AMEC | Opinião

FRUSTRANDO EXPECTATIVAS

O que é um mercado? Antigamente a visão que se tinha era de um bando de operadores gritando ao telefone, comprando e vendendo ações. Isso não existe mais. A tecnologia desmaterializou os locais de negociação, e no processo deixou mais fácil entender que o mercado não é isso. O mercado é confiança. É um ambiente no qual compradores e vendedores se sentem seguros para negociar ativos. Poupadores precisam saber que selecionarão seus investimentos baseados em informações verídicas. Que os administradores que empregarão seu capital serão competentes e honestos. E que terão direito a uma fatia proporcional dos resultados das empresas escolhidas - seja o resultado positivo ou negativo. Se alguém compra 1% de uma empresa, deve ter 1% de seu resultado. Não mais - pois estaria se beneficiando desproporcionalmente - e não menos, pois estaria sendo prejudicado.

Essa confiança não engloba unicamente a obediência às leis e aos regulamentos. Dada a complexidade das relações no mercado de capitais, há uma série de contratos tácitos feitos entre os participantes, que são tão ou mais importantes do que aqueles escritos. Uma empresa que tradicionalmente paga altos dividendos e de repente para de fazê-lo, sem mais explicações, não está necessariamente quebrando nenhuma lei. Mas sem dúvida está minando o seu contrato implícito com seus investidores, que se sentirão desapontados e podem optar por vender as suas ações. Esses contratos tácitos ou implícitos são partes daquilo que se convencionou chamar de soft law, ou “quase-direito”, na tradução literal.

Uma das iniciativas autorregulatórias de maior sucesso no mundo nas últimas décadas foi criação do Novo Mercado pela Bovespa – hoje B3. Através de um “checklist” de itens críticos de governança, o segmento procurou afastar alguns dos riscos mais evidentes ao tratamento justo dos acionistas minoritários. Teve sucesso em boa parte dos seus objetivos. Mas ao longo dos últimos anos tem sofrido grandes desgastes de credibilidade devido a ações tomadas por algumas das empresas listadas no segmento. Na maior parte dos casos, essas ações não agridem diretamente a letra fria da norma – mas atingem a sua alma, a sua essência, fragilizando assim a confiança dos investidores em todo o sistema.

O primeiro exemplo disso foi o da Cosan. Admitida no Novo Mercado, no qual o conceito de “uma ação, um voto” é central, decidiu fazer uma reestruturação societária, criando uma holding em paraíso fiscal, com poderes de voto diferenciado, conferindo elevada alavancagem ao acionista controlador. Na prática, quebrou a premissa de que o poder político da companhia deve ser proporcional ao capital aportado, nesse caso através de uma estrutura piramidal, turbinada pelas super voting shares (ações com múltiplo poder de voto) da controladora offshore.

A mesma Cosan feriu o espírito do Novo Mercado, ao tentar adquirir o controle da então ALL com elevado prêmio em relação ao valor de mercado. A estrutura baseava-se na composição acionária da companhia, no seu acordo de acionistas e no seu estatuto. Eliminava-se assim mais um pilar da estrutura do Novo Mercado – o direito de tag along, ou seja, de que todos os acionistas sejam tratados com igualdade quando a empresa é vendida.

Seguiram-se outros casos de empresas alienadas sem que houvesse oferta pública aos investidores: Tenda, empresas do Grupo X, Usiminas*, dentre outras.

(*) A Usiminas não faz parte do Novo Mercado, mas teoricamente seus acionistas ordinaristas deveriam ter recebido oferta pública nos termos do Artigo 254-A da Lei 6.404/76.

Em 2015, o caso mais criativo de todos ao espírito dos segmentos diferenciados de governança: o advento das ações “superpreferenciais” da Gol, que permitem, sem nem mesmo se preocupar com a criação de uma pirâmide, elevadíssima alavancagem do poder do acionista controlador.

Agora estamos testemunhando mais uma empresa integrar-se àquelas que se escudam no formalismo, enquanto corrói a essência por trás da criação do Novo Mercado. E, infelizmente, agora falamos de uma pioneira – uma empresa identificada com a própria gênese do segmento, já que foi a segunda autorizada a trazer as letras “NM” no seu código de negociação: a Sabesp.

O Governo do estado de São Paulo submeteu à Assembleia Legislativa projeto de lei com o objetivo de criar uma empresa holding, que deterá o controle da Sabesp, tendo sido aprovado no início de setembro. A intenção declarada é atrair investidores para a nova empresa, com o atrativo de que esses trariam capital adicional para investir nas necessidades de saneamento básico do estado de São Paulo. A nova empresa poderia inclusive ter ações preferenciais. Num cenário hipotético, o governo poderia manter o controle da empresa, reduzindo sua participação no capital total da Sabesp dos atuais 50,3% para algo como 17%. Estaria, portanto, emulando a estrutura das antigas empresas “um terço, dois terços” (i.e., um terço de ações com direito a voto, dois terços de ações sem direito a voto), permitidas na nossa legislação até a reforma de 2001, que limitou as preferenciais a 50% do capital.

O governo do estado está fazendo algo ilegal? De maneira nenhuma..

Mas ele está de certa forma colocando em dúvida a sua própria credibilidade. Nas seguidas ofertas públicas que fez de ações da Sabesp, as regras do Novo Mercado foram essenciais para que os investidores se sentissem confortáveis para acreditar na companhia e no seu controlador. Agora, depois de ter recebido o produto dessas ofertas, o controlador afasta-se dos conceitos que pautaram a criação do Novo Mercado, alavancando-se e criando uma estrutura inerentemente mais conflituosa do que a existente.

Infelizmente, a atração de investidores privados para um “grupo de controle” não teria o condão de eliminar tais conflitos, ou mesmo de mitigar os problemas de governança corporativa inerentes às empresas de controle estatal. Já vimos outros exemplos onde isso foi colocado, e o resultado acabou sendo a montagem de estruturas de alta complexidade, inerentemente conflituosas, e que acabaram se revelando custosas para a companhia e para os acionistas. Cemig e Sanepar são apenas dois exemplos disso.

Tampouco queremos entrar no mérito aqui do uso da nova estrutura para atrair investimentos privados para um setor de primeira necessidade. Mas merece registro que, dentro de um ambiente de respeito a contratos e de realidade tarifária, tais investimentos poderiam ser viabilizados pela própria Sabesp ou por outros operadores, sob um ponto de vista de estrita racionalidade financeira. Se prerrogativas de acordos de acionistas, estatutos, Golden shares e outros elementos criativos são necessários para atrair tal capital, é no mínimo possível que a racionalidade econômica não esteja totalmente presente.

Ao contrário dos casos de Gol e Cosan – nos quais a B3 poderia ter utilizado seu poder discricionário para proibir ou dificultar a reorganização societária que tornou inócuas as suas regras – publicada a nova lei, não há nada que pode ser feito para que ele não seja implementado. Como mencionamos, ele não fere diretamente nenhuma lei ou regra existente – apenas as contorna.

A importância do conceito uma ação, um voto tem sido reiterada pelos investidores institucionais ao redor do mundo. Em países com fragilidades na proteção dos investidores, como é o caso do Brasil, ele se torna ainda mais importante. Seu poder vem da limitação dos conflitos de interesses entre os tomadores de decisão (controladores) e os fornecedores de capital (minoritários). Aqui, cabe a lição do professor Dan Ariely, da Duke University: “A desonestidade é quase sempre causada por um conflito de interesses”. Em outras palavras: por mais que uma iniciativa seja bem-intencionada, se ela criar estruturas conflituosas será um incentivo para problemas mais a frente.

Existem diferentes nuances na abordagem que a regulação deve ter para o assunto uma ação, um voto. Alguns defendem a proibição de estruturas que divirjam delas – foi a abordagem da bolsa de Hong Kong, por exemplo, que proibiu a abertura de capital da Alibaba naquele mercado. Outros acreditam que o mercado deva ser livre para apreciar e precificar estruturas diferentes – se alguém quer oferecer uma estrutura de governança com menos qualidade, tudo bem. Isso será ajustado no preço.

Mas o que é unânime é a visão de que vender um ativo com determinadas características e depois eliminá-las, é muito negativo para a credibilidade. É o tradicional “veja bem”... as letrinhas miúdas nos contratos do dia a dia. No mercado de capitais, o combinado não sai caro. Mas combinar algo e depois negá-lo, ainda que com base legal, custa credibilidade.

Um outro exemplo dessa frustração de expectativas ocorreu em 2005. Naquele ano houve a abertura de capital do Banco Nossa Caixa. O maior ativo do banco era o acesso exclusivo à folha de salários dos funcionários públicos do estado. Em reuniões privadas com investidores, representantes à época do banco e do controlador reiteravam que isto era um ativo inalienável da instituição. Pouco tempo depois encontrou-se uma forma legal para leiloar a folha de salários novamente – fazendo os investidores pagarem duas vezes pelo mesmo ativo. Tudo dentro da lei. Mas fora das práticas de quem deseja criar uma parceria de longo prazo com os fornecedores de capital.

Se executar a operação pretendida o governo do estado estará hipotecando a credibilidade construída ao longo dos anos como um dos entes estatais mais confiáveis para os investidores – e particularmente o goodwill criado com o pioneirismo da Sabesp no Novo Mercado.

Como diz o ditado anglo-saxão: “fool me once, shame on you; fool me twice, shame on me”. Em tradução livre: Engane-me uma vez, erro teu; engane-me duas vezes, erro meu. 

(*) A AMEC publica periodicamente na Revista RI - artigos a respeito de posições importantes para a associação. O objetivo é facilitar o reconhecimento da Amec como referência em discussões a respeito do nosso mercado de capitais, e difundir as ideias defendidas pela associação para o público em geral.
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