Orquestra Societária

ENTREVISTA: SANDRA GUERRA, SÓCIA-FUNDADORA, BETTER GOVERNANCE

ESG: geração de valor para todos os Stakeholders com esforço verdadeiro e consistente

O projeto ESG: uma partitura que está sendo escrita realiza, nesta edição da Revista RI, sua 10ª entrevista, ouvindo dessa vez Sandra Guerra, um dos ícones da governança corporativa no Brasil. Com mais de 25 anos de vivência na área, ela já atuou como executiva e conselheira de administração, sendo atualmente sócia-diretora da consultoria Better Governance e conselheira independente na Eucatex, eleita pelo BTG.

Sandra Guerra, uma das precursoras da governança corporativa no Brasil, tem atuado como conselheira e presidente de conselhos de administração desde 1995. Sua experiência reúne atuação em conselhos de empresas listadas, fechadas, de controle familiar e estatal, além de organizações sem fins lucrativos no Brasil e no exterior. Foi também conselheira da International Corporate Governance Network (ICGN) por duas vezes, fez parte do conselho de Global Reporting Initiative(GRI) e foi membro do Integrated Reporting Council (IIRC), a organização que estabeleceu a estrutura para o Relato Integrado.

Graduada em Comunicação pela Universidade Paulista e mestre em Administração de Empresas pela FEA-USP, além de ser certificada como Conselheira de Administração pelo IBGC e como Mediadora pelo CEDR-Centre for Effective Dispute Resolution (Reino Unido). Foi reconhecida como Líder em Governança Corporativa no 1º Diligent Latin American Award – 2023, que visa destacar a excelência em governança, risco, auditoria, compliance e ESG na região latino-americana e Diligent 2023 Modern Governance 100, o programa de reconhecimento líder global do setor que destaca os principais profissionais de governança, risco, conformidade, auditoria e ESG do mundo.

Sua trajetória foi reconhecida por meio de vários prêmios, além dos já acima citados: Global Proxywatch, A Newsletter de Governança Corporativa e Stewardship: Top 10 Arquitetos de Governança. Nomeada entre as 10 principais personalidades internacionais que mais influenciaram a CG internacional em 2004 e Top 10 Estrelas de Governança Corporativa. Indicada entre as 10 principais personalidades internacionais que mais influenciaram a CG internacional em 2010. Prêmio Destaque IBEF – Instituto Brasileiro de Executivos Financeiros (SP) 2017, em conexão com o Prêmio Equilibrista.

Sandra, que integrou o grupo de fundadores do Instituto Brasileiro de Governança Corporativa (IBGC), onde foi a presidente do conselho por quatro anos, de 2012 a 2016, tem tido como foco de pesquisa o Conselho de Administração, órgão máximo de governança, que, sob as lentes da abordagem comportamental, também assume protagonismo como tema de seu livro A Caixa-Preta da Governança - Conselhos de Administração por quem vive dentro deles, publicado pela Editora Record, em 2017, na 4ª edição, bem como em inglês pela Routledge, em 2021, com o título The Black Box of Governance. Boards of Directors revealed by those who inhabit them.

Acompanhe a seguir a entrevista com Sandra Guerra, ícone da Governança no Brasil, que, antes da sólida trajetória em governança corporativa, Sandra trabalhou em rádio e televisão por 10 anos, ocupando cargos de liderança como jornalista. Isso foi uma surpresa, uma vez que pouca gente sabe desse início de sua carreira, que certamente ajudou a ampliar seu olhar para a dimensão Social, objeto da terceira fase de entrevistas do projeto ESG: Uma partitura que está sendo escrita com conselheiras certificadas pelo IBGC.

RI: Quais práticas, entre diretrizes e ferramentas de gestão sustentável, deverão adotar os sócios e líderes de uma organização para se diferenciarem em práticas da dimensão “S” do ESG - Environmental, Social and Governance?

Sandra Guerra: Em primeiro lugar, eu tenho que esclarecer um ponto que, para mim, é fundamental: não existe “ES” se não houver um “G” de governança muito robusto. O “G” é a força motriz do ESG. No 24º Congresso do IBGC, que acabou de acontecer, ouvimos: ESG sem o “G” é greenwashing. A força motriz é, efetivamente, a Governança; caso contrário, a companhia pode adotar uma abordagem muito superficial. Ou mesmo comunicar externamente que tem boas práticas de ESG para ficar bem na foto, mas, na verdade, não é consistente com suas efetivas práticas. Então, é muito importante que o “ES” seja governado e, a partir daí, iniciar a jornada. Sobre as ferramentas a que se refere a pergunta: para estabelecer indicadores que a companhia irá escolher para acompanhar, há uma infinidade deles no mercado; a origem de quase todos parte do GRI – Global Reporting Initiative. Claro, sou muito suspeita para dizer isso, porque, afinal de contas, fui do conselho internacional do GRI. Mas, historicamente, ele é o mais amplo, foi elaborado com o envolvimento de muitos stakeholders – é o standard “mãe” dos demais standards que acompanham o ESG. Em seguida, cito o SASB - Sustainability Accounting Standards Board, que se juntou ao Relato Integrado. Peço desculpas aos nossos leitores, que podem nos ver também em vídeo, é uma sopa de letrinhas! Existem muitas ferramentas à disposição da companhia para olhar o negócio sob o ponto de vista do ESG e encontrar quais deve usar. Estabelecer e acompanhar indicadores é o mesmo que ir a um alfaiate para fazer um traje sob medida; não se trata de um conjunto de ferramentas de prateleira que se compra e se usa. Depende muito do tipo de negócio, do setor em que a companhia atua – uma empresa que produz cosméticos, um atacado ou indústria de mineração têm contextos ambientais e sociais totalmente distintos. É muito importante que a escolha seja customizada, direcionada ao setor no qual a empresa atua. Perguntas fundamentais para começar a jornada: Quais são os stakeholders mais relevantes em um determinado setor? Água é mais importante em sua atividade? Em outras atividades, clima, carbono e quais elementos podem ser mais relevantes? Então, como disse anteriormente, as ferramentas têm que ser customizadas, de acordo com o negócio e outros fatores do contexto da atuação da companhia. Com relação à práticas, o mais importante é que esse esforço seja verdadeiro e consistente. Eu considero bastante útil o exercício, cuja melhor expressão é, em inglês, check the box: por meio de uma lista de coisas a fazer, vão sendo sinalizadas aquelas já executadas. Trata-se de um exercício de compliance, de conformidade, que, opcionalmente, pode ser feito como uma forma de verificar se os elementos fundamentais já estão, ou não, de fato, incorporados na veia da companhia, ou ainda não são adotados internamente por todos do time, partilhados com seus fornecedores, por exemplo.

RI: Seguindo sua abordagem sobre a infinidade de possibilidades de escolha, o que é mais importante para definir as práticas da dimensão “S”?

Sandra Guerra: Para mim, o mais importante é que se parta do propósito da companhia. Qual é esse propósito? Não se trata de uma palavra nova, que substituiu missão, visão, valores. A adoção da palavra propósito tem a ver, exatamente, com a pergunta: qual é o propósito? Naturalmente, este será, em grande parte, gerar resultado econômico – lucro. E é muito importante que se entenda que, sem o resultado econômico, não se consegue gerar valor para as demais partes interessadas e cuidar das externalidades da companhia, que vão impactar o ambiente negativa ou positivamente. Aqui, eu me refiro mais aos impactos ambientais e sociais negativos. É preciso ter resultado para financiar as práticas corretas. O propósito da companhia é gerar valor, inclusive o econômico. É preciso sintonizar a pergunta (sobre o propósito) com esta outra: qual problema da sociedade a empresa ajudará a resolver?

RI: O propósito econômico é muito forte nos negócios, mas, aproveitando as suas afirmações anteriores, existe um propósito maior, que é resolver o problema da sociedade! Poderia aprofundar?

Sandra Guerra: Como a companhia resolverá um problema da sociedade? Gerando valor para todos os stakeholders, de forma equilibrada. Entre os stakeholders, estão também os acionistas, controladores ou não. É cuidando das externalidades que a empresa criará valor ao longo do caminho. Procurando ampliar as externalidades positivas; por exemplo, trabalhando com diversidade, para criar um ambiente diverso, que tem um benefício intrínseco para a própria companhia e muito importante para a própria sociedade em que vivemos – esta é uma externalidade positiva! Pode-se ter uma externalidade negativa, que é o impacto ambiental negativo das operações, por exemplo. Então, como a companhia mitigará a externalidade negativa que o seu negócio gera? Por exemplo: a operação usa excessivamente água no seu processo de produção? Como fará para ampliar tecnologias que reduzam a necessidade de utilização de água? Como cuidará dessa água, que está emprestando da natureza para operar, e devolvê-la ao meio ambiente? A companhia deve partir desse propósito mais amplo. E é muito importante engajar o conselho de administração, pois não se pode pensar que o propósito é construído apenas no ambiente de gestão e diretoria. Ele deve envolver, claro, todos na companhia, mas o conselho tem que ter um papel protagonista, porque é do Conselho que parte o direcionamento da estratégia. O propósito é o que vai direcionar todas as atividades da companhia; então, se o topo, que é o Conselho, não estiver envolvido, pode-se acabar definindo um propósito com pouca validade!

RI: A partir de um propósito maior, o que é necessário fazer?

Sandra Guerra: Resolver o problema nasce de um propósito e a companhia precisa analisar os aspectos de materialidade. Identificar quais são os seus stakeholders essenciais. Uma companhia tem uma miríade de stakeholders, mas existe um conjunto de stakeholders, de partes interessadas, que é mais relevante. Por exemplo, para uma indústria extrativa, as comunidades em torno do ambiente onde é feita a extração representam um stakeholder muito relevante, porque podem ser impactadas negativamente por aquela operação e, positivamente, na medida que gera riqueza na região. É preciso fazer uma priorização dos stakeholders essenciais e, a partir daí, começar a criar indicadores e acompanhá-los, não somente para checar as caixinhas, mas, sim, para efetiva e qualitativamente, assegurar-se do que está acontecendo, de fato. Inclusive o próprio conselho deve se assegurar disso. O que eu quero dizer com isso? No conselho de administração, recebemos relatos o tempo inteiro, reports com indicadores de vários elementos – financeiros, de produção e os relativos à sustentabilidade. Naturalmente, os indicadores nos explicam como as coisas estão acontecendo, mas o storytelling também é importante para o conselheiro entender melhor. Numa visita a uma operação, ele verá se os números espelham aquilo que se está constatando.

RI: De fato, o storytelling é muito importante para avaliar a condução das práticas “S” in loco. Poderia nos dar um exemplo?

Sandra Guerra: Atuando no conselho de uma companhia extrativa, por exemplo, estávamos trabalhando para aumentar o percentual de mulheres na companhia. Além de acompanhar os números e as iniciativas pelas apresentações destinadas ao conselho, durante uma visita, notei, que em um dos locais desta operação, com grandes aparelhos e engrenagens, havia uma mulher. E, por várias vezes, a pessoa que estava nos conduzindo nesta visita, que era um homem, se referia a essa mulher como líder responsável por várias atividades importantes. Nós éramos duas conselheiras nessa visita, de um total de três mulheres, em um conselho de onze. Naquela altura, tinha sido atingido o máximo histórico de mulheres no conselho dessa companhia. Solicitei à pessoa que estava nos conduzindo, o diretor daquela região no Brasil, delicadamente, se não se incomodaria se eu tivesse uma conversa com essa mulher isoladamente. Eu e a outra conselheira fomos conversar para entender, de fato, como é que era a vivência dela em uma empresa com uma atuação, historicamente, tão masculina. Desde como era lidar com as equipes, com o uso de uniforme, com a proximidade dos banheiros, a interação com os colegas?

RI: Você teve um olhar cuidadoso com esta mulher que estava liderando em uma operação, historicamente, masculina, o que é muito interessante. Esta é uma prática adotada com frequência?

Sandra Guerra: Isto é o que eu digo, que o Power Point e as apresentações não trazem. Essa conversa direta e esse storytelling. São casos e situações randômicos, claro, porque como conselheiro fala-se com poucas pessoas da empresa, mas esse contato traz informações que são muito relevantes. Olho no olho, você entende e percebe, mesmo que a pessoa esteja falando alguma outra coisa, o quanto de assertividade e verdade tem naquela fala. Fundamental! Sem contar meu período de executiva – quando talvez seja mais natural e fácil de fazer essa interação com stakeholders - todas as vezes em que eu tive essa interação nas companhias onde fui conselheira – esses contatos foram fundamentais. A apresentação ao conselho traz uma fotografia que não revela uma série de coisas; não de propósito, claro. Existe atrás daquilo (que é apresentado) uma série de coisas que não se vê. E neste olhar, nesta interação, ganha-se profundidade de entendimento, pode-se ver o quanto do que é apresentado, está, realmente, embutido na cultura, no DNA da companhia; quando é uma trajetória, ou quanto a iniciativa ainda está frágil. Nessa conversa mencionada na resposta da pergunta anterior, aprendi muito. Primeiro, fui entender a história dela – como ela chegou lá? Como era tão respeitada? Por que o líder mencionou o nome dela várias vezes? Fui entender essa história porque, se nós quiséssemos realmente aumentar o número de mulheres em um ambiente historicamente desfavorável à presença de mulheres, casos de sucesso como aquele deveriam ser repetidos. Aprendi, naquele dia, que ela era bastante respeitada, que não se sentia intimidada naquela situação, que sua competência técnica ajudou nesse posicionamento, no respeito que ela tinha de seus pares, de seus subordinados e da sua liderança. Como ela estava em uma determinada região do país e essa companhia tem atuação geograficamente muito ampla, não tomei aquilo como um dado que acontecia em todas as regiões de atuação da empresa.

RI: Diversidade, Inclusão e Equidade são práticas importantes para o “S” do ESG. Como conquistar isso dentro das companhias?

Sandra Guerra: Depende muito do líder... se ele já comprou este assunto de diversidade, por exemplo, há muito tempo, se está incorporado, faz parte de seu DNA. Um líder como esse pode adotar com ênfase práticas efetivas de diversidade. Mas isso, não necessariamente, acontece com toda liderança da empresa, porque a gente não vem de uma cultura de diversidade e, assim, a busca da diversidade vai requerer uma transformação. Por isso, é importante que as companhias reportem, de fato, o que elas estão fazendo, porque é uma jornada. Você não muda a mentalidade de uma companhia, de um país, de uma cidade... Não muda uma cultura de um momento para o outro. Vamos aprendendo com os erros ao longo da jornada e fazendo ajustes. Como eu disse, é uma jornada e é necessária muita resiliência! As ferramentas ajudam, são trilhos para levar a companhia onde ela quiser, mas não são suficientes. Os públicos externos – por exemplo, leitores da Revista RI, que são investidores – vivem pedindo indicadores porque, como externos à companhia, esta é uma maneira de eles acompanharem. Mas os investidores internacionais, com quem eu interagi muito como conselheira, e mesmo em meu papel de consultora, não querem uma fotografia rósea do que está acontecendo na empresa. Eles querem entender se a empresa, efetivamente, tem consciência, tem um plano, está caminhando para esse plano e é transparente em relação tanto ao plano, quanto ao que está atingindo, ou não está atingindo. A transparência é relevante para o público externo, porque quem está dentro da companhia, no conselho, na gestão, sabe o que está acontecendo, o que está sendo bem feito e se há a intenção correta. Quem está fora não sabe, fica diante de pontos de interrogação. O que tem que ser comunicado, inclusive, em relação ao social, é o que efetivamente é feito. Ao tentar deixar mais róseo, querer mostrar o melhor momento da companhia é natural, mas é nocivo porque acaba só aumentando a incerteza de quem está do lado de fora. A transparência dá credibilidade, até para dizer: olha, a gente tinha esse plano, nós íamos fazer x% a mais nessa questão, por exemplo, de gênero esse ano, mas nós tivemos um contratempo, nós erramos e nós redobraremos os nossos esforços no próximo ano. O que nós aprendemos? Aprendemos com esse erro e vamos corrigir. Como é que você, investidor, pode nos ajudar? Essa atitude vai gerar uma credibilidade muito maior do que, por exemplo, divulgar um número que não reflete, de fato, a inteira realidade. Mas ser transparente com o público externo, em particular, um stakeholder muito relevante, como o investidor, é algo que tem que ser aprendido ao longo do tempo. Essa atitude não vem da nossa cultura histórica de negócios.

RI: Voltemos ao cuidado e olhar crítico sobre os stakeholders relevantes. Como conduzir as melhores práticas sociais nas comunidades?

Sandra Guerra: Comunidades em torno das operações são absolutamente relevantes. Viemos de um tempo, em que as empresas poluíam os lugares onde operavam, havia uma consciência muito baixa sobre os impactos negativos. Temos nos desenvolvido no ambiente de negócios e na sociedade para entender esses fatores, para entender que é negativo criar um ambiente poluído ao lado das casas onde as pessoas moram. No começo da minha carreira, atuei como jornalista, trabalhando em rádio e televisão. Como repórter, eu visitava locais onde havia instalações e fábricas emitindo poluição e conversava com a comunidade que vivia no entorno destas empresas. Os moradores me mostravam evidências, resultados de exame dos filhos, criança tossindo. A empresa fechava a porta para a comunidade e para a imprensa, não queria falar sobre o assunto, emitia uma nota oficial apenas. Essa é a cultura que vem do passado. Hoje, é preciso entender como a companhia impacta a comunidade, ao gerar poluição, poeira, gerar empregos também, já que os impactos são negativos e positivos. É preciso entender esse stakeholder relevante e não presumir o que a comunidade pensa e quer. Quantas vezes criamos iniciativas sociais, como dar bolsas de estudos, dar roupas, sem conversar com a comunidade para entender se é isso que ela quer? Ainda é muito comum não haver diálogo prévio com a comunidade. empresa tem que ter escuta ativa, não deve dizer o que vai fazer sem antes ouvir o stakeholder. Tem que entender qual é sua perspectiva, sua situação. E ver o que incomoda, o que pode incomodar, o que é visto como valor. Escuta ativa significa ouvir com interesse de entender. É importante ir aberto, não interromper, dar espaço para a comunidade falar, fazer perguntas de esclarecimento, não para contestar, para justificar que a minha empresa agora vai ou não fazer aquilo que é possível ou não é possível. É uma escuta acolhedora, não necessariamente para prometer – nem há como prometer o que é impossível praticar no momento –, mas para entender a perspectiva da comunidade. Após ouvir as diferentes visões da comunidade, deve-se voltar para dentro da empresa e analisar como harmonizar essas perspectivas externas com a interna, produzindo algo que vá atender às expectativas. Não serão todas atendidas, já que é quase impossível atender a todas, num dado momento. Somente quem está dentro da empresa sabe os elementos que tem que priorizar. Escolhas têm que ser feitas. É responsabilidade dos conselheiros e demais administradores tomar ações, mesmo difíceis e amargas, e explicar aos stakeholders – naturalmente preservando as questões estratégicas e o sigilo – sobre o quadro no momento e o que será feito, de uma forma transparente. Irá agradar a todos? Outra vez, não! Mas a companhia estabelecerá um nível de confiança e terá um stakeholder engajado.

RI: Voltando às práticas citadas, quais são as mais críticas em termos de gestão estratégica de riscos? E quais derivaram ou foram fortemente intensificadas pela pandemia do COVID?

Sandra Guerra: A pandemia nos trouxe situações terríveis aqui e ao redor do mundo. Ao mesmo tempo, a pandemia nos propiciou oportunidades maravilhosas, porque pudemos entender o “S” muito mais profundamente nos conselhos de administração. Eu costumo dizer que a pandemia fez com que o “S” arrombasse a porta do conselho (de administração). Ou a empresa cuidava do “S” ou poderia deixar de existir. Como é que se faz? Como proteger a equipe de trabalho? Como preservar o fornecedor? Coisas que eram desconhecidas e nunca tinham sido trazidas para o conselho, tiveram que entrar. Como é que se faz para continuar tendo pessoas trabalhando com saúde e cuidando dessas pessoas? Esse cuidado veio, algumas empresas adotaram diversos tipos de iniciativas e atitudes. As empresas com real consciência, que já tinham esses princípios em seu DNA, adiantaram pagamentos para os pequenos fornecedores, porque senão eles iriam deixar de existir. Imagine quantas pessoas ficaram um ano sem poder entregar os seus serviços. Alguns se transformaram, outros não tinham como, não tinham recursos, não tinham pessoas. Algumas grandes empresas – e eu estava em um conselho onde isso aconteceu – anteciparam pagamentos para pequenos fornecedores, como citei. Fizeram uma seleção: quais são os pequenos fornecedores? Quais os que têm riscos? É possível comprar um pouco a mais? É possível antecipar? Isso com a empresa cuidando de sua própria sobrevivência. Mas ela estava cuidando de fornecedores que eram chave e que poderia perder; quer dizer, não foi somente um olhar humano, era, também, um olhar para a empresa amanhã, era sobre perder fornecedor no qual foram investidos anos de desenvolvimento. Haverá outro? Sim, mas será preciso desenvolver, dependendo do tipo de serviço. Então, é uma atitude que gera uma empatia enorme também dentro da empresa, porque todos os profissionais vêem aquela atitude como justa. Isso gera lealdade perene do fornecedor. Ele nunca vai esquecer que, mesmo sem ter oferecido o serviço ou produto, aquela empresa continuou pagando alguma coisa para ele sobreviver. Isso cria uma lealdade tremenda.

RI: Nesse caso específico citado, além da necessidade de preservar o fornecedor desenvolvido com o passar do tempo, o que fez com que o conselho de administração, a diretoria e os gestores colocassem em prática tal suporte aos pequenos fornecedores?

Sandra Guerra: Essa iniciativa partiu do management e foi muito bacana. Não precisou o conselho dar uma orientação, partiu da direção da companhia, dos executivos e eles vieram reportar o que estavam fazendo. E por que partiu do management? Essa empresa tinha vivido uma grande crise imediatamente antes, na qual todos os funcionários e executivos sofreram, porque teve um impacto no “S” muito grande, na dimensão humana. A sensibilidade de todos estava à tona, por terem vivido problemas graves, com impacto na atuação da empresa, com impacto no “S”, nas pessoas. Então, eles pensaram no fornecedor de um ponto de vista humano. Claro que fizeram as contas, pois eles são responsáveis e têm o dever fiduciário de cuidar dos interesses econômicos da companhia, que é listada em bolsa. Mas feitas as contas, analisado que isso não colocava o negócio em risco, eles tomaram a iniciativa de fazer os pagamentos aos pequenos fornecedores e foi realmente muito interessante e com resultados bastante positivos. O cuidado com o “ES” gera tanto valor, inclusive econômico, quanto gera lealdade e uma reputação favorável. Imaginemos o espírito das pessoas trabalhando, sabendo que eles, que estão no dia a dia com os fornecedores, estavam viabilizando esse suporte financeiro. Isso gera uma lealdade, um estímulo, um entusiasmo, que acaba resultando em valor econômico. E aproveito para colocar, que nem sempre empresas tem esse olhar futuro e em alguns casos pensam somente no lado econômico imediato.

RI: Confesso que ficamos preocupadas com seu foco na dimensão Econômica, inicialmente. Mas com a evolução da entrevista, seu olhar cuidadoso para o “S” sobressaiu. Como alinhar a dimensão econômica ao ESG?

Sandra Guerra: Eu entendo essa preocupação, é importante, pois temos que alinhar todos no esforço ESG. Temos que alinhar, inclusive, as fontes de capital da empresa, sejam recursos próprios, de sócios controladores, sejam recursos de terceiros, obtidos em uma listagem ou via endividamento. Então, gosto muito de um conceito - que eu ouvi pela primeira vez da expert em Sustentabilidade Sonia Consiglio, que todos nós conhecemos muito e admiramos – que é o de EESG, colocando o eixo Econômico junto com o ESG. Porque para alinhar todos os stakeholders, inclusive as fontes de capital, é preciso não perder de vista que tem que haver a geração de valor econômico. E eu estou acabando de dizer que, quando se pratica “ES”, não se cumpre somente os requisitos da sociedade, acaba-se tendo retorno sob a forma de reputação que, em algum momento, gera valor econômico.

RI: Como conselheira da companhia, você acompanhou o desastre de Brumadinho e os impactos causados nos stakeholders relevantes. Poderia relatar brevemente as práticas adotadas que foram cruciais e as lições aprendidas?

Sandra Guerra: Este foi um desastre humano e um desastre ambiental também, mas o impacto humano foi sem precedentes. A maior parte das vidas era, inclusive, de funcionários da companhia. O ambiente na própria companhia era péssimo, estamos falando da morte de muitos colegas de trabalho. É muito importante em um momento como esse, muito difícil, de muita dor, buscar entender que os stakeholders estavam absolutamente machucados, sofridos, vivendo as piores tragédias de suas vidas. Entender que é um momento em que esse stakeholder, essa comunidade, não quer conversar, pois só vê na empresa a causa desse mal que os aflige. A sensibilidade é gigante. Nesse momento, é importante que a competência de escutar ativamente esteja presente. O ideal é que essa competência seja desenvolvida anteriormente e não numa situação de crise, porque na crise o ambiente é muito frágil, sensível. Essa escuta é fundamental. E mesmo sendo conselheira de administração, com acesso a todos os tipos de relato, o olho no olho, para mim, fez muita diferença. A interação que eu tive diretamente com famílias de vítimas, escutando a interação liderada pelos executivos da companhia foi fundamental. Não há Power Point que substitua ouvir os relatos dos impactos e o que eles estavam sofrendo nas suas vidas. Por mais de uma vez, eu tive essa interação em visitas ao local, ou mesmo em evento do setor onde as famílias das vítimas faziam manifestações. Eu tive oportunidade de assistir um diálogo dos familiares das vítimas com o executivo responsável pela reparação, que me convenceu de que nenhum relato trazido pelo executivo para o conselho pode substituir alguns minutos de escuta diretamente com o stakeholder impactado. Claro que um conselheiro de administração não deve fazer o papel do management, ser executivo; a interação com os stakeholders é essencialmente feita pelos executivos, pelos gestores da companhia. Mas, randômica e seletivamente, um conselheiro, de quando em quando – e em uma situação de crise, em particular – deve entender, ter uma visão direta da situação: qual é o impacto nos stakeholders? Qual é a emoção que eles estão sentindo? É duríssimo, mas essa vivência é fundamental. Da mesma forma, é fundamental um Conselho estar presente, na hora, quando a crise começa. Estar presente para dar apoio ao management, apoio à diretoria. Ir à sala de crise, como aconteceu dias depois, quando se conseguiu reunir o conselho em um domingo, conversar, dar os pêsames para todos os funcionários, que perderam seus amigos e apoiar na enorme tarefa à frente. Como relatei, a maior parte das vítimas foi de funcionários. Ficamos trabalhando dias seguidos, em reuniões de dia inteiro, à disposição do management, que entrava na sala diversas vezes porque havia situações cujas decisões não estavam na alçada dos executivos, que vinham ao conselho partilhar situações muito complexas que requeriam decisões. Em suma, a escuta das comunidades, dos stakeholders essenciais da companhia, é fundamental. Não conseguiria ser mais enfática com os nossos leitores sobre a importância de desenvolver esta competência de escuta ativa na empresa, do Conselho até o chão de fábrica, em momentos de mar azul, tranquilos, sem ventos e trovoadas. Certamente, é preciso preparar-se melhor antes, porque em eventuais crises, já existirá uma interação prévia estabelecida – e com mais profundidade com os stakeholders. Não estou dizendo que não existia essa interação, mas eu diria que a capacidade de escuta na empresa foi muito, muito desenvolvida nesse período de crise. Isso deflagrou uma mudança de cultura da companhia em um processo, muito intenso, extensivo, cuidadoso, fazendo rodas de conversas com as equipes em várias situações, o que gerou efetiva introspecção e reflexão sobre princípios, propósito e práticas. As transformações necessárias na cultura ocorreram, inclusive, ampliando a competência de escuta ativa, seja do gestor para o seu subordinado, seja do executivo para o conselho, do conselho para o executivo, como da empresa e das várias pessoas que interagem com todos esses stakeholders. É fundamental, em Governança, o engajamento com stakeholders. Entender sua perspectiva e não, simplesmente, trazer um discurso posicionando a companhia. Esse diálogo tem que estabelecer confiança. Escutar para entender e interagir. A sociedade tem mudado profundamente. Há décadas, as empresas se instalavam, faziam como achavam que deviam fazer, entendiam que só estavam fazendo bem para as comunidades onde estavam, porque estavam gerando emprego. É verdade, estavam gerando riqueza, mas é verdade que outras coisas ficavam de lado. Hoje, nós temos uma sociedade crescentemente mais crítica, mais bem informada pelo óbvio da facilidade de acesso à informação, conectada por mídias, que não existiam antes. Então, a empresa hoje deve estar engajada, pois faz parte desse ecossistema vivo. Em duas horas, a reputação de uma empresa pode acabar, em função de alguma coisa que circula nas mídias, na internet, que pode ser, ou não, verdade, ou pode ser uma meia verdade e mostrar somente um ângulo. Nós sabemos que esse julgamento da atuação da empresa ocorre cada vez mais rápido, na velocidade da luz. O ambiente mundial em que vivemos é de polarização, o julgamento é fácil. Então, essa sintonia com os stakeholders é fundamental, é preciso aprimorar essa competência. Nós estamos vivendo em um momento em que a tecnologia está transformando tudo ao nosso redor. A inteligência artificial está transformando completamente os negócios. As habilidades, que nos distinguem como seres humanos, são justamente as socioemocionais, as soft skills, que têm que ser cada vez mais desenvolvidas nas nossas empresas, nos nossos conselhos. Soft skills são particularmente importantes para um Conselho que toma decisões colegiadas. As habilidades humanas são únicas. O que é único? Nossa sensibilidade. Mesmo a leitura, por exemplo, da expressão dos olhos de quem interage conosco: Por enquanto, a máquina não consegue reproduzir habilidades humanas, como, por exemplo, entender, em milésimos de segundo, se a pessoa está com dúvida ou com um outro sentimento. Isso poderá ser desenvolvido no futuro pela máquina? Acredito que sim, mas, por enquanto e por muitos anos, isso nos distinguirá da inteligência artificial. Essas habilidades ainda unicamente humanas serão cada vez mais importantes.

RI: Para finalizar, sobre seu livro “A Caixa Preta da Governança”, lançado em 2017, em português, depois, em 2021, em inglês, com áudio-book e ebook disponíveis na Amazon, o que pode ser destacado desse olhar sobre as pessoas e o “S” do ESG?

Sandra Guerra: A Caixa Preta da Governança nasceu de uma inquietação profunda, que fui desenvolvendo ao longo dos anos. Eu me envolvi com Governança a partir de 1995, e fui testemunhando, desde então, toda sua evolução – o nascimento do Instituto de Conselheiros, sua transformação no Instituto de Governança, sempre com o intuito de melhorar a governança corporativa no País. Vieram o código, os cursos, e no mercado as alterações dos regramentos, da própria Lei das Sociedades Anônimas, o surgimento dos segmentos especiais de listagem. E a cada acontecimento desses, ficávamos contentes, pois estávamos melhorando o arcabouço de Governança. Ao mesmo tempo, vinha uma crise que levava ao questionamento: onde estavam os conselhos, que não cuidaram disso? Vieram os escândalos corporativos dos anos 2000, Enron, o caso mais típico, que acabou por levar à mudança de regramentos, do mercado de capitais lá fora, provocou a chegada da Lei Sarbanes-Oxley. Enfim, mudou código, mudou lei, mudou tudo. Em 2008, de novo, a crise das subprimes. Por que a governança não funcionou? Do que os conselhos daquelas organizações envolvidas não cuidaram? Por que não cuidaram? Foi dessa inquietação de que a melhoria de arcabouço não assegura, necessariamente, que a governança, de fato, proteja as empresas é que nasceu o livro, explorando o fator comportamental na busca de respostas. O termo caixa preta é usado por acadêmicos porque é difícil estudar o conselho. Mesmo quando você está nele como observador ou pesquisador, você já muda a dinâmica do conselho, sabem que você está lá. Então, efetivamente, somente quem se senta no Conselho como membro integrante pode entender o que está acontecendo na caixa preta e, daí, surge a abordagem comportamental para os conselhos de administração. Para conectar o livro A Caixa-Preta da Governança com o “S”, que estamos tratando nesta entrevista, cito as menções a Mervyn E. King no livro. Mervyn é um amigo, uma pessoa que admiro e um ícone em governança, com o King Report na África, que se chama King por causa dele. E foi ele que liderou a fundação da organização GRI - Global Reporting Initiative. Eu relato no livro uma entrevista com ele que aborda Sustentabilidade de uma forma simples, sem complexidade e sofisticação. Ele sugere que cada conselheiro reflita, colocando no papel pontos fundamentais: qual é o propósito da companhia? Quais são os stakeholders fundamentais? A partir daí, direcionam-se todos os esforços. Ele quis dizer que não precisa haver um arsenal de ferramentas, mas o simples ato de o conselho responder a perguntas importantes: Quais são os princípios da empresa? Quais são as metas que os orientam? O que se quer obter a partir do negócio? Que problema a empresa resolve? Como se cria valor para seus stakeholders? A partir dessa visão de sustentabilidade construída no Conselho é que devem ser criadas as iniciativas que deverão ser monitoradas pelo conselho, que deve observar: os líderes estão conseguindo passar para todos os funcionários a essência dessa visão? Cada empresa tem um papel social gigante. As famílias, no passado, eram o elemento fundamental de educação, mais até do que a escola. As pessoas se educavam, aprendiam a viver seus princípios, seus valores na família. A instituição família foi mudando ao longo do tempo. Hoje, a empresa cumpre também um papel muito relevante, porque as pessoas vivem mais no ambiente da empresa, que acaba por exercer grande influência. Quando uma empresa faz isso de coração, de alma, realmente envolvida, ela não está somente fazendo bem para seus negócios, criando valor reputacional. Está transformando também as pessoas que trabalham lá. Temos que atuar com essa humanidade relacionada ao “S”, porque isso é lucrativo, sim, mas também porque o que você faz volta para você. Se você quer que o outro seja humano com você, deve ser humano com o outro. O posicionamento da empresa sobre essas questões tem um papel fora de série de educação, de sua força de trabalho e de exemplo para a sociedade. Hoje, os stakeholders e a sociedade têm um papel fundamental, a companhia não consegue criar valor de longo prazo se não cuidar deles. Pode criar valor de curto prazo, mas se não cuidar desses públicos, não conseguirá criar valor sustentável. É muito difícil fazer, é muito difícil implementar a boa governança para valer. É comum a abordagem de checking the boxes às boas práticas a governança, aquele exercício superficial de conformidade. Mas em governança tem que olhar de perto o que se faz de fato. Para transformar crenças muito fortes, desenvolvidas em todos esses séculos em que temos feito negócios de uma certa forma é preciso mais que conformidade. E assim é no “ES”, não é simples, mas vale a pena o esforço, porque o impacto gerado vai além da empresa. E alguns desses exemplos que eu trouxe alimentam e nos impulsionam para continuar nesta trilha de perseguir a boa governança e boas práticas ambientais e sociais, que é árdua, mas vale a pena...!

Nota: Assista o vídeo com à integra dessa entrevista, disponível no link: https://www.revistari.com.br/videos

Cida Hess
é CEO da Orquestra Societária Business, doutora em Sustentabilidade pela UNIP/SP, mestre em Ciências Contábeis e Atuariais pela PUCSP, economista e contadora, com MBA em finanças pelo IBMEC. Executiva, conselheira, palestrante, coordenadora da Comissão Temática de Finanças e Contabilidade e professora da Board Academy. Colunista da Revista RI desde 2014 e do Portal Acionista desde 2019.
cidahessparanhos@gmail.com

Mônica Brandão
é Chair do Conselho Consultivo da Orquestra Societária Business, mestre em Administração pela PUC Minas, com pós-graduação em gestão estratégica pela UFMG e MBA em finanças pelo IBMEC. Engenheira eletricista e graduanda em Direito, tem atuado como executiva, conselheira e consultora, além de professora. Colunista da Revista RI desde 2008 e do Portal Acionista desde 2019.
mbran2015@gmail.com


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