Em Pauta

GOVERNANÇA DAS ESTATAIS EM RISCO?

Eu sou o maior acionista da Petrobras”. A frase dita pelo presidente Jair Bolsonaro, em uma live nas redes sociais, em 4 de março último, ilustra o revés que a governança corporativa das estatais acaba de sofrer. Eleito com uma agenda liberal - em que defendia as privatizações - o atual governo vem demonstrando uma postura bem diferente a que o mercado esperava.

Após sucessivas altas nos preços dos combustíveis, que levaram a crítica dos apoiadores, a decisão foi trocar o presidente da petroleira. Saiu Roberto Castello Branco e entrou o general Joaquim Silva e Luna. A decisão gerou uma perda estimada pela equipe econômica, de cerca de R$ 400 bilhões em apenas dois dias (final de fevereiro). O valor engloba tanto a desvalorização dos papéis das estatais na bolsa quanto o aumento das despesas com juros devido à piora da percepção dos estrangeiros quanto ao Brasil.

Mas os custos são bem maiores que os R$ 400 bilhões. Com esta postura, o governo perdeu a credibilidade e confiança do mercado, o que dificilmente retorna. O “capitão” não é liberal e a Lei das Estatais se mostra insuficiente para blindar as companhias, cujo maior acionista é o governo, de novas interferências. Para complementar a crise, André Brandão, que presidia o Banco do Brasil colocou o cargo à disposição e foi substituído por Fausto de Andrade Ribeiro. Brandão se desgastou com o presidente após anunciar um plano de reestruturação do banco, que previa o fechamento de 361 agências em vários municípios e um programa de demissão voluntária.

O mercado ainda aguarda a privatização da Eletrobras. No dia 21 de abril, o deputado Elmar Nascimento (DEM-BA), relator da medida provisória (MP) de privatização da Eletrobras, disse que 95% do parecer está pronto. Em 23 de fevereiro, Bolsonaro entregou pessoalmente ao Congresso Nacional a MP com o objetivo de privatizar a companhia.

Privatizar as estatais seria a única blindagem possível a novas interferências? A mudança de postura do governo, a eficácia da Lei das Estatais e o impacto na governança corporativa são os temas debatidos por seis renomados Conselheiros de Administração, que convidamos para debater estas questões nesta edição da Revista RI.

Os entrevistados são: Eliane Lustosa; Isabella Saboya; Marcelo Gasparino da Silva; Marcelo Mesquita; Mauro Rodrigues da Cunha; e Ruy Flaks Schneider que optou por enviar um texto, publicado na íntegra no final desta matéria, em resposta a nossa solicitação de entrevista.

Eliane Lustosa - Atualmente no Conselho de Administração da CCR e da Solví, Eliane ocupou cargos de primeiro escalão tanto no setor público quanto privado. Foi diretora de investimento do BNDES (junho de 2016 à agosto de 2019), e ocupou assento no Conselho de diversas companhias abertas, como Fíbria, Metalúrgica Gerdau, CPFL e Perdigão. Foi CFO da LLX Logística, diretora do Grupo Abril e do Ponto Frio, além de CIO da Fundação Petros. Ela é formada em economia e PHD em finanças pela PUC-Rio.

Isabella Saboya - Foi membro do Conselho de Administração da Vale (outubro de 2017 à abril de 2021) e coordenadora do Comitê de Auditoria Estatutário da companhia. Atuou no conselho de Administração de diversas empresas como Wiz Soluções, BR Malls, Mills S/A, Casa Show S/A e Dimed. Atuou na Câmara Consultiva de Mercado de Governança em Estatais da B3 e foi do Conselho de Autorregulação em Governança de Investimentos Abrapp/Sindapp/ICSS. É formada em economia pela PUC-Rio.

Marcelo Gasparino da Silva - Recentemente renunciou ao Conselho de Administração da Petrobras (16/04/2021) para forçar a estatal a convocar nova assembleia de acionistas. É advogado graduado pela UFSC, especialista em Administração Tributária Empresarial pela ESAG, e participou dos programas executivos Merger & Acquisitions na London Business School e do CEO-FGV. Nos últimos 10 anos atua como conselheiro de administração independente em companhias abertas, com mais de 30 mandatos, sendo 5 anos como Presidente de Conselho de Administração. É presidente do Conselho de Administração da Eternit desde 2017, Conselheiro de Administração da Vale desde 2020, da CEMIG desde 2016 e membro do Conselho Fiscal da Petrobras de 2018 a 2021.

Marcelo Mesquita - é sócio da Leblon Equities e tem 30 anos de experiência no mercado acionário brasileiro, tendo trabalhado no UBS Pactual e no Banco Garantia. Desde 1995 Marcelo é considerado por investidores como um dos principais analistas do Brasil segundo várias pesquisas feitas pela revista Institutional Investor. Marcelo é membro do Conselho de Administração da Petrobras, Tamboro e do Endowment da PUC-RJ.

Mauro Rodrigues da Cunha - Atua hoje como Conselheiro de empresas e ocupou a presidência da Associação dos Investidores no Mercado de Capitais (Amec) entre 2012 e 2019. Foi presidente do Conselho de Administração do IBGC – Instituto Brasileiro de Governança Corporativa (entre 2008 e 2010) e da Caixa Econômica Federal (2019/2020). Antes de ingressar na Amec, trabalhou por 17 anos em diversas administradoras de recursos, como Opus, Mauá, Bradesco Templeton, Investidor Profissional, Banco Pactual, Morgan Stanley Asset Management e Deutsche Morgan Grenfell, entre outras. Adicionalmente, participou nos últimos 15 anos em Conselhos de Administração e Conselhos Fiscais de grandes companhias brasileiras. Ele possui MBA pela University of Chicago, além de bacharelado em economia pela PUC-Rio.

Ruy Flaks Schneider - Presidente do Conselho de Administração da Eletrobras e membro do Conselho de Administração da Petrobras. É engenheiro industrial mecânico e de produção formado pela PUC-Rio, além de Master of Sciences em Engineering Economy pela Stanford University. Oficial da reserva da Marinha, cursou a Escola Superior de Guerra. Fundou na PUC-Rio o Departamento de Engenharia Industrial, tornando-se seu primeiro diretor e estabelecendo o primeiro programa de mestrado em Engenharia Industrial no Brasil. Acumulou vasta experiência, tanto como executivo, quanto como membro de Conselhos de Administração e Fiscal de grandes empresas, entre elas a Xerox do Brasil S.A., Banco Brascan de Investimento S.A., Banco de Montreal S.A.-MontrealBank, Grupo Multiplan e INB Indústrias Nucleares do Brasil. É um dos pioneiros em Administração de Recursos Institucionais no Brasil e introdutor dos Planos de Previdência Privada de Contribuição Definida.

Acompanhe a entrevista.

RI: Qual a sua avaliação sobre a evolução da Governança das Estatais nos últimos anos?

Eliane Lustosa: Não tenho dúvida que avançamos muito. No passado a ingerência política ocorria sem que sequer houvesse a consciência de que a longa manus do governo, exercendo indiscriminadamente seu poder político nas empresas de economia mista, era indevida. Os cargos de Conselheiros eram, na maioria das vezes, distribuídos como forma de complementar a remuneração de colaboradores ou como benefício aos “amigos do Rei”, desvirtuando totalmente o papel do Conselho de Administração, órgão vital para o sistema de governança das empresas. Por outro lado, se considerarmos as recentes indicações políticas nas 3 grandes empresas estatais listadas (Petrobras, Banco do Brasil e Eletrobras) à luz dos avanços observados nos últimos 4/5 anos, sem dúvida houve forte retrocesso. Sob a visão da governança corporativa, muito foi feito nesses últimos anos e essas empresas foram, em grande medida, transformadas, com seus processos definidos e implementados, em linha com as boas práticas recomendadas pela OCDE. Havia, infelizmente, a falsa expectativa - wishful thinking, talvez? - de que todo esse avanço fosse mantido e a governança das empresas devidamente respeitada por seu controlador. O controlador tem, naturalmente, a prerrogativa de exercer seu poder de voto, escolhendo a maioria dos membros do Conselho e votando nas matérias levadas a deliberação em Assembleia, mas nunca atropelando a governança interna das sociedades. O fórum adequado para escolha e monitoramento do CEO e demais membros da diretoria é o Conselho de Administração, ainda que seus membros sejam eleitos – e possam ser destituídos - por indicação e determinação do controlador. Esse rito faz toda a diferença. Nunca é demais lembrar que, uma vez eleito, o dever de lealdade dos conselheiros é única e exclusivamente em relação à empresa em que atua. Não deve existir a figura do “conselheiro representante” de classe A ou B. O interesse a ser preservado é o da companhia e ponto. A boa notícia é que a enorme comoção e críticas em relação ao recente atropelo da governança nas sociedades de economia mista mostra claramente que tais práticas indesejáveis não serão mais toleradas pela sociedade como um todo, nem pelo mercado de capitais em especial. Qual a consequência? Aumento no custo de captação dessas empresas, com causa e efeito cada vez mais claros. Em síntese, entendo que é um processo não-linear, mas, apesar dos revezes recentes, consigo ver evolução.

Isabella Saboya: Frustrante. Nos últimos 6 anos, foram feitos inúmeros esforços para melhorar a governança das estatais. Além da Lei das Estatais (Lei 13.313/16), o IBGC e a B3 lançaram um sem-número de publicações, cursos, e eventos sobre o tema, sempre procurando discutir com a sociedade civil e o mercado de capitais sobre como progredir nesse tema. A B3 lançou, em 2015, o Programa Destaque em Governança de Estatais (PDGE), com o objetivo de incentivar essas empresas a aprimorarem suas práticas e estruturas de governança corporativa. Este Programa foi descontinuado em dezembro de 2020 pela B3 por entender que o programa reflete a evolução do cenário legal e regulatório brasileiro e as contribuições do PDGE para a legislação brasileira. Ou seja, o mercado não esperava intervenções ou influências inapropriadas por parte da União Federal nas estatais.

Marcelo Gasparino da Silva: Nada evoluiu tanto em termos de governança corporativa quanto em relação aos efeitos da Lei das Estatais sobre as sociedades de economia mista de capital aberto. Foram transformações que vieram para ficar, conquistas que ninguém conseguirá retirar.

Marcelo Mesquita: Houve um avanço significativo na governança das estatais nos últimos anos basicamente pela Lei das Estatais que foi uma consequência da Lava Jato e da Class Action contra a Petrobras, as quais trouxeram à tona os descalabros que eram feitos nas estatais. Houve essa pressão da sociedade e dos reguladores para essa evolução regulatória que, de fato, melhorou a governança das estatais nos últimos anos.

Mauro Rodrigues da Cunha: Desde o advento da operação da Lava Jato, houve uma preocupação muito grande com a governança das empresas estatais. São ciclos na verdade. Houve um ciclo lá trás no final dos anos 90 e início dos anos 2000. Aí vem uma piora muito grande até 2015. A partir daí começa a ter uma postura do governo Temer mais preocupado com a governança das estatais e vem a Lei das Estatais, que melhora algumas coisas, mas não outras. É importante que se diga. Essa melhoria veio acontecendo até a primeira metade do governo Bolsonaro. A partir de então, foi um desastre. O que a gente tem visto é o desfazimento do respeito do acionista controlador pela estrutura de governança das estatais e uma intervenção aberta, que torna órgãos como Conselho de Administração absolutamente irrelevantes. Acho que hoje o pêndulo está de um lado bem ruim.

RI: Quais os impactos das ingerências políticas de governos anteriores? E do atual?

Eliane Lustosa: Essa interferência não é novidade. O impacto é sem dúvida negativo. Basta olhar para evolução do preço de mercado das empresas estatais listadas. Houve enorme perda imediata de valor, mas, pior do que isso, insegurança para os investidores e a percepção de que novos abusos do controlador poderão ocorrer, afetando o valor de seus investimentos. Entendo que a sociedade avançou imensamente na compreensão da importância das boas práticas de Governança Corporativa - GC, que, naturalmente, começou no âmbito das empresas privadas, mas aos poucos ficou mais evidente também nas sociedades de economia mista, ambas regidas pela Lei das Sociedades Anônimas (Lei 6.404/76) e, portanto, sob a égide da Comissão de Valores Mobiliários - CVM. No caso das sociedades de economia mista, vale notar que a importante ação do xerife do mercado de capitais nem sempre foi tempestiva e determinante para coibir eventuais abusos do controlador. Nesse contexto, acredito que a chamada Lei das Estatais (Lei 13.303/2016) foi um marco relevante para a melhoria da GC dessas empresas, apesar de apresentar algumas deficiências e de overlaps em relação à já consagrada Lei das S/As.

Isabella Saboya: O impacto da Lava-Jato e da adoção de congelamento de preços nos combustíveis na Petrobras já foi amplamente divulgado na mídia. Acho que nem é possível calcular quanto a companhia perdeu de fato. O impacto da influência do governo atual sobre as estatais pode ser visto no desempenho das ações de Petrobras, Eletrobras e BB e no discurso e disposição dos investidores locais e estrangeiros em investir em estatais. O que se vê é que alguns investidores passaram a declarar que não investem mais em estatais. Petrobras e BB apresentam queda de 13% nos últimos 3 meses comparada à queda de 0,5% do Ibovespa. Já Eletrobras apresenta valorização de 8% nesse período – o mercado parece ter aceitado bem o nome de Rodrigo Limp para presidir a estatal, mas na semana anterior ao pedido de demissão de Wilson Ferreira, ELET3 caiu 12%. Lembrando que Wilson Ferreira era considerado um dos principais articuladores da privatização da Eletrobras.

Marcelo Gasparino: Nefastos. E quando se fala em estatal, precisamos ampliar a análise para os fundos de pensão que elas são as patrocinadoras e das suas controladas e coligadas. Vivenciei verdadeiros abusos na Celesc, na Eletrobras e na Cemig, onde fui conselheiro. Entendo que a pergunta seria para os atuais governos, pois envolvem estatais federais, estaduais e municipais. Influência política sempre existirá, mas eu pegaria alguns exemplos: RS – está privatizando todas as estatais com apoio da Assembleia Legislativa, mas ainda há uma “vaca sagrada” chamada Banrisul; SC – não conseguiu evoluir em nada nessa agenda; PR – tem vendido as controladas e coligadas das estatais, sem fazer barulho; SP – não evoluiu em nada de relevante nessa agenda; MG – vendeu alguns ativos de controladas e coligadas, e existe uma expectativa que, em 2021, a legislação seja alterada na direção da privatização das maiores estatais; RJ – é o Rio de Janeiro ...; DF – privatizou a CEB, mas existem tantas outras que merece uma análise mais aprofundada; União – só vendeu “folha”, não conseguiu privatizar um “galho”, quiçá um “tronco”. Não tenho informação que permita opinar sobre outros estados.

Marcelo Mesquita: Realmente, nos governos do PT houve uma ingerência política enorme no dia a dia das estatais, mas isso diminuiu já no governo Temer e nestes dois anos do governo Bolsonaro. Acho que muito mais pela mudança regulatória do que pelo desejo de Brasília. De fato, hoje o CPF das pessoas que tomam decisões nas empresas estatais, em função do TCU (Tribunal de Contas da União), dos órgãos reguladores e da legislação nova que foi colocada, diminui bastante a possibilidade de cooperação entre as pessoas nas estatais e os eventuais tomadores de decisão que eventualmente entram nessas empresas para fazer malfeitos.

Mauro Rodrigues da Cunha: Dos governos anteriores a gente viu no que deu. A Petrobras quase quebrou, a Eletrobras quase quebrou. No passado, o Banco do Brasil já tinha quebrado. No caso do BB, é engraçado que acontece antes, quer dizer, lá no governo Fernando Henrique há a recuperação do BB, ele vai para o Novo Mercado e consegue ficar razoavelmente protegido. O que a gente está vendo agora é um processo que não sabemos onde vai parar na verdade. Há uma falsa sensação de que os problemas do passado não podem mais acontecer e, no meu entendimento, essa sensação é falsa porque não há uma garantia de que o governo não possa intervir na política de preço da Petrobras. A CVM analisou a situação e absolveu todo mundo na intervenção mais escancarada e prejudicial que poderia acontecer que custou cerca de R$ 100 bilhões para a Petrobras. A CVM disse que estava tudo bem. Se o governo Bolsonaro, por exemplo, quiser interferir na política de preço da Petrobras, poderá fazer. As pessoas vão gritar, mas nada vai acontecer, porque a jurisprudência que foi formada é que pode, na prática. Aí você diz: mas a Lei das Estatais diz isso, diz aquilo. Ela funciona, em grande parte, como um “Band-Aid” para consertar uma barragem que está rachada. Ela não conserta o sistema que está por trás da forma que as estatais são geridas. É uma falsa sensação de proteção. Podemos ter decisões que não maximizam valor dessas companhias e podemos sim ter indicações políticas para cargos chaves e há sinais, inclusive, que isso já está começando acontecer.

RI: Qual foi a importância da Lei de Governança das Estatais? A Lei foi eficaz? Corremos risco de um retrocesso?

Eliane Lustosa: Como mencionei anteriormente, considero de fundamental importância para as sociedades de economia mista. Não foi o formato ideal, mas o possível naquele momento. A Lei claramente não foi capaz de proteger as nossas estatais de todo tipo de interferência e dificilmente seria. Na minha opinião, a solução definitiva é, sem sombra de dúvida, a privatização, deixando ao Estado o importante papel de regulador. Ainda em 2015, antes da promulgação da Lei, manifestação conjunta AMEC/IBGC trouxe importantes críticas ao sistema da Lei das Estatais. Apesar de suas limitações, a norma trouxe o benefício de inviabilizar a permanência de Ministros e Secretários de Estado como membros dos Conselhos de Administração, além de uma série de mecanismos de transparência e prestação de contas, o que, na minha visão, mais do que compensa suas falhas. Dentre os avanços possíveis, na impossibilidade política de privatização, o sistema de poder das empresas estatais deveria ser totalmente revisto, deixando muito clara e explícita a definição de interesse público - que, por força de Lei, é a razão de existir a participação do Governo no capital social da empresa – e a forma que se dará seu monitoramento. A obrigatoriedade de implementar um “contrato de gestão”, que considere tais questões, poderia ser de enorme utilidade para essas empresas e reduziria, naturalmente, o poder discricionário do governo. Infelizmente, sempre há risco de retrocesso. Do ponto de vista tanto macro como microeconômico, houve períodos de grandes avanços, nos quais conceitos que pareciam consagrados se mostraram posteriormente frágeis. Parece aquele jogo em que nos vemos frente à carta de “volte dez casas”. Triste, mas é a realidade. O processo se torna, muitas vezes, randômico. Apesar de tudo, tendo a ser otimista: acredito que a derivada é positiva e a resultante faz parte da jornada de amadurecimento do país. Por fim, vale lembrar uma frase que ouvi do saudoso Francisco Gros, à época presidente da Petrobras. Eu, na condição de diretora de investimentos da Petros, fundo de pensão da empresa, imbuída do espírito de elaborar códigos e políticas visando blindar a Fundação de interferências futuras, eventualmente danosas: “minha filha, blindagem serve quando os ataques chegam de fora da instituição. Ataques de dentro, não há como controlar”.

Isabella Saboya: Na época da tramitação da Lei das Estatais, o IBGC e a AMEC não tinham visão positiva sobre a implementação de uma lei com essas características. Isto ocorreu porque as boas práticas de governança corporativas têm natureza principiológica e não formalista. Isto significa que o receio era que a Lei fosse usada para justificar interferências políticas. Foi o que ocorreu nesses últimos três meses. As três estatais travaram embates em seus Conselhos de Administração, com conselheiros guiando-se pela elegibilidade formal dos candidatos a presidente indicados pela União Federal, e outros defendendo que era preciso balizar a decisão numa análise mais ampla de suas competências e experiências. A Lei das Estatais pode evitar que políticos administrem as estatais, mas não foi eficaz para evitar indicações diretas da União Federal que podem não ter o perfil necessário para executar bem o direcionamento estratégico definido pelos órgãos de governança dessas empresas. Penso que ocorreu retrocesso na governança das estatais, pois os perfis escolhidos têm alto potencial de modificar substancialmente a direção que vinha sendo dada a essas estatais, e na opinião de muitos, essa mudança não seria no melhor interesse dessas companhias.

Marcelo Gasparino da Silva: Fundamental, como toda a lei criada num momento de grave crise e onde o Congresso Nacional precisa dar uma resposta à sociedade. Foi assim com a Lei de Responsabilidade Fiscal e com a Lei de Improbidade Administrativa. A 13.303/16 é extremamente eficaz, mas precisamos considerar que uma lei sempre está sujeita a uma ideologia e ao seu intérprete. Em todas as estatais que fui administrador os conselheiros eleitos pelo acionista controlador tentaram dilargar os conceitos previstos na Lei. Sua própria vigência, a partir de 01/01/2017 foi convenientemente procrastinada para 1º de julho de 2018, dois anos após a sua publicação. Eis a razão de tantas restrições para cargos de conselheiro de administração, conselheiro fiscal e diretor não sejam ocupados por profissionais que não comprovarem capacidade e não estejam conflitados. Não acredito que haverá retrocesso, mas a sociedade e os agentes da governança precisam permanecer 24h/dia atentos.

Marcelo Mesquita: Acho que a Lei das Estatais se mostrou muito boa para grande parte dos problemas. Hoje você tem conselheiros e administradores das empresas estatais de um nível bem melhor, mais independentes e sem ligações políticas óbvias. Houve, então, uma melhoria significativa nas pessoas e nos processos de decisão, mas isso não resolve 100% do problema. O problema para ser resolvido, dado que Brasília tem o controle destas estatais, é a privatização. Este é o único jeito de você não ter, com os ciclos políticos, mudanças na direção e nas pessoas nestas estatais. Deveriam ser decisões técnicas, apenas.

Mauro Rodrigues da Cunha: Ela teve alguns impactos como, por exemplo, tirar os ministros dos conselhos. Agora, ela criou estruturas extremamente travadas e burocráticas, é uma papelada gigantesca, em tese, para preservar a qualidade das indicações que você faz, mas no final do dia você consegue justificar que um general está pronto para assumir uma empresa de petróleo. Na sua essência, a Lei das Estatais não resolve o problema. Ela cria muita burocracia porque a papelada nesse processo é gigantesca, mas, na essência, ela não protege. Eu faço sempre referência a um artigo que foi publicado pela AMEC em 2015, chamado “Para resgatar nossas estatais”, quando a AMEC se posicionou contra a Lei das Estatais. Essa segue sendo a minha visão até hoje. Não obstante isso, quer dizer, o que nós estamos enxergando hoje é um retrocesso, mas um retrocesso previsível dado que a Lei das Estatais não mudou as bases do processo decisório como deveria ter mudado. Tenho dito para os meus amigos que trabalham no mercado que as estatais hoje que são listadas são autarquias. Eles podem comprar ou vender as ações dessas empresas como queiram, podem ter lucros ou podem ter prejuízo, mas sabemos que são isso: autarquias. Não são mais as empresas que tinham um Conselho de Administração forte, com membros independentes tomando decisões em favor de todos os acionistas. Não têm.

RI: Quais serão os impactos nas escolhas recentes dos administradores das estatais?

Eliane Lustosa: Agora vamos vivenciar, na prática, o quanto todo esse processo que veio no esteio da Lei das Estatais foi ou não minimamente eficaz. Os administradores dessas empresas, assim como daquelas privadas, têm responsabilidades bem definidas. Na medida em que os processos desenhados forem robustos, trazendo transparência e prestação de contas para a luz do dia, a própria sociedade terá a oportunidade de monitorar e cobrar. Aqui o papel diligente da CVM e dos órgãos de controle será também fundamental. Neste contexto, a vida como ela é: ao final, o chamado “risco CPF” tem enorme peso no dia a dia dos gestores públicos e não deve ser menosprezado.

Isabella Saboya: Primeiro impacto imediato é na confiança do investidor, que não esperava nenhum tipo de ingerência política nessas companhias. Já se o interesse dessas companhias será prejudicado ou não, ainda julgo cedo para dizer. É preciso aguardar os resultados da gestão desses presidentes indicados pela União Federal.

Marcelo Gasparino: Posso falar dos administradores que eu participei das respectivas eleições: Cemig na Gestão Zema e agora, na posse da nova diretoria da Petrobras na Gestão Bolsonaro. Na Cemig o impacto de imagem tem sido extremamente positivo e está ocorrendo uma revolução na Companhia. Mas uma empresa criada por Juscelino Kubitschek e que passou por tantos problemas de governança não será consertada em dois anos, tampouco em 4 anos; Na Petrobras temos de separar dois momentos: primeiro, os dois anos de sucesso da gestão Roberto Castello Branco, coroada pela superação dos 12 primeiros meses da Pandemia, e sem entrar no mérito do pecado praticado com a companhia pela forma como a mudança no comando foi imposta; segundo é o início da gestão Silva e Luna, que se apresentou como um profissional disposto a servir o seu País gerindo a Petrobras da melhor forma possível, sem ingerências ou interferências políticas. São suas as seguintes palavras: “fiquem tranquilos que esse risco a Petrobras não corre”. Os demais diretores eleitos, até pela necessidade de agilidade nas quatro mudanças, três são pratas da casa e todos atenderam aos requisitos da lei.

Marcelo Mesquita: É muito difícil, a priori, dizer o que vai ser depois desta mudança dos gestores na Petrobras, no Banco do Brasil e na Eletrobras, principalmente. A princípio, eu acho que são pessoas que têm um currículo a zelar, entendem dos setores e vão respeitar a lei, mas eu não sei se isso é suficiente ou se é o melhor que poderia ser feito por essas empresas. Porque, do ponto de vista do modelo de governança, o ideal é que os Conselhos tivessem escolhido esses gestores num processo de mercado, transparente, com headhunters e não que Brasília tivesse dado nomes goela adentro.

Mauro Rodrigues da Cunha: As pessoas que estão sendo indicadas pelo controlador, são pessoas que decidiram compactuar com a intervenção que foi feita. Eu vejo dificuldades para que esses conselhos, salvo aquelas indicações feitas por acionistas minoritários, tenham legitimidade para proteger a companhia dos passos seguintes que devem acontecer nesse processo de intervenção. O Conselho virou um não órgão, virou algo inexistente. Ele vira um órgão carimbador que vai simplesmente sancionar a vontade do controlador.

RI: O que pode ser feito para preservar a blindagem da governança das estatais? Qual o papel dos Conselheiros, em especial dos "independentes", e dos investidores institucionais e minoritários nesse processo?

Eliane Lustosa: Os investidores em geral - e os institucionais em particular - têm papel fundamental nesse processo. Estes, se agirem com a devida fidúcia em relação aos seus participantes e investidores, terão o condão de acionar um potente círculo virtuoso. Ao exercer sua prerrogativa de eleger conselheiros engajados, corajosos e devidamente informados, esses agentes podem contribuir para que o Conselho de Administração exerça seu papel de guardião do objeto social e do sistema de governança das empresas, garantindo que os atos da administração visem sempre o melhor interesse da instituição. Com a devida transparência e prestação de contas, será possível identificar eventuais desvios no processo. Conselheiros indicados pelos acionistas minoritários, que tenham as características mencionadas acima e atuem com independência em relação ao controlador, podem alertar para eventuais desvios. É a célebre história do “rei esta nu”: basta um conselheiro alertar para algum fato óbvio e antes não percebido pelos demais, para rapidamente o processo ser ajustado. Já vivenciei situações semelhantes em alguns Conselhos. Aqui, mais uma vez, o chamado “risco CPF” tem papel importantíssimo no processo. Como aliados, intra corporis, temos os sistemas de governança, controle e de divulgação de informações estabelecidos nessas empresas. Sob o ponto de vista externo, como já mencionei, para o monitoramento e a cobrança, a própria sociedade tem papel a desempenhar, além dos órgãos institucionais próprios e previstos no ordenamento jurídico.

Isabella Saboya: Não acho possível a blindagem total da governança das estatais. Isso ocorre porque as boas práticas de governança são todas principiológicas e não formalistas. Não vejo como toda e qualquer situação possa ser prevenida quando se trata de governança corporativa. Isso não significa que os conselheiros não possam questionar indicações e argumentar por uma análise mais ampla dos candidatos indicados pela União Federal. Pessoalmente, eu não aceito posições de Conselho em estatais, justamente por acreditar que frequentemente haverá desalinhamento de interesse entre acionistas e que não tenho as competências exigidas para solucionar esses conflitos no melhor interesse da companhia. Admiro e invejo os profissionais que estão nesses Conselhos como independentes e que vejo agirem sempre no interesse da companhia e estimulando essas empresas a adotarem as boas práticas de governança corporativa. O papel dos conselheiros é sempre o mesmo, quer sejam independentes ou não: tomar decisões de maneira informada, refletida e desinteressada utilizando sempre seu melhor julgamento sobre qual decisão está alinhada ao interesse da companhia. Já no caso dos investidores institucionais, penso que devem aderir ao Código de Stewardship da Amec e respeitar e implementar os princípios ali elencados. Acredito que os investidores institucionais são a força motriz para gerar mudanças reais nas companhias no que se refere às questões ESG.

Marcelo Gasparino da Silva: Na minha sempre considerada equivocada visão, os verdadeiros donos das estatais de capital aberto são os minoritários, pois vem governo, vai governo, eles são os únicos que continuam lá. Assim, a responsabilidade deles aumenta na medida em que eles têm garantido o direito de eleger dois conselheiros. Portanto, as escolhas têm de ser cirúrgicas e pelo liability no CPF são poucos os verdadeiramente preparados que se dispõe a aceitar a missão. Sim, é uma missão. O papel dos investidores é unir esforços e eleger pelo processo de Voto Múltiplo o maior número de assentos possível. Nas estatais federais são até 3 pelo VM e 2 pelas eleições em separado. Nas estatais estaduais depende da quantidade definida no estatuto de cada companhia.

Marcelo Mesquita: A blindagem total só é possível com a privatização, porque, enquanto você tem um controlador com a maioria para definir a maioria dos Conselhos, no limite, não satisfeita com as decisões do Conselho, Brasília pode sempre chamar uma assembleia e modificá-lo até que ele tenha membros que apoiem essa escolha dos dirigentes feitas por ela. Então, só a privatização é a solução. Acho que o papel dos investidores institucionais, dos minoritários e da imprensa é ficarem atentos às decisões tomadas no dia a dia e vir a público para chamar a atenção do País, dos reguladores, de todos, quando houver qualquer coisa que saia do padrão de normalidade, do plano estratégico, do estatuto social da empresa e tudo o mais.

Mauro Rodrigues da Cunha: Em primeiro lugar, privatizar. É muito triste falar isso. Eu já passei nove anos em conselhos de estatais tentando construir os freios e contrapesos para as empresas serem protegidas e, de fato, elas foram por um bom período. Isso teve impacto muito positivo na gestão e mesmo na cultura dessas empresas, mas o que a gente vê é que, com a estrutura jurídica que temos hoje, não está garantido que, numa mudança de governo você não reverta os hábitos do passado. Então, ou privatiza ou a gente tem que fazer uma nova Lei das Estatais de fato que implemente as diretrizes da OCDE, que é o que deveria ter sido feito lá trás. O papel dos conselheiros independentes volta a ser um papel que eu tive, por exemplo, em 2013, de realmente ficar alerta e denunciar as tentativas de prejudicar a companhia, mas será sempre uma voz minoritária para ficar registrada em ata e eventualmente levar um processo na CVM que, pelo histórico, não vai dar em nada.

RI: Poderia fazer uma análise sobre a situação de possíveis ingerências recentes na Petrobras e Banco do Brasil? E no caso da Eletrobras, como avalia o andamento do processo de privatização?

Eliane Lustosa: No período em que fui diretora do BNDES e acompanhei de perto a sua ação como agente responsável pelo PND (Plano Nacional de Desestatização), ocorreram diversas discussões e debates sobre as possíveis formas de privatização da Eletrobras. Muitas ideias foram postas à mesa e vários formatos examinados, cada qual com suas vantagens e desvantagens. Não é um tema simples e requer forte vontade política, envolvendo diversos órgãos do executivo, tais como o Ministério das Minas e Energia, Ministério da Economia e suas diversas Secretarias e demais membros do Programa de Parcerias de Investimento e do Legislativo. Houve muita energia gasta para viabilizar uma solução, mas com o passar do tempo, aqueles membros do atual Governo mais engajados em avançar com esse processo acabaram saindo. No momento, na minha avaliação, esse processo perdeu totalmente tração e viabilidade política.

Isabella Saboya: As ingerências são indevidas e o acionista controlador dessas companhias deveria, no mínimo, prestar contas aos acionistas dessas companhias sobre o que fundamenta as mudanças de gestão que sugere. No caso da Eletrobras, há uma clara decepção por parte dos antigos administradores da companhia no que se refere à sua chance de privatização. Há consenso de que a empresa precisa de uma capitalização e que as amarras legais por ser uma estatal restringem significativamente a melhoria de desempenho da Eletrobras. O desempenho recente das ações sinaliza que o mercado de capitais ainda tem a expectativa de que a privatização da Eletrobras possa ocorrer neste governo.

Marcelo Gasparino da Silva: A ingerência que ocorreu até agora na Petrobras e no Banco do Brasil foi a retirada de executivos reconhecidos pelo mercado e a eleição de executivos desconhecidos pelo mercado. Isso aumenta a responsabilidade de todos os membros do Conselho de Administração, principalmente daqueles que já estavam na gestão anterior, para que os planejamentos estratégicos e as políticas já aprovadas no início do exercício sejam mantidas, e se isso não ocorrer, que as autoridades competentes sejam acionadas. É preciso auxiliar os novatos na melhor compreensão possível sobre os negócios da companhia, um onboarding mais difícil num período de restrições de locomoção e reuniões virtuais. Na Eletrobras, o projeto era de capitalização. A partir de dezembro de 2020, quando o melhor executivo do setor elétrico brasileiro constatou que o projeto não iria decolar, foi ele quem decidiu sair. Recebi boas informações do novo CEO, principalmente de que ele teria trânsito político para superar os insuperáveis entraves políticos. Quem viver verá, eu estou cético em relação a aprovação no Congresso, mas, por outro lado, vejo como a única fonte de recursos para obras de infraestrutura no Nordeste e no Norte saírem do papel, portanto, ainda há esperanças.

Marcelo Mesquita: Acho que a troca das pessoas se deveu ao fato de que estas instituições e essas pessoas não aceitaram e não aderiram a ingerências. Deste ponto de vista, eu acho que a governança das estatais se mostrou, até aqui, robusta. Porque, se tivesse havido a ingerência e as empresas tivessem capitulado, aí sim a gente teria provas de que o sistema de governança não funcionou. Não foi o que aconteceu. O que parece é que Brasília tentou interferir, os atores explicaram a ela que isso era impossível, que não podem colocar a pessoa que eles querem, no preço que eles querem, não pode cortar custos... Enfim não vale a pena entrar nos detalhes, mas o dia a dia da gestão tem que ser técnico e independente, goste ou não Brasília disso. Brasília não gostou e quis trocar as pessoas. Acredito que, como os papéis caíram muito, houve aumento do risco-brasil e o dólar mexeu, Brasília aprendeu que mexer com as estatais hoje, num mundo transparente e atento, tem custos políticos e econômicos muito grandes. Eu tenho a impressão que trocaram as pessoas, mas que estas novas pessoas vão continuar agindo da forma correta como as anteriores agiram. Não posso garantir isso. É apenas uma suposição, uma especulação da minha parte.

Mauro Rodrigues da Cunha: Essa é a lenda né? Eles estão mexendo nas peças de xadrez e os resultados, os impactos nós vamos ver nos próximos meses. Quanto ao caso da Eletrobras, eu sei tanto quanto você. Tem uma medida provisória que está no Congresso, o governo diz que está otimista com a sua aprovação, mas é o mesmo governo que demorou para aprovar o orçamento de 2021 e ainda tem uma CPI agora para ficar mais divertido.

RI: Como você avalia o impacto das questões ESG nas estatais e nas empresas em geral? Em qual patamar estamos e onde é preciso evoluir?

Eliane Lustosa: Aqui vejo novamente o papel estruturante sendo exercido pelos investidores institucionais, notadamente os estrangeiros, que cobram ações concretas (e mensuráveis!) das empresas em que decidem participar com recursos, seja dívida ou equity. Além dos investidores, jovens talentos e consumidores mais atentos e engajados com questões sociais e ambientais são fundamentais para sustentar e desenvolver boas práticas corporativas de cunho Social – S e Ambiental – E. Vale notar que o tema não é novo, mas tem sido tratado de forma cada vez mais estruturada e consistente pela sociedade em geral e, em particular, pelo mercado de capitais. Para ilustrar, vale mencionar que desde 2003 o Código de Melhores Práticas do Instituto Brasileiro de Governança Corporativa (IBGC), considera “Responsabilidade Corporativa” (entendida como ‘considerações de ordem Social e Ambiental na definição dos negócios e operações’) como um de seus quatro princípios basilares. Desde então, nas revisões posteriores do Código, o tema ganhou cada vez mais relevância. Na última edição, em 2015, as questões Sociais e Ambientais passaram também a constar das premissas do código, ou seja, E e S passaram a ser considerados como parte intrínseca do G - Governança. No que se refere às questões mais diretamente relacionadas ao G, muitos avanços foram observados, notadamente a partir do lançamento do Novo Mercado – NM em dezembro de 2000. Inicialmente o processo foi capitaneado pelo Governo, que apoiou a implementação dos segmentos diferenciados de listagem de mercado e, inclusive, incentivou companhias da carteira de crédito do BNDES a aderirem à iniciativa, como foi o caso da CCR, a primeira empresa brasileira a ser listada no Novo Mercado (NM). Aos poucos a importância das boas práticas de GC se tornou mais evidente para os agentes de mercado e, hoje em dia, é difícil justificar que empresas captem recursos de terceiros de forma sistemática e relevante sem aderir aos padrões mais elevados de governança. Nesse contexto, acredito que processo semelhante acontecerá com as questões sociais e ambientais. Tratando mais especificamente de empresas públicas e de economia mista, essas considerações se tornam ainda mais relevantes, pois são externalidades positivas que devem fazer parte da agenda do gestor público. A propósito, a Lei das Estatais, em seu artigo 32, por exemplo, dispõe sobre a observância de critérios ambientais como requisito na contratação de serviços e bens de terceiros. Vale ainda mencionar jurisprudência pacífica do TCU, que legitima a inclusão de critérios de cunho sustentável nas contratações públicas, podendo, inclusive, considerar a falta desses parâmetros como impropriedade a ser sanada. Infelizmente, assim como vimos com as práticas de governança, há sempre empresas que seguem o modismo e fazem apenas o processo de “ticking the boxes” ou de “greenwashing” para serem vistas como empresas sustentáveis, sem que o conceito seja incorporado pelo topo da corporação - o chamado “tone at the top”- e incluído em seu planejamento estratégico de forma legítima. Ainda precisamos evoluir na forma como as empresas definem, mensuram, monitoram e comunicam suas ações sociais e ambientais para a sociedade. E isso, na minha opinião, vale tanto para empresas privadas como de economia mista.

Isabella Saboya: De uma forma geral, vejo que todas as companhias estão focando em questões ESG. Não tenho acompanhado as propostas e medidas de ESG específicas nas estatais. Nas companhias privadas, praticamente todos os dias temos notícias de adoção de alguma prática evolutiva em ESG. No momento, estou otimista de que esse movimento se amplie.

Marcelo Gasparino da Silva: Precisamos sair do Power Point e passar a praticar ações concretas que melhorem o meio ambiente que nossas atividades impactam. Quanto maior a empresa, maior é a área de influência. Amazônia precisa ser pauta “ES” de todas as grandes empresas brasileiras. A questão Social agravou-se com a pandemia da COVID-19. A fome voltou a ser pauta diária nos telejornais e tablóides e essa é uma responsabilidade de todas, grandes, médias ou pequenas empresas. Infelizmente, controlador de estatal não é muito friendly com a diversidade. A Cemig não tem nenhuma diretora ou conselheira, a Petrobras perdeu sua única diretora em abril, mas, em contrapartida, não tinha conselheiras e agora tem duas. Faço um parênteses para declarar hoje que acredito que a Vale terá a primeira conselheira negra de sua história. Dos três aspectos a Governança foi o que mais evoluiu, mas como ensina o livro, não é um destino é uma jornada.

Marcelo Mesquita: Está havendo um avanço muito bom e significativo em todas as empresas, inclusive, nas estatais. Este avanço hoje tem muito a ver com o nível de transparência que está sendo dada nas demonstrações financeiras e pelo management em relação a esse tema. No caso da Petrobras, há agora até executivos com esse tipo de descrição do trabalho no seu cargo. Há pessoas e relatórios dedicados e, com isso tudo, o nível do debate da transparência está aumentando. Na medida em que isso acontece, os investidores e a mídia vão colocar pressão e, com o tempo, vai ter uma aceleração da evolução destes quesitos: Ambiental, Social e Governança.

Mauro Rodrigues da Cunha: Eu acho que aqui a gente vê alguns avanços, principalmente, o Banco do Brasil e a Eletrobras avançaram na integração desses temas dentro das suas estratégias. A Petrobras vem avançando com a dificuldade de ser uma empresa de petróleo, o que torna isso mais difícil. Vamos deixar claro uma coisa: quando você fala de ESG, eu me refiro a ES, porque o G a gente já falou e é um desastre. Mas as políticas ambientais e sociais reverberam relativamente bem nas estatais. A Eletrobras é uma das três maiores empresas do mundo de energia limpa.

Contraponto

 A Lei nº 13.303, Lei das Estatais, surgiu como instrumento para impedir a repetição de aviltantes desvios comportamentais identificados, cujas consequências ainda se fazem sentir. Como todo instrumento legal, estará sempre sujeita a aperfeiçoamentos, porém, cabe reconhecer sua eficácia. Esta é a avaliação de Ruy Flaks Schneider, presidente do Conselho de Administração da Eletrobras e membro do Conselho de Administração da Petrobras, que faz um contraponto ao debate, com exclusividade para a Revista RI. Segue a íntegra do texto, à nós encaminhado, por Ruy Flaks Schneider, em resposta a nossa solicitação para essa entrevista:

Cumpre-me assinalar e peço aos leitores registrar que as opiniões aqui expostas são minhas pessoais e não refletem posições das empresas cujos órgãos de Administração atualmente integro.

À medida que evoluem os Mercados de Capitais, especialmente, mercado de ações e Bolsas de Valores, com a crescente participação de novos atores, nomeadamente, os chamados Emergentes, acentuam-se características novas e, de certa forma, estranhas ao funcionamento dos mercados já maduros, sobretudo, em sua atual conformação, fruto de seculares aperfeiçoamentos.

Como atuante, já por várias décadas, deste mercado, tanto naqueles tradicionais e, por isto mesmo, referenciais, quanto naqueles nuper-ingressados, que trouxeram outros perfis sociais, políticos e culturais, procuro identificar novos posicionamentos e respectivos reflexos.

Dentre os vários temas que têm suscitado debates e análises, dois tornaram-se paradigmáticos, recebendo crescente atenção por parte de agentes do mercado e membros da academia.

O primeiro vem a ser o entendimento das figuras do Acionista Controlador e do Acionista Minoritário e a complexidade de suas relações.

O Controlador é um ente cuja associação com a empresa, se não desde seus primórdios e fundação, será sempre de longa duração, o que não ocorre, necessariamente, com o minoritário, que pode até permanecer por longo prazo, porém, desde que seus objetivos, que podem transcender à rentabilidade e incluir metas sociais, científicas e outras mais, como segurança, estiverem sendo satisfeitos.

Como o qualificativo indica, o Controlador, pelo volume majoritário de sua propriedade, assume a faculdade inquestionável, respeitada a legislação, de exercer seu poder de controle, reconhecido na Lei das Sociedades por Ações. O Minoritário, por sua vez, vê-se limitado no exercício daquilo que objetiva, desde que devidamente respeitado e adequadamente protegido.

Ou seja, o Controlador não pode atuar da forma que lhe aprouver se isto implicar em agredir os direitos e prerrogativas do Minoritário. A este, por sua vez, não cabe insurgir-se contra atos do Controlador, desde que perpetrados sob total império da legislação.

Isto posto, surge, como expressivo diferencial a dimensão tempo e a liberdade transacional assim como o novel conceito de Governança Corporativa.

O Tempo é marcante, pois, se o Controlador tem uma relação com a empresa de quase-perenidade, sendo a alienação, mesmo que parcial, um fato decorrente de especial oportunidade ou especial necessidade, ambas tangenciando o traumático, o mesmo não ocorre com o Minoritário, que estenderá o seu período de propriedade enquanto estiver satisfeito com resultados e perspectivas, não hesitando em vender suas ações quando, como bem disse Camões, “...que outro valor mais alto se alevanta”! No caso, com frequência, recomendações de Agentes do Mercado.

Do que foi dito acima, surge a liberdade transacional. Variando, claro, a situação de liquidez, o minoritário sempre poderá desfazer sua posição, mesmo decidindo incorrer em prejuízos. É óbvio que ao Controlador não existe esta possibilidade, ou, quando ocorre, refere-se a montantes limitados e sempre causam questionamentos quando não a impossibilidade decorrente de cláusulas de financiamento restritivas.

A necessidade de recursos crescentes por parte das empresas, aí inclusas aquelas de controle estatal, bem como a procura de investidores por aplicações mais rentáveis, ainda que representando maior risco, resultou na aproximação que, após período relativamente longo e não poucos acidentes e frustrações, deu origem à legislação ampla e abrangente, bem como aos órgãos de controle, normatização e fiscalização, encontrados na quase totalidade de países.

Mais recentemente, contudo, constatou-se que os instrumentos legais, ainda que imprescindíveis, não governavam adequada e suficientemente todos os aspectos comportamentais que surgem nas relações entre empresas e seus públicos de relacionamento, assim como Controladores e Minoritários, entre outros. Surgiu, ainda nas duas últimas décadas do século XX, o conceito de Governança Corporativa, que se assenta no tripé Transparência/Comunicação/Respeito, este, no tocante ao relacionamento Controlador-Minoritário, independendo do volume detido pelos investidores.

Torna-se lícito afirmar que a governança das estatais é objeto de aprimoramento, cumprindo observar a atuação de órgãos como a CVM e a SEST, bem como a vigilância e questionamentos exercidos pela AGU e pelo TCU. A Transparência expandiu-se, praticamente, abrangendo todos os atos, planos e projetos das empresas estatais, que têm recebido adequada Comunicação e tornando-se largamente conhecida a presença dos citados órgãos de controle. Igualmente, existe Respeito, traduzido pela observância da legislação e normas. Isto, contudo, não seria suficiente para tornar a Governança das empresas estatais fator de confiança para os diversos públicos-alvo não fosse o simultâneo aperfeiçoamento dos agentes de Mercado, sua capacidade de analisar, cultura diversificada e competência de questionar.

Todos os públicos de interesse sabem que empresas estatais são aquelas que têm no governo o seu Acionista-Controlador e que, sem transgredir a legislação, especialmente direitos de Minoritários, nem os propósitos das empresas, incluindo as expectativas destes Minoritários e os fatores que os levaram a direcionar recursos associando-se ao Controlador, estes procurarão como satisfazer demandas e necessidades da sociedade.

A Lei nº 13.303, Lei das Estatais, surgiu como instrumento para impedir a repetição de aviltantes desvios comportamentais identificados, cujas consequências ainda se fazem sentir. Como todo instrumento legal, estará sempre sujeita a aperfeiçoamentos, porém, cabe reconhecer sua eficácia.

No clima emotivo e passional que recentemente se instaurou, repetiram-se temas e observações que carecem de explicações sensatas e, sobretudo, serenas.

Primeiramente, cumpre enfatizar que a legislação, no tocante a obrigações e, consequentemente, comportamento, não distingue o Administrador eleito pelo Controlador daqueles levados à posição pelo voto dos Minoritários, todos comungando, fundamentalmente, da obrigação primordial de atender ao interesse da empresa, repita-se, nos termos da legislação e normas. É natural que convivam divergências na interpretação do que melhor atende aos interesses da empresa, seja esta de controle estatal ou privado. A legislação e a atuação dos diversos órgãos de fiscalização e controle já asseguram a requerida higidez da governança, seja em empresas de controle estatal, seja nas de controle privado, cabendo aos Administradores o correto desempenho de suas obrigações. Se àqueles que representam o Acionista-Controlador não cabe propugnar medidas que extrapolem suas faculdades, também aos representantes de Minoritários não cabe subverter o predomínio da propriedade, repita-se, tudo sob o império da legislação. Assim, a governança das empresas de controle estatal, da mesma forma como de qualquer empresa de controle privado, estará preservada pela atuação íntegra e competente de seus Administradores.

Ingerência vem a ser uma intromissão indevida, ou seja, em desrespeito à legislação. O que o Acionista-Controlador, seja em empresa estatal, seja em empresa privada, fizer em estrito respeito à legislação jamais poderá ser taxado de intromissão, embora, em certas situações, se não o fizer, poderá muito bem ser acusado de omissão! Não surpreende que, no mundo inteiro, encontramos investidores, institucionais e pessoas físicas, reconhecidos por sua capacidade analítica e exigências severas, e que direcionam recursos para empresas de Controladores com apreciável histórico de sucesso, mas, que, respeitada a legislação, não abdicam do predomínio do exercício de sua visão do negócio!

A temática ESG, Ambiente/Social/Governança adquiriu relevância crescente, sobretudo, nestes dois últimos anos, o que não deixa de ser surpreendente porque, ao longo de vários anos, predominou forte relutância em função de potencial aumento de custos. Eu mesmo me recordo de pesquisa de mercado realizada nos Estados Unidos, ainda na década de 60, na qual se perguntava a receptividade de proprietários de automóveis em dispor de veículos e combustíveis com menor emissão de gás carbônico, pagando alguns cents a mais por galão de combustível ou algumas dezenas de dólares a mais por veículos aprimorados e significativa maioria declarou-se contrária!

A evolução cultural e maior disponibilidade de informações, inclusive identificando a receptividade do consumidor de hoje, alteraram este cenário de tal forma que, mesmo sob a grave crise que o Brasil tem vivido desde o início da pandemia, nota-se, com satisfação, diga-se, a identificação e valorização por parte de significativo número de empresas com as causas ambientais.

Ruy Flaks Schneider


Continua...