Orquestra Societária

ENTREVISTA: ELIANE LUSTOSA, CONSELHEIRA CERTIFICADA PELO IBGC

ESG: é preciso coerência entre dizer e fazer
Nesta 80ª edição da seção: Orquestra Societária - sim, chegamos a 80 edições desde março de 2014 - apresentamos a quarta entrevista do projeto ESG: uma partitura que está sendo escrita, que compreende 12 entrevistas com conselheiras de administração altamente qualificadas, com ampla e diferenciada experiência em temas como governança corporativa, gestão, sustentabilidade, ESG, inovação, tecnologia e transformação entre outros. Nossa entrevistada desta “simbólica” edição, é a conselheira Eliane Aleixo Lustosa, economista, mestre em Economia e doutora em Finanças, ex-executiva financeira em várias organizações privadas e públicas, integrante da Câmara de Arbitragem da B3 e de outras instituições de relevo. Seu currículo, aqui apresentado, fala per se. Nesta entrevista, Eliane compartilha conosco sua visão sobre ESG.

Eliane Aleixo Lustosa é conselheira de administração da CCR e da BrasilAgro, além de instituições sem fins lucrativos como o Instituto de Estudo do Trabalho e da Sociedade (IETS) e o Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM-RJ). Atuou como conselheira em várias outras empresas, tais como: ALL Logística S. A. (atual Rumo), Fibria (atual Suzano), Metalurgica Gerdau S. A., Coimex, CPFL, Coteminas e Perdigão (atual BRF).

A conselheira integra a Câmara de Arbitragem da B3, bem como o Centro Brasileiro de Mediação e Arbitragem (CBMA), a Câmara Brasileira de Resolução de Conflitos em Energia e Mineração e a Comissão de Estratégia do Instituto Brasileiro de Governança Corporativa (IBGC). É conselheira certificada pelo Instituto e possui o ESG Competent Boards´ Global Certificate and Designation for Board Members. É professora no IBGC em cursos de governança corporativa e ESG (este último em parceria com o Global Reporting Initiative - GRI).

Ao longo de sua carreira, ocupou diversos cargos executivos no setor privado. Foi Diretora Financeira da LLX Logística (atual Prumo Logística S.A.), Vice-Presidente de Finanças e Controle do Grupo Abril S.A., Diretora de Administração e Finanças da Globex Utilidades S. A. (Ponto Frio) e Diretora Financeira e de Investimentos do Fundo de Pensão dos Empregados da Petrobras (Petros). No setor público, foi Diretora do BNDES, tendo atuado nas áreas de Desestatização e Mercado de Capitais. Foi também Diretora do Departamento de Proteção e Defesa Econômica da Secretaria de Direito Econômico do Ministério da Justiça (DPDE/SDE/MJ).

Eliane é graduada em Economia pela PUC-Rio, instituição na qual também obteve os títulos de Mestre em Economia e o Doutora em Finanças. Foi professora da PUC-Rio, ministrando a disciplina Microeconomia para o curso de graduação do Departamento de Economia e de Economia Internacional para o Curso de Mestrado do Instituto de Relações Internacionais. Foi economista do Centro de Estudos Monetários e de Economia Internacional do Instituto Brasileiro de Economia da FGV (Rio de Janeiro). Acompanhe a entrevista.

RI: Como a senhora avalia a evolução da sustentabilidade e do tema ESG ao longo do tempo?

Eliane Lustosa: Sustentabilidade e ESG – Environmental, Social and Governance – são temas que vêm ganhando cada vez mais força, mas não são exatamente recentes. Muitos autores consideram a publicação do Relatório Brundtland (Our Commom Future, 1987), produzido pela Organização das Nações Unidas (ONU), como ponto de mutação, a partir do qual, nos anos oitenta, o movimento pela sustentabilidade avançou e alcançou vários países, incluindo o Brasil. O que este movimento produziu? Uma evolução natural no conceito de capitalismo em várias economias, migrando para o chamado capitalismo de stakeholders. A crescente preocupação com questões de ordem ambiental, social e de governança – ASG ou ESG é desdobramento desse movimento, que impacta principalmente a forma como as organizações privadas atuam, mas numa visão além de si mesmas. Em outra entrevista nesta Revista RI, tive a oportunidade de tratar um pouco de ESG, tema que, apesar de não ser novo, tem sido tratado de forma cada vez mais estruturada e consistente pela sociedade em geral e, em particular, pelo mercado de capitais. Para ilustrar, vale mencionar que, desde 2003, o Código de Melhores Práticas, do Instituto Brasileiro de Governança Corporativa (IBGC), já considerava “responsabilidade corporativa” (entendida como ‘considerações de ordem social e ambiental na definição dos negócios e operações’) como um de seus quatro princípios basilares, junto com os três outros já reconhecidos: equidade, transparência e prestação de contas. Desde então, o tema vem ganhando cada vez mais relevância. Na última edição do Código, em 2015, as questões Sociais e Ambientais passaram também a constar das premissas do código, ou seja, E e S foram considerados como parte intrínseca da governança. Em outras palavras, ao longo do tempo, estas considerações se tornaram premissas inerentes a uma boa governança e, por essa razão, foram tratadas transversalmente no Código do IBGC. Acompanhar de perto a evolução deste documento foi especialmente interessante, pois, como coordenadora do time de especialistas que participou das últimas três revisões do Código, pude debater intensamente temas que refletiram, em boa medida, o que aconteceu no ambiente institucional, nas empresas e no mercado de capitais, tanto no Brasil como no mundo, ao longo das últimas duas décadas. Nesse período, após intenso esforço de disseminação dos pilares e das boas práticas de governança corporativa, acredito que o conceito de governança foi incorporado no dia a dia das empresas, mas ainda há longo caminho a ser percorrido no devido entendimento e tratamento das questões socioambientais. Os resultados de múltiplos esforços em prol de boas práticas de sustentabilidade podem ser percebidos em variadas frentes. Na agenda mundial das empresas, métricas associadas a indicadores ESG têm sido crescentemente utilizadas. Para as empresas abertas que decidem pela publicação do Relato Integrado, por exemplo, requisitos associados a qualidade, rastreabilidade e confiabilidade dos dados têm sido aprimorados, haja vista a Orientação do Comitê de Pronunciamentos Contábeis n. 09/20. Destaco aqui, também, as diversas medidas adotadas por instituições do nosso mercado de capitais, como o Novo Mercado e os demais níveis diferenciados de governança da B3. A Comissão de Valores Mobiliários - CVM também tem tido olhar bastante atento para o tema: a recente Resolução n. 59/2021, que entrará em vigor em janeiro de 2023, ampliou substancialmente a prestação de informações sobre as práticas ESG no Formulário de Referência disponibilizado pelas empresas abertas registradas nas categorias A e B. Como pode ser observado, o cerco regulatório em relação à adoção de práticas ESG no mercado de capitais está se apertando, em linha com o que já acontece com as informações financeiras, que devem ser auditadas e corretamente divulgadas ao mercado. Nesse contexto, cabe, sem dúvida, ao Conselho de Administração assumir plena responsabilidade e zelar pela adequada implementação das práticas socioambientais, que devem ser condizentes com o propósito e incorporadas na estratégia das empresas. Faz parte dos deveres fundamentais dos conselheiros definir o chamado “tom do topo” e monitorar o corpo executivo, garantindo a devida implementação e acuracidade na divulgação das práticas ESG. Em minha visão, os investidores, especialmente os institucionais, também tem exercido papel importante no processo de evolução das práticas socioambientais. Estão cada vez mais preocupados e atentos a eventuais lacunas ou gaps entre o que a organização afirma fazer e aquilo que ela efetivamente faz. Monitorar a coerência entre o dizer e o fazer das empresas faz parte de dever fiduciário desses agentes cada vez mais ativos no mercado de capitais. Comportamentos do tipo greenwashing (marketing que sugere falsos benefícios ambientais), assim como greenwishing (intenções verdes, ou seja, descompasso entre ações adotadas e factibilidade do resultado) têm sido crescentemente objeto de atenção, notadamente dos investidores internacionais. Nos conselhos de administração em que tenho atuado percebo que a demanda desses investidores tem provocado reflexões importantes, tais como: quais são os objetivos estratégicos da organização? Eles incorporam a lógica ESG? Existem metas estabelecidas? Os indicadores adotados são concretos e factíveis? As metas são divulgadas e monitoradas? A remuneração dos dirigentes incorpora e é condizente com essas metas? O que a empresa está comunicando tem consistência com a execução? Nesse contexto, as empresas têm sido instadas a assumir responsabilidade e contribuir para mitigar o impacto de sua atuação em pessoas e no planeta, adotando robusto plano de sustentabilidade com medidas e metas mensuráveis e divulgadas de forma clara aos diversos públicos interessados. Aqui vale mencionar que os ODS (Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da Organização das Nações Unidas – ONU) podem contribuir para a adequada comunicação com as diversas partes interessadas, ou seja, os stakeholders. A escolha dos ODS deve considerar como os negócios de cada empresa impactam, positiva e negativamente, estes objetivos, permitindo gerenciar oportunidades e riscos. Os ODS podem servir como framework comum global para nortear propósitos e estratégias, ajudando a ordenar a comunicação com os agentes externos. Como mencionei anteriormente, o conselho de administração deve estar atento, pois o risco é este processo virar um tick the boxes. Daí a importância de uma matriz de materialidade bem elaborada e informada aos públicos de interesse, em linha com os princípios de transparência e prestação de contas que baseiam as boas práticas de governança corporativa.

RI: Em sua visão, existem análises estruturadas que possam contribuir para um melhor entendimento do S (social) da sigla ESG? 

Eliane Lustosa: No front ambiental, os indicadores são mais conhecidos. Por exemplo, quando se trata de neutralidade de carbono, sabe-se que é mais fácil contabilizar e informar indicadores e metas. Entretanto, é preciso reconhecer que o recorte social ainda está engatinhando. Se já evoluímos consideravelmente no G e no E da sigla ESG, há um bom caminho a ser trilhado para melhor compreensão do S. As questões sociais não dizem respeito a filantropia, mas a uma legítima preocupação que as empresas devem ter com as comunidades e pessoas impactadas por suas operações. Estão relacionadas a atuar com base em objetivos, métricas e metas. A matriz de materialidade, se bem construída, pode ser importante instrumental utilizado pelas organizações para mapear e hierarquizar as variáveis mais importantes ou críticas ao controle de suas operações. Para tal, é fundamental que a matriz seja construída por meio da escuta ativa dos diversos stakeholders, com foco especial naqueles mais impactados e envolvidos com a atividade de cada empresa. A partir dessa fotografia inicial, que trata dos diversos aspectos ESG associados ao processo produtivo de cada empresa, devem ser estabelecidos indicadores e metas inseridos na formulação e implementação da estratégia empresarial, garantindo, desta forma, a necessária licença para operar empresarial, pautada por riscos mais mitigados. Tanto o S quanto do E, da sigla ESG, têm a ver com um conceito que nós, economistas, denominamos externalidades. Trata-se dos impactos que as operações organizacionais produzem no mundo externo, das consequências de suas operações sobre o meio ambiente, as comunidades e as pessoas. Diagnosticar esses impactos e criar soluções para mitigá-los é algo que pode trazer, na prática, grandes benefícios para as organizações e o ambiente no qual elas operam. Na minha avaliação, a devida observância do princípio “responsabilidade corporativa” deve, primeiramente, se fundamentar em propósito claro, conectando a realidade organizacional a necessidades locais, regionais e do planeta. Trata-se de definir um propósito verdadeiro e inspirador. Em segundo lugar, devem ser definidas métricas ou indicadores que façam sentido para a organização no curto, médio e longo prazos. É preciso demonstrar qual será o caminho adotado para o atingimento das metas definidas, ou seja, a empresa deve divulgar metas intermediárias e, não apenas, belos objetivos longínquos, mas não factíveis. A partir da fotografia inicial, define-se o status quo inicial e traçam-se o caminho e as metas que a empresa pretende atingir a cada ano, e assim sucessivamente, até o longo prazo, considerando o desejo a ser perseguido para 2030 ou 2050, por exemplo. Por que entendo que o modus operandi acima é o adequado? Ora, os investidores institucionais, conforme dito, têm evoluído consideravelmente em seus controles sobre as organizações que investem e acompanham. Cobram coerência entre o discurso e a prática, bem como absoluta transparência. Desejam entender o caminho com objetivos, métricas, metas e ações visíveis e que levem a um ou mais patamares desejados. Ao observar diversas empresas anunciando metas arrojadas de Net Zero para 2050, me lembro do famoso economista John Maynard Keynes: como “no longo prazo, estaremos todos mortos”, pode-se anunciar qualquer meta, por mais desafiadora que pareça, pois nenhum de nós estará lá para cobrar coerência. A falácia deste raciocínio é que os agentes de mercado estão cada vez mais educados e interessados em avaliar a razoabilidade das metas anunciadas. Qualquer escorregão que denuncie um possível gap entre o que é informado e as ações adotadas pode representar risco relevante, com consequências extremamente danosas para a reputação da empresa e, ato contínuo, restringir acesso a recursos, financeiros e humanos, culminando não apenas em perda de valor de mercado, mas, até mesmo na inviabilização das suas operações.

RI: Como a senhora entende o papel do Estado, das organizações e dos investidores nesse contexto de evolução da sustentabilidade e do ESG?

Eliane Lustosa: É papel do Estado, sem dúvida, apoiar o uso de inovações científicas e tecnológicas que capacitem o País a melhor enfrentar os desafios inerentes à situação-limite de sustentação e resiliência da biosfera, assim como viabilizar rede de proteção social que ajude a mitigar os impactos adversos da desigualdade social. Dentre as ferramentas que podem ser utilizadas para atrair recursos privados com foco no atingimento dos ODS, cabe destacar mecanismos de reforço de crédito, como seguros de performance, fundos garantidores ou, ainda, instrumentos de mercado de capitais, como cotas subordinada ou junior em estruturas de FIPs (Fundos de Investimentos em Participações), FIDCs (Fundos de Investimento em Direitos Creditórios) ou social impact bonds, estes ainda pouco utilizados. Tendo em vista o contexto de forte restrição fiscal, mecanismos como estes, que ajudam a reduzir falhas de mercado e permitem alavancar recursos privados em prol de causas socioambientais, são especialmente relevantes. No que tange aos incentivos setoriais, por exemplo, muitas empresas utilizam recursos públicos de forma descoordenada e sem estratégia bem definida. Maior coordenação com as ações voltadas para a melhoria da infraestrutura social brasileira seria fundamental para a boa implementação de políticas públicas, especialmente se aliadas a recursos privados voltados para causas sociais comuns. Aqui, à luz de tudo que conversamos no início desta entrevista, vejo uma conjuntura bastante propícia para catapultar o impacto das ações socioambientais já em andamento no mercado de capitais, com empresas e agentes de mercado se mobilizando em prol de ações ESG. Cooperação e coordenação entre políticas públicas e ações socioambientais utilizando instrumentos de blended finance poderiam aumentar significativamente o impacto das ações socioambientais em andamento e contribuir enormemente para o avanço e atingimento dos ODS. O Estado pode e deve fomentar as boas iniciativas e práticas socioambientais. Não necessariamente liderando questões ligadas à gestão dos negócios e escolhendo “empresários vencedores”, mas, sim, criando sinergias e induzindo comportamentos desejáveis para o desenvolvimento e o bem-estar social. No período que exerci função executiva na BNDESPAR, o braço de mercado de capitais do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social – BNDES, essa foi a tônica da nossa gestão: vender as participações em empresas maduras com acesso a recursos privados, concentrando as ações que pudessem alavancar recursos privados para setores e iniciativas mais disruptivas, do ponto de vista social e ambiental. Na minha opinião, um banco público não pode de forma alguma desconsiderar questões ESG ao prover recursos para o setor privado, seja via crédito ou equity. Caso os recursos sejam subsidiados, esse requisito deve ser ainda mais relevante e, necessariamente, incorporado como contrapartida. No início dos anos 2000, o BNDES teve papel fundamental como instrumento indutor das boas práticas de governança corporativa, contribuindo de forma determinante para o desenvolvimento do Novo Mercado. Da mesma forma, o uso de recursos públicos deveria necessariamente estar sempre condicionado ao desenvolvimento e incorporação de tecnologias menos poluidoras e melhorias na condição de vida das comunidades impactadas pelas operações organizacionais. Quanto a pressões dos investidores institucionais, não existem por acaso. Eles representam interesses de milhões de cidadãos-consumidores, cujos recursos devem ser tratados com alto nível de responsabilidade fiduciária. Cidadãos-consumidores pressionam organizações e investidores institucionais. Esses investidores, por sua vez, pressionam as organizações. E os Estados nacionais, além de regras formais, induzem comportamentos. Tudo isso conduz à necessidade de as organizações refletirem sobre o seu propósito e efetivo comprometimento com temas socioambientais.

RI: O que a pandemia COVID agregou às discussões sobre sustentabilidade e ESG? A senhora poderia discorrer sobre medidas práticas que as empresas têm tomado para enfrentá-la, com foco em pessoas?

Eliane Lustosa: O mundo pré pandemia já evidenciava severos desafios, como mudanças climáticas, escassez de água, desigualdade crescente, fome, pobreza estrutural e guerras, dentre outras distopias. Com a crise, que atingiu ricos e pobres, ainda que em intensidades distintas, afloraram reflexões mais profundas sobre o agravamento do atual estado de coisas na sociedade contemporânea. A partir desta constatação, acirrou-se a preocupação da sociedade em geral, e dos indivíduos em particular, em tomar decisões concretas pautadas por considerações mais inclusivas e socialmente responsáveis. Quando refletimos sobre a pandemia, observamos que ficaram mais evidenciadas do que nunca as enormes desigualdades sociais existentes, no Brasil e em âmbito global. Em minha visão, não é possível aceitar essas disparidades como algo com o que se deva conviver; esse tipo de pensamento não condiz com a visão ética contemporânea. Ao mesmo tempo, a crise COVID mostrou que as organizações e seus líderes podem e devem ter papel importante para minimizar os impactos de suas operações. Líderes preocupados fazem a diferença. A crise obrigou esses líderes a lidarem com uma situação sem paralelo na história corporativa recente. Eles tiveram que lutar para proteger a saúde física e mental de trabalhadores sob sua liderança. Precisaram mudar processos de trabalho de forma tempestiva para proteger trabalhadores, fornecedores e outros públicos. Foram compelidos a criar comunicação eficaz para engajar as partes interessadas em seus esforços. Têm feito uma gestão financeira sob grandes incertezas, que se elevaram exponencialmente e, em muitos casos, culminaram por destruir organizações. Esses líderes também tiveram, por fim, que lidar com seus próprios medos e fragilidades humanas. A preocupação com saúde e segurança dos trabalhadores não surgiu com a pandemia, mas tem estado crescentemente no centro de decisões das empresas, reforçando uma cultura de cuidado com seus colaboradores. Acredito que essas práticas e medidas vieram para ficar.

RI: Como o Conselho de Administração poderá conduzir o tema ESG nas agendas das organizações?

Eliane Lustosa: Como parte de sua responsabilidade fiduciária, cabe ao Conselho de Administração assumir total responsabilidade pelo tema ESG. O Plano de Sustentabilidade deve ser estruturado a partir do propósito da companhia e ter como ambição contribuir para a solução de desafios globais. Nesse contexto, a escolha dos ODS relevantes deve levar em consideração as implicações da operação da empresa em relação às pessoas e ao planeta. Para tal, pode-se utilizar a matriz de materialidade, que, se bem estruturada, consiste em relevante instrumento para embasar o debate a respeito dos possíveis cenários, seus respectivos impactos nas metas e nos ODS selecionados e, assim, contribuir para a definição de medidas compensatórias. O Conselho deve garantir que haja conexão entre propósito e estratégia, incorporando considerações socioambientais de forma clara e quantificável, com métricas e metas devidamente monitoradas e informadas às partes interessadas. Comportamentos do tipo greenwashing ou greenwishing são totalmente inaceitáveis e devem ser monitorados na matriz de riscos apresentada e debatida periodicamente como os conselheiros. Os relatórios financeiros devem incorporar e precificar as externalidades, sempre levando em consideração as recomendações do TCFD (Task-Force on Climate-related Financial Disclosures). No que tange a remuneração, cabe ao Conselho garantir que a bonificação dos executivos inclua métricas relevantes de ESG, que podem ser estruturadas pelo Comitê de Remuneração e propostas para deliberação do colegiado. Pensando nos principais stakeholders, a empresa deve desenvolver mecanismos permanentes de escuta, viabilizando uma comunicação mais inclusiva. Penso que “convidar as partes interessadas relevantes para a cozinha” pode fazer com que todos se envolvam e se sintam parte do processo, assumindo, portanto, maior responsabilidade em relação as ações adotadas.

RI: Em respostas anteriores, a senhora enfatiza a importância de objetivos, métricas e metas. Poderia discorrer sobre esse ponto específico, relacionando-o a ESG?

Eliane Lustosa: Quando penso em responsabilidade corporativa, penso em métricas ESG específicas para a organização. O que é mais importante mensurar em uma dada organização, sob o prisma ambiental? Insumos e seus níveis de poluição? Consumo de água? Emissão de gases poluentes? Neutralidade de carbono? Produção de resíduos? O que mais? E sob o prisma social? Frequência de acidentes? Gravidade do afastamento de pessoas? Nível de sensibilização interno? Aspectos específicos da cadeia de suprimentos? Cada organização terá suas especificidades. Em minha experiência profissional, aprendi que é fundamental que as organizações escutem. É importante trazer os seus críticos para perto de você. Ouvir as Organizações Não Governamentais (ONG´s) que fazem críticas. Aqueles que reclamam frequentemente podem ajudar a pensar sobre o que fazer, sobre como tratar externalidades, mitigar riscos socioambientais, prevenir crises e até tratá-las, se porventura ocorrerem. A verdade é que ao operar, a empresa, em alguma medida, produzirá externalidade negativa e, assim sendo, é importante ouvir as partes interessadas – e afetadas – e buscar adotar medidas compensatórias.

RI: Tendo sido executiva financeira em importantes organizações que operam no Brasil, qual seria sua mensagem aos líderes e gestores de organizações em nosso País?

Eliane Lustosa: No contexto macroeconômico, o setor público não tem sido capaz de lidar com os enormes e crescentes desafios socioambientais contemporâneos. Cabe, portanto, ao setor privado assumir a responsabilidade e atuar de forma estruturada e coordenada, cooperando para encontrar mecanismos e soluções que possam mudar completamente o atual estado de coisas, apoiando soluções duradouras para reduzir a desigualdade social e proteger o meio ambiente. Investidores sociais, ao atraírem a atenção para determinadas ações de cunho filantrópico, permitem a mobilização de recursos mais baratos, podendo atuar como forma de conscientização e alavanca para iniciativas de impacto com externalidade positiva relevante para a sociedade. Nesses casos, ao ajustar a relação risco-retorno de um projeto, assumindo parcela mais do que proporcional dos riscos (por exemplo, adquirindo cotas subordinadas sem receber remuneração adicional em relação às cotas seniors), pode-se atrair e alavancar capitais de mercado para viabilizar o volume de recursos necessários à sua implementação. Trata-se, portanto, de “jogo de soma positiva”, formado pela sinergia de interesses entre ações filantrópicas e de impacto com instituições e agentes financeiros, públicos ou privados. À medida em que cresce a consciência social dos indivíduos, que passam a cobrar “qualidade social” em suas aplicações financeiras, cria-se círculo virtuoso, aumentando o incentivo de gestores e investidores institucionais a exercer suas respectivas responsabilidades fiduciárias, buscando alocar seus recursos em investimentos mais inclusivos e de impacto. Dito de outra forma, ao passo em que investidores pressionam, empresas buscarão se ajustar para atrair aludidos recursos. Aqui observa-se importante oportunidade de políticas públicas mais inclusivas, qual seja: utilizar os chamados instrumentos blended finance para alavancar o capital privado em prol de investimentos ESG via instrumentos de mercado de capitais.

A responsabilidade é de cada um de nós, indivíduos e empresas. Investidores, trabalhadores e consumidores conscientes e responsáveis – ou seja, que consideram as consequências, ainda que marginais, de suas ações individuais no coletivo – podem e devem ser o motor propulsor de um novo paradigma civilizatório.

RI: Finalizando, a senhora poderia compartilhar com os leitores da Revista RI um momento altamente gratificante de sua profícua trajetória profissional?

Eliane Lustosa: Aprendi muito em cada uma das minhas diversas vivências profissionais, seja na academia, nos setores privado ou público. Agora, individualizando o conceito de propósito, nada se compara à gratificante percepção de estar contribuindo para algo de dimensão muito maior, em prol de uma sociedade melhor. Levando em conta essa característica inerente à atuação do gestor público, eu gostaria de destacar três dos momentos em que tive a oportunidade de atuar nesse setor, todos em situações bastante transformacionais e desafiadoras do cenário macroeconômico brasileiro. Primeiramente, ressalto o período em que atuei com o sistema de defesa da concorrência: inicialmente como responsável pelo antigo CIP (Conselho Interministerial de Preços) do Ministério da Fazenda - órgão que estava migrando de sua responsabilidade pelo fracassado “controle de preços” para a moderna atuação em prol da “defesa da concorrência” no início dos anos 90; e, posteriormente, como Diretora do Departamento de Proteção e Defesa Econômica, na Secretaria de Direito Econômico do Ministério da Justiça. Nesse período, pude contribuir para reestruturar a importante guinada na atuação do Ministério da Fazenda em prol da livre concorrência e para a própria elaboração e modernização da então Lei de Defesa da Concorrência (Lei 8884/94), também conhecida como Lei antitruste. Ato contínuo, fui convidada para o Ministério da Justiça, onde pude atuar já no âmbito da nova Lei como diretora do departamento responsável pela análise de fusões e aquisições. Esta, além de ter sido a minha primeira experiência como executiva, me permitiu fazer parte, ainda que em pequena escala, de período transformacional para a modernização do papel do Estado brasileiro. Em seguida, durante três anos, atuei no Petros, fundo de pensão dos empregados da Petrobrás. Como Diretora Financeira e de Investimentos, novamente pude participar de um movimento mais amplo, no qual a Petrobrás buscava sua internacionalização e maior proximidade do mercado de capitais. Nesse contexto, era importante melhorar as práticas de gestão e governança de seu Fundo de Previdência e migrar seu plano de Benefício Definido (BD) para Contribuição Definida (CD), reduzindo a percepção de que potencial passivo atuarial fosse coberto pela Petrobrás. Após mudar o Estatuto da Petros para permitir que profissionais de mercado, e não participantes do Fundo de Pensão, pudessem assumir função de diretoria. Novamente, imbuída do espírito de reestruturar o terceiro maior Fundo de Pensão do País, e importante investidor institucional do mercado de capitais brasileiro, tive a oportunidade de reunir uma equipe de jovens recém-saídos da faculdade e extremamente engajados no propósito de fazer parte dessa relevante transformação. Foram três anos de intenso trabalho e aprendizado, no qual pude me envolver nas principais discussões societárias envolvendo grandes agentes e empresas do mercado acionário. Esta experiência me permitiu evidenciar a importância das boas práticas de governança corporativa e me inspirou a desenvolver a minha tese de doutorado, na qual analiso casos práticos em que a atuação proativa de investidores institucionais permitiu criar valor nas empresas investidas por meio da governança. Minha terceira, e última, experiência no setor público se deu no BNDES, onde atuei ao longo de três anos. Foi nesse período que pude entrar em contato mais próximo com questões ESG, pois, conforme conversamos no início, sendo um banco público, deve necessariamente ter papel estruturante na indução de externalidades positivas e no desenvolvimento do mercado de capitais. Essa foi a tônica do período em que estive no Banco, de enorme transformação em sua visão e forma de atuação. Minha inspiração foi o banco dos anos 90, quando atuou de forma determinante no apoio à criação do Novo Mercado.

Nota: Links recomendados pela conselheira Eliane Aleixo Lustosa citados na entrevista:

- PRI - Principles for Responsible Investment: https://www.unpri.org/sustainable-development-goals/investing-with-sdg-outcomes-a-five-part-framework/5895.article

- Orientação CPC 09/2020: www.cpc.org.br/CPC/Documentos-Emitidos/Orientacoes/Orientacao?Id=122

- Resolução CVM 59: https://conteudo.cvm.gov.br/legislacao/resolucoes/resol059.html

- Governança corporativa no Brasil e o papel dos investidores institucionais - Tese de Doutorado: https://www.maxwell.vrac.puc-rio.br/colecao.php?strSecao=resultado&nrSeq=5703@1 

Cida Hess
é economista e contadora, especialista em finanças e estratégia, mestre em contábeis pela PUC SP, doutoranda pela UNIP/SP em Engenharia de Produção - e tem atuado como executiva e consultora de organizações.
cidahessparanhos@gmail.com

Mônica Brandão
é engenheira, especialista em finanças e estratégia, mestre em administração pela PUC Minas e tem atuado como executiva e conselheira de organizações e como professora.
mbran2015@gmail.com

 
 
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