país. 

Por outro lado, o Estado também deve se conscientizar e perceber que ele existe somente enquanto extensão da sociedade civil, razão pela qual precisa garantir e realizar formas efetivas de participação desta em suas estruturas, e não somente garantir a possibilidade de participação.

Precisamos compreender criticamente o discurso de que nossas instituições funcionam, assim como devemos assumir nossa condição específica e parar de importar modelos teóricos alheios à nossa história de colonização ibérica. 

Reestruturar as instituições, garantindo a participação efetiva da sociedade civil em seus conselhos de deliberação, e inserir o fortalecimento da sociedade civil como objetivo preponderante das instituições é premissa fundamental para construirmos uma cultura democrática, sem a qual toda e qualquer democracia formal não terá eficácia.

É a partir dessa perspectiva que se estrutura o presente livro. No entanto, deve ser dito que o conjunto final das reflexões aqui apresentadas é resultado de uma síntese de três estudos aparentemente distintos, que num primeiro momento apresentavam-se como três livros diferentes: um sobre o processo teórico e prático da construção de nossas instituições que acabou por sufocar a participação da sociedade civil; outro sobre os déficits democráticos presentes na estrutura do BNDES, que não só não abre espaço para representantes independentes da sociedade civil, como permite a cooptação desta instituição para fins político partidários; e, por fim, um que analisasse o contexto que deu origem às agências reguladoras em nosso país, e de que forma uma reestruturação seria necessária para que a autonomia operacional delas estivesse atrelada ao fortalecimento da sociedade civil. Como o leitor pode notar, percebeu-se que o núcleo duro de todas essas questões não poderia ser outro, se não a necessidade de considerar a relação entre instituições e sociedade civil a partir de uma dupla perspectiva: enquanto necessidade de participação estrutural, e enquanto destino privilegiado dos objetivos institucionais. Ou seja, trata-se de uma relação de reciprocidade, isto é, na medida em que as instituições se consolidam por meio da participação da sociedade civil, elas têm o dever de agir em seu benefício, fortalecendo-a. Esta é a razão pela qual decidiu-se integrar esses estudos em uma única abordagem.

FUNDAMENTOS TEÓRICOS   
Como compreender a sociedade, o Estado e a democracia? Uma sociedade que fecha as portas para a participação da sociedade civil corre três riscos interligados: politização das instituições; perda de autonomia e corrupção.

Para compreendermos essas questões é necessário estabelecer com clareza e simplicidade alguns conceitos básicos. Por isso gostaria de dizer que toda e qualquer ordem social é sempre uma ordem de convivência construída, isto é, uma ordem que depende das formas de agir e pensar. Como destacava Hannah Arendt, é o agir humano o substrato do tecido social, o núcleo do desenvolvimento da sociedade civil. Este aspecto é importantíssimo, e precisa ser valorizado, pois remete automaticamente à ideia de responsabilidade.

Se nós somos a base para a estruturação da sociedade (e não um ente divino, uma ordem cosmológica, etc.), então nós também somos responsáveis pela maneira como estruturamos a sociedade. Esse é um tipo de visão transformadora, isto é, que permite a contínua transformação (e melhoria) da sociedade, e não uma visão fatalista ou de subserviência da ordem social. Esse modo de ver o mundo acarreta algumas consequências importantes:

  • O conceito de Estado precisa ser compreendido a partir desta linha de raciocínio: ele é um “momento da sociedade civil”, isto é, diante dos diversos interesses que permeiam a sociedade, o Estado surge como se fosse algo exterior à própria sociedade, uma espécie de vontade geral coletiva, que reduz a complexidade da vida em sociedade ou administrá-la com normas;
  • Algumas ordens sociais estabelecem formas de convivência que oprimem a sociedade civil. A monarquia faz com que o príncipe se apresentasse como alguém fora da sociedade, uma entidade superior, diferente dos outros, que cria a ordem que deve ser obedecida pelos súditos. A ditadura vale-se do mesmo artifício: coloca-se acima da sociedade pela força das armas (não mais pelo argumento do “sangue real”, como na monarquia), posição a partir da qual estabelecem leis sobre como agir e pensar.
  • A democracia é justamente uma ordem social que potencializa a sociedade civil, a partir da própria sociedade – e isso é fundamental. Por isso afirmamos que as leis são criadas pelo “povo”. Isso significa que a democracia não é algo dado, não é um partido, um dogma, uma espécie de política, mas uma construção contínua, e que por isso mesmo exige representação e participação;
  • Existem 6 princípios democráticos, tal como formulado por Bernardo Toro:

I – princípio da secularidade (a ordem social é construída, e não natural, o que permite inúmeras transformações)

II – princípio da autofundação (as leis democráticas são feitas e refeitas pelas mesmas pessoas que as vão viver)

III – princípio da incerteza (uma vez que não existe qualquer modelo de democracia, cada sociedade deve criar sua própria ordem social)

IV – princípio ético (toda ordem democrática tem como objetivo assegurar e praticar os direitos humanos)

V – princípio da complexidade (conflitos, diversidade e diferença fazem parte da ordem social e devem ser produtivamente desenvolvidos)

VI – princípio do público (uma sociedade democrática constrói o público na sociedade civil).

A partir dessa perspectiva é possível dizer que a democracia é uma espécie de empreendimento social, isto é, uma forma de organizar e construir instituições. Aqui é importante destacar as lições de Norberto Bobbio acerca da definição mínima de democracia, que significa um conjunto de regras que estabelecem quem está autorizado a tomar as decisões coletivas e com quais procedimentos. Assim, quem ocupa o lugar do quem e quais são as formas dos procedimentos? Em outras palavras: qual é o real alcance do público?

Quando Bobbio afirma que hoje há a exigência de “mais democracia”, no sentido de que a democracia representativa seja oxigenada ou mesmo substituída pela democracia direta (participativa), é necessário frear os ímpetos e compreender o papel positivo e decisivo que a democracia representativa desempenhou e ainda desempenha. Que hoje seja necessário aprimorar essa forma de governo a partir da ampliação dos espaços de participação da sociedade civil, não exclui, por si só, a continuidade da ideia de representação política. Trata-se, muito mais, de permitir a construção de um modelo de democracia integral em que ambas as formas são necessárias, ainda que, consideradas em si mesmas, sejam insuficientes. Como ficará claro, o que se busca destacar é que a democracia representativa isolada da sociedade civil favorece o próprio totalitarismo (não podemos esquecer que Hitler e Mussolini foram eleitos, ou seja, chegaram ao poder por meio de instrumentos democráticos representativos). Quando deixamos todas as questões fundamentais da sociedade nas mãos dos nossos representantes, corremos o risco de substituir o princípio da autofundação da sociedade pelo princípio do jogo político, tão comum à cena nacional brasileira. Neste cenário, não somos nós que governamos, mas o jogo de favores entre partidos e lobbys. É para este déficit democrático que devemos atentar.

Os limites das instituições representativas sempre tiveram como pano de fundo a crítica que denunciava a distância entre representantes e representados (uma vez mais, basta recordar os traumas da representação política pós fascismo e nazismo), seja na forma do crescimento e isolamento dos partidos políticos (partidocracia), seja na forma de burocratização das estruturas políticas.Isso significa que votar, delegar sua vontade para o representante político, tudo isso não garante que este representante atue de acordo com a sua vontade.

No entanto, a ênfase na democracia participativa não busca deslegitimar e/ou invalidar a democracia representativa. O mundo real não nos permitiria isso! Continua incontornável o argumento de que a complexidade da sociedade atual inviabiliza um retorno à Grécia. Daí a ideia fundamental de que a participação é um mecanismo para revigorar a democracia, expandindo suas ramificações para áreas ainda dominadas pelo poder invisível que atua distante dos olhos da sociedade civil, em gabinetes e salas fechadas.

É por esta razão que as atuais transformações políticas podem ser vistas como um processo de democratização social, isto é, de expansão conjunta da democracia representativa e participativa para novos espaços, áreas até agora dominadas por organizações extremamente hierárquicas e burocratizadas. Este é o foco do livro “Um caminho para o Brasil”: discutir como esta nova compreensão da democracia (representativa e participativa) pode contribuir para a discussão das atuais estruturas do BNDES e das agências reguladoras, e que tipo de alteração democrática poderia ser colocada como alternativa (conselhos deliberativos, por exemplo). Trata-se aqui de refletir e propor mudanças a partir da seguinte constatação:

Percebe-se que uma coisa é a democratização do estado (ocorrida com a instituição dos parlamentos), outra coisa é a democratização da sociedade, donde se conclui que pode muito bem existir um estado democrático numa sociedade em que a maior parte das suas instituições – da família à escola, da empresa à gestão dos serviços públicos – não são governadas democraticamente”.

Se uma das grandes questões que devemos enfrentar é a democratização das nossas instituições, um exemplo concreto certamente nos ajudará a compreender melhor a força dessas ideias. Trata-se da “revolução silenciosa” que ocorreu no mercado de capitais, e que abriu a Bolsa de Valores à população, disseminando o conhecimento e democratizando as oportunidades. Não cabe aqui recontar as inúmeras iniciativas democráticas que foram feitas no início deste século no âmbito da então Bovespa. O que interessa é resgatar uma ideia real, uma prática que condensa o sentido democrático que vem sendo construído nessas últimas páginas: a necessidade de criar mecanismos que tornem instituições hierarquizadas em instituições democráticas, isto é, a criação de um conselho que reunia todos os interessados (sindicatos, investidores individuais, mulheres, etc.).

Foi esta fundamental alteração que permitiu às pessoas deliberarem sobre questões que lhes dizem respeito, ultrapassando o requisito do acesso à informação e dando eficácia à relação de reciprocidade entre instituições e sociedade civil. Não basta o direito de ouvir, não basta informar as pessoas, não é suficiente organizar audiências públicas sem a real possibilidade e deliberação. Somente a existência de conselhos democráticos, com representantes substituíveis e independentes, que garanta tanto o acesso geral como a possibilidade efetiva de participação, somente isso legitima democraticamente nossas instituições. Somente assim ultrapassamos o parâmetro (necessário) da legalidade, e adentramos na esfera da legitimidade.

A consequência teórica e práticas dessas reflexões é que a participação não pode mais ser vista somente como um pressuposto de uma organização. A participação deve ser compreendida como um valor democrático, como um modo de vida da democracia, como exacerbação de uma cultura democrática, de tal forma que a abrangência da participação nas instituições seja um sinal democrático, uma necessidade para o desenvolvimento econômico e social.

Insistir na ideia de que a participação amplia a legitimidade das deliberações oriundas da representação significa lutar pela ampliação da participação da sociedade civil e, ao mesmo tempo, diminuir o espaço do poder invisível que caracteriza as políticas de lobbies. Trata-se, assim, de uma forma de resgatar o conceito de cidadania, e de realocá-lo enquanto eixo estruturante da vida social. Isso não pode ser confundido com a ideia simplista de voto. Como salienta Bernardo Toro, “um cidadão não é uma pessoa que pode votar. Esse é um direito dele, mas isso não faz dele um cidadão. O que faz do sujeito um cidadão é o fato de ele ser capaz de criar ou modificar, em cooperação com outros, a ordem social na qual quer viver, cujas leis vai cumprir e proteger para a dignidade de todos”.

É este núcleo teórico – a necessidade de conselhos deliberativos que articulem representação e participação – que pode servir como pedra angular para avaliação e reestruturação de nossas instituições, de tal forma que a sociedade civil participe da estrutura institucional e, simultaneamente, que seu fortalecimento (da sociedade civil) seja alçado à condição de objetivo institucional.

Com isso, pretende-se contribuir efetivamente para o debate acerca do futuro do Brasil. Somente boas ideias não bastam, é preciso compreendê-las enquanto guia para novas ações, novos sentidos que podem juntar democracia e crescimento econômico e social. 

RAYMUNDO MAGLIANO FILHO
é sócio-diretor da Magliano Corretora; fundador e presidente do Instituto Norberto Bobbio; e foi presidente da Bolsa de Valores de São Paulo - BOVESPA (2001-2007).
raymundo@magliano.com.br


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