Voz do Mercado

GOVERNANÇA CORPORATIVA À BRASILEIRA: A TROPICALIZAÇÃO DAS OPORTUNIDADES

A legislação em Direito Societário cumpre algumas funções principais. A primeira delas é fornecer uma estrutura básica que forma o panorama de funcionamento e desenvolvimento de negócios por meio de sociedades, com as características essenciais e os principais elementos. Deste modo, reduzem-se os custos de transação entre agentes privados interessados em explorar negócios em sociedades.

A segunda função, que é um desdobramento da primeira, diz respeito ao controle e à prevenção de conflitos de interesses e problemas de agência - potenciais conflitos e divergências entre os diversos agentes que interagem na sociedade. Tal função tem o intuito de harmonizar a convivência entre a pluralidade de acionistas (controladores, minoritários, titulares de direito de voto ou não votantes), os membros da administração, os credores, os trabalhadores e a comunidade em geral.

Ao destacar essas funções, é possível perceber que a legislação societária busca oferecer soluções às demandas de Governança Corporativa para o funcionamento eficiente das sociedades. Não à toa, as soluções oferecidas pela Governança Corporativa concentram esforços no fortalecimento de um sistema de freios e contrapesos para as relações entre acionistas controladores e minoritários, acionistas em geral e administradores e agentes internos e externos (stakeholders).

Cabe aqui um destaque e uma constatação: as soluções oferecidas pela Governança Corporativa possuem diferentes contornos a depender do sistema jurídico no qual a sociedade esteja inserida. Ou seja, é preciso observar o contexto de aplicação dos mecanismos e princípios de Governança Corporativa, adequando-as à realidade de cada país.

Também é possível afirmar que a importância da Governança Corporativa está intrinsecamente ligada à busca por um ambiente de negócios cada vez mais estável e confiável, contribuindo para o desenvolvimento sustentável da economia e para a inserção competitiva de empresas nacionais em mercados globais. Claro, a temática reflete, em diversos aspectos, características locais únicas e específicas dos contextos econômico, cultural e regulatório.

No Brasil, a Lei 6404/76, que dispõe sobre as Sociedades por Ações, tem como um dos principais objetivos regular a relação entre, de um lado, o acionista controlador e, de outro lado, a companhia e os demais acionistas, tendo consolidado o sistema de responsabilidade do acionista controlador e da repressão aos atos de abuso do poder de controle. Nosso país tem as suas “brasilidades” e, por este motivo, temas como o problema de agência entre acionistas e administradores devem ser analisados buscando apoio em nossa própria doutrina e atento às nossas raízes pátrias.

Por falar em raízes, os estudos sobre Governança Corporativa no Brasil ganharam força na década de 1990, em meio à onda global de estudos sobre o tema, em reflexo às mudanças havidas na legislação societária e na regulação do Mercado de Capitais dos Estados Unidos. O tema entrou na pauta das prioridades regulatórias da Comissão de Valores Mobiliários (CVM) e, à época, por iniciativa de agentes privados, surgiu também o Instituto Brasileiro de Governança Corporativa (IBGC), com a diplomática função de aculturar os brasileiros e as companhias locais a se adaptarem às demandas organizacionais societárias do contexto.

Tomando por base as evoluções legislativas, tecnológicas e da própria sociedade, a Governança Corporativa à brasileira tem passado por significativas transformações nas últimas décadas, gerando impactos em questões como transparência, eficiência e responsabilidade das empresas em relação aos seus acionistas, clientes, colaboradores e demais partes interessadas. É sempre bom relembrar que, em um ambiente regulatório em constante evolução, praticar a Governança Corporativa é sinônimo de manter-se em conformidade com as leis e regulamentações locais e internacionais, mitigando riscos legais, gerando valor de mercado e, consequentemente, impulsionando o crescimento econômico-financeiro.

Algumas mudanças legislativas realizadas buscaram incorporar aos ordenamentos jurídicos conceitos relevantes de Governança Corporativa - vide o esforço empreendido pela Lei 10303/2001, que, a fim de aprimorar e fortalecer os direitos dos acionistas minoritários, promoveu alterações e acréscimos em dispositivos da já citada Lei 6404/1976, e na Lei no 6385/1976, que dispõe sobre a criação da CVM. Há de se destacar, também, a criação de segmentos especiais de listagem e negociação de ações, o que foi promovido pela B3, visando a tornar as companhias ainda mais atrativas aos investidores e, de certa forma, mais valorizadas.

Ainda no âmbito das "brasilidades", em virtude do modelo de concentração acionária prevalecente na maioria das companhias em nosso país, o principal desafio da Governança Corporativa está voltado à criação de inventivos para que acionistas controladores e administradores atuem no interesse da pluralidade de acionistas e stakeholders, com atenção e de forma a evitar abusos e desvios por parte de agentes societários. E esse desafio se justifica, inclusive, por questões culturais.

O Brasil tem uma cultura de negócios que, historicamente, valoriza as relações interpessoais e a confiança. Essas relações, porém, se não dosadas corretamente, podem influenciar a forma como as empresas estabelecem parcerias, escolhem fornecedores e interagem com as partes relacionadas, moldando as práticas de Governança. Também por isso, a transparência na informação e na divulgação de conteúdo torna-se algo relevante para o investidor, cada vez mais atento aos movimentos, às novidades e às oportunidades – tais como aquelas geradas pelas Finanças Sustentáveis e Agenda Verde.

Nesta seara, por meio da Resolução CVM 193, o nosso país foi o primeiro no mundo a adotar regras de reporte de sustentabilidade, com base no padrão internacional (IFRS S1 e S2) emitido pelo International Sustainability Standards Board (ISSB). De maneira segura, a CVM sinalizou e oportunizou a divulgação de aspectos sustentáveis por emissores, com maior transparência, padronização e comparabilidade. Adicionalmente, a CVM vem implementando diversas ações envolvendo Finanças Sustentáveis, pois entende a importância do tema para o desenvolvimento do Mercado de Capitais nacional e em contribuição para o atingimento dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas.

A partir do comprometimento dos participantes do Mercado de Capitais, a estrutura de Governança Corporativa promove um diferencial competitivo e maior proteção contra riscos diversos, sejam jurídicos e/ou financeiros. “Tropicalizada” e discutida com lentes ajustadas às peculiaridades típicas do Brasil, a Governança Corporativa fortalece a estrutura e o funcionamento interno de nossas companhias e, ainda, cria um ambiente propício para a identificação e exploração de oportunidades, contribuindo para o saudável sucesso em longo prazo.

João Pedro Nascimento
é presidente da Comissão de Valores Mobiliários - CVM.
joao.pedro@cvm.gov.br


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