Educação Financeira

EMPRESAS DE RESPONSABILIDADE LIMITADA

Os países que adotaram com força as empresas de responsabilidade limitada se desenvolveram e assim, em um ciclo virtuoso, espalharam as corporações através do mundo. Infelizmente aqui no Brasil lindo e trigueiro, terra de samba e pandeiro, nosso senso comum ainda não incorporou o conceito revolucionário da responsabilidade limitada.

O senso comum é um conjunto de valores implícitos que expressa a cultura popular e os valores de um povo. É a expressão da sociedade em sua essência. Ele constrói o pano de fundo do comportamento social de uma nação e serve de código do que é ritualizado e aceito sem questionamento por grande parte da sociedade. Este código social implícito possui poder, influencia as leis e a organização da sociedade, por vezes acarretando ganhos ou perdas nem sempre percebidos.

Este artigo foi escrito e será publicado em meio a uma campanha política que vai renovar o executivo e o legislativo do governo federal e dos estados. Fico impressionado e admirado com a capacidade que os políticos têm em ler a consciência coletiva, o código social. Políticos ordinários usam desta capacidade para dizer aquilo que os eleitores querem ouvir e, assim, ganhar seus votos. Estadistas decodificam os códigos e mostram para a sociedade que eles devem ser questionados à luz da lógica e da razão, pois frequentemente podem gerar mais perdas do que ganhos para a sociedade.

Eu tenho duas profissões que gozam de uma avaliação antagônica no senso comum dos brasileiros. Há trinta e dois anos sou professor universitário. Amo minha profissão e tenho profundo orgulho do meu trabalho. Felizmente, a sociedade brasileira tem um ótimo conceito da profissão de professor. Sempre que me identifico como professor recebo claros sinais de respeito e admiração. E recebo também, infelizmente, olhares de pena — estes originados pela realidade dos baixos salários e condições de trabalho.

Além de professor também sou empresário e me orgulho muito desta atividade. O conceito que a sociedade tem de empresário, porém, é radicalmente diferente. Se me apresento como empresário sinto claramente a mudança de atitude nas pessoas. Como professor sou herói. Como empresário, no mínimo, sou suspeito de ser vilão.

São duas visões estereotipadas que não resistem a um mínimo esforço de análise lógica e racional para demonstrarem suas fragilidades. Poucos empresários são desonestos e corruptos e nem todos os professores deveriam ser admirados.

Como disse, estadistas deveriam questionar o senso comum. Mas o que vemos são políticos aproveitando do senso comum para ganhar votos. Então nesta eleição são unânimes em reconhecer a importância da educação para o futuro da nação e não cansam de falar das intenções, nem sempre verdadeiras, de valorizar os professores e aumentar seus salários. Estadistas deveriam demonstrar para a sociedade que muitos professores ganham mais do que merecem e que alguns deles deveriam ser demitidos por terem perdido o talento e a disposição para o magistério.

Este senso comum ao mesmo tempo heroico e vitimista dos professores tem preço. Na última semana uma aluna me procurou pois estava pensando em seguir a carreira acadêmica, área para qual claramente demonstrava aptidão. Ela temia os baixos salários e as condições de trabalho que enfrentaria. Procurei mostrar a ela as vantagens da profissão. Argumentei que, embora os salários não sejam elevados, eles permitem uma vida digna. O stress e a pressão por maiores que sejam são menores do que os de um executivo ou empresário. Imediatamente ela trouxe à tona toda uma carga de preconceitos contra os empresários, uma vilania trazida do senso comum -- e que cobra seu preço.

Yuval Noah Harari, autor da arrebatadora trilogia que perscruta o passado, o futuro e o presente da humanidade, aponta em seu primeiro livro, Sapiens, a ficção jurídica que criou a empresa de responsabilidade limitada como uma das mais engenhosas da humanidade. Segundo ele, um avanço responsável por grande parte do progresso da nossa espécie.

Até a invenção da empresa de responsabilidade limitada a propriedade só poderia pertencer a seres humanos de carne e osso. Somente pessoas físicas poderiam ser donas de alguma coisa e também só elas, em carne e osso, poderiam contrair dívidas.

Antes da empresa limitada, um descendente de Adão que instalasse nos fundos de sua casa uma forja à lenha para fabricar arados pensaria com muito cuidado antes de expandir os negócios. Por maior que fosse a demanda por seus produtos, ele correria um risco enorme caso tomasse um empréstimo. Se porventura não pagasse a dívida, ele perderia suas forjas, sua casa e todos os seus bens. Não suficiente, seus filhos poderiam ser tomados como escravos para completar o pagamento do débito.

Com o surgimento das empresas de responsabilidade limitada, esse mesmo ferreiro teve a possibilidade de criar uma nova entidade que, mesmo sem ser de carne e osso, é capaz de ter bens, direitos e obrigações. Daí vem o nome adotado nos Estados Unidos para as empresas de responsabilidade limitada: corporação, que deriva de corpus (corpo em latim).

As corporações domesticaram o risco, pois permitiram àquele ferreiro escolher qual parte do seu patrimônio responderia por suas dívidas e obrigações. Quando alguém negocia com uma empresa de responsabilidade limitada sabe que não está negociando com uma pessoa propriamente dita, mas com uma entidade sem existência física, que existe como realidade intersubjetiva.

E como funciona no Brasil?
O ordenamento jurídico brasileiro prevê de forma clara as empresas de responsabilidade limitada e sua evolução, as sociedades anônimas, também de responsabilidade limitada. Porém, o senso comum interfere na forma como as leis são interpretadas.

Aqui prevalece a ideia de que se uma corporação vai à falência, este “crime” deve ser imputado aos corpos de carne e osso que a criaram. Se uma empresa tem problemas prevalece no judiciário a ideia de que deve ser arrancado do empresário até o último centavo que lhe pertence. O BacenJud é uma ferramenta poderosa para perscrutar as entranhas dos descendentes de Adão que tiveram a péssima ideia de abrir uma empresa. Se ainda não for suficiente, que se tire dele a liberdade, tal e qual se fazia na idade média.

Nos países em que o conceito de responsabilidade limitada é respeitado, tudo que se busca após uma falência é preservar a peça fundamental que criou a empresa: o empreendedor. Entende-se que o tropeço pode não ter sido sua culpa, e mesmo que o tenha sido, com as lições que aprendeu ele poderá criar novas empresas e prosperar. Lá o fracasso não é crime, mas sim um degrau que pode resultar em um sucesso futuro.

O preconceito contra empresários, presente no senso comum brasileiro e incorporado pelo sistema judiciário, se traduz em normas e leis que desestimulam a abertura de empresas e o progresso brasileiro. Se tivéssemos estadistas disputando as eleições eles ocupariam o horário eleitoral, pago pelos contribuintes, para demonstrar aos eleitores que sem empresas, não existe impostos, desenvolvimento e principalmente empregos. Porém, o que vemos são políticos reforçando os estereótipos contra empresários e banqueiros. Preferem o caminho fácil de dizer o que o povo quer ouvir para ganhar votos em vez de dizer o que o povo precisa ouvir para obter crescimento econômico.

A propósito, minha empresa é de reflorestamento, outra atividade cercada de preconceitos negativos. Quando criticam minha atividade eu poderia elencar inúmeros mitos que a cercam. Mas prefiro deixar uma pergunta: já que você é contra reflorestamento, como pretende fazer para viver sem papel higiênico?

Podemos continuar perseguindo empresários, mas vale outra pergunta: como vamos gerar os milhões de empregos de que o Brasil precisa?


Jurandir Sell Macedo
é doutor em Finanças Comportamentais, com pós-doutorado em Psicologia Cognitiva pela Université Libre de Bruxelles (ULB) e professor de Finanças Pessoais da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
jurandir@edufinanceira.org.br


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