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DESMISTIFICANDO OS JUROS SOBRE O CAPITAL PRÓPRIO

De tempos em tempos, o assunto dos Juros sobre Capital Próprio (JCP) ressurge no País. Foi o que aconteceu recentemente nas discussões sobre a Reforma do Imposto de Renda (Projeto de Lei 2.337/2021), na Câmara dos Deputados e, agora, no Senado. A questão, em todos os casos, é se devemos manter o JCP, ou, como faz o Projeto de Lei, revogá-lo. No entanto, como o assunto apresenta alta complexidade, o primeiro passo é entender como ele funciona e o que ele faz, sem tantos espinhos.

O JCP foi criado em 1995 pela Lei 9.249 para amenizar o efeito da extinção da correção monetária do balanço e incentivar a capitalização das empresas com recursos dos acionistas. Ele funciona da seguinte forma:

É aplicada uma taxa de juros de longo prazo sobre o patrimônio líquido da pessoa jurídica (ativos menos passivos);

Essa taxa é uma despesa que pode ser deduzida na apuração da base de cálculo do imposto de renda da empresa (IRPJ e CSLL), que hoje incidem à alíquota total de 34%;
Em contrapartida, há tributação pelo imposto de renda na fonte (IRRF) no percentual, geralmente, de 15%.

Isso significa, na prática, que as empresas são incentivadas a procurar acionistas como forma de captar recursos e desencorajadas a criar dívidas com terceiros, normalmente instituições financeiras.

Nesse contexto, há um impacto muito positivo do JCP, comprovado em estudo realizado pela Fundação Getúlio Vargas (FGV), contratado pela Associação Brasileira das Companhias Abertas (ABRASCA), com base em cerca de 7.000 observações de empresas com ações negociadas em bolsa, cobrindo o período de 1991 a 2020. O estudo demonstra que o JCP contribuiu significativamente para a redução da alavancagem das companhias brasileiras neste período.

Mesmo assim, há problemas no desenho do JCP e espaço para melhorias.

1) O JCP é um instrumento híbrido
Ele permite a dedução de despesa para fins de IRPJ e CSLL, ao mesmo tempo em que está vinculado a distribuições de lucros aos acionistas. Por isso, inúmeras discussões já foram travadas acerca da sua natureza jurídica (se juros ou dividendos), enquadramento nos tratados internacionais para evitar a dupla tributação e tratamento pelo país de residência do acionista.

Esse ponto faz com que o JCP seja criticado no âmbito do Action 2 da Base Erosion and Profit Shifting (BEPS), uma iniciativa do G20 e da Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) criada para combater o abuso de normas tributárias no âmbito internacional.

2) O uso do JCP está limitado às empresas lucrativas
Isso acontece porque a dedutibilidade da taxa está condicionada à presença de lucros acumulados ou reservas de lucros em montante equivalente ao dobro do valor dos JCP. Não é permitida a dedução se a empresa apurar prejuízo contábil.

3) O JCP tem efeitos tributários completamente diferentes dependendo da organização societária do grupo empresarial
Talvez esse seja o ponto mais importante para explicar o uso desigual do JCP entre as empresas.

As empresas cujos acionistas são organizados na forma de pessoa jurídica domiciliada no Brasil não costumam distribuir JCP. Isso porque o acionista tributa o valor recebido por IRPJ/CSLL e pelas contribuições sobre receita bruta (PIS/COFINS). Embora o efeito de IRPJ/CSLL possa ser mitigado com uma nova distribuição de JCP, por quem recebeu, para o degrau de cima, contrapondo uma despesa com a receita, o PIS/COFINS representa um custo tributário definitivo, no percentual de até 9,25%.

E, sob a perspectiva de quem distribui o JCP, ele geralmente não é utilizado pelas empresas organizadas como holdings, pois estas tendem a não ter receitas tributáveis suficientes para contrapor com a despesa e acabam acumulando prejuízo fiscal.

Esses problemas explicam a tendência de utilização do JCP somente pelas empresas que (i) são lucrativas, (ii) pagam dividendos, (iii) são operacionais e (iv) não têm pessoas jurídicas domiciliadas no Brasil como acionistas relevantes.

A má distribuição do uso do JCP representa mais uma consequência indesejada da tributação das pessoas jurídicas no Brasil em bases individuais (CNPJ por CNPJ), sem que haja a opção de consolidação para fins fiscais, como existe mundo afora.

Uma empresa e suas controladas podem ser muito capitalizadas com recursos dos acionistas. Porém, quando há várias pessoas jurídicas no organograma societário, o que acontece por diversos motivos (linhas de negócios distintas, gestão de riscos, acionistas minoritários, governança etc.), não faz sentido a distribuição de JCP, pois o custo de PIS/COFINS é cumulativo (incide em cada elo da cadeia), tornando esse mecanismo ineficiente sob a ótica fiscal.

Não devemos revogar o JCP, entretanto, sem criar um instrumento alternativo para mitigar o viés tributário favorável ao endividamento com terceiros (debt) e contrário ao financiamento com acionistas (equity).

Esse viés ocorre, basicamente, porque as despesas de juros de dívida são dedutíveis pela empresa, enquanto o financiamento via capital dos sócios impossibilita tal dedução. Os países estudam há tempos mecanismos para solucionar este problema, inclusive avaliando a experiência brasileira com o JCP.

A Bélgica, por exemplo, criou, em 2006, o Notional Interest Payment (NIP), nos moldes de um Allowance for Corporate Equity (ACE). O NIP previa a aplicação de taxa de juros sobre as linhas de patrimônio líquido da empresa, viabilizando uma dedução na apuração da base de cálculo do imposto de renda corporativo, no livro fiscal, sem vinculação a distribuições aos acionistas.

Em 2015, economistas da Universidade de Stanford publicaram estudo sobre a Bélgica com resultados similares àqueles identificados no Brasil: o NIP contribuía com a redução da alavancagem das empresas do país.

Em 2017, a Bélgica passou por uma grande reforma de IR. Reduziu sua alíquota corporativa de 34% (coincidente com a brasileira) para 25% e, aparentemente por questões de equilíbrio das contas públicas, passou a aplicar a taxa de juros sobre o incremento no patrimônio líquido anualmente (e não mais sobre o patrimônio líquido total), seguindo um modelo alternativo denominado Allowance for Growth and Investment (ACI). Outros países europeus, como a Itália, e, por um tempo, Portugal, adotam esse modelo alternativo de ACI.

Atenta a essa situação, a Comissão Europeia, na proposta de uniformização da base de cálculo do imposto de renda corporativo (Common Corporate Tax Basis – CCTB), propõe a criação de um ACI.

Em 2021, a iniciativa foi transferida para o Business In Europe: Framework for Income Taxation (BEFIT), cuja Action 4 consiste na “apresentação de proposta para endereçar o viés ‘dívida-patrimônio líquido’ na tributação corporativa, por meio de sistema de ‘abono’ sobre o financiamento com capital dos sócios”. A agenda do Debt Equity Bias Reduction Allowance (DEBRA) foi criada, tendo recebido sugestões em audiência pública em outubro de 2021.

O DEBRA estuda a possibilidade do ACI e, também, do ACE, como aquele adotado pela Bélgica, que aplica uma taxa de juros sobre todas as linhas de patrimônio líquido, e não somente sobre o incremento de um ano a outro. São estudadas, ainda, restrições à dedução de juros de dívidas com pessoas ligadas e/ou terceiros (thin capitalization, earning stripping rules e regras similares). Espera-se para 2022 uma proposta.

Voltando ao Brasil, o tema do JCP deve ser analisado considerando o problema do viés tributário pró-endividamento com terceiros (e contra a captação com os sócios) e o potencial que as regras de tributação têm de influenciar nas decisões de financiamento corporativo (objeto de longo debate na literatura econômica).

Além disso, da perspectiva das contas públicas, não é certo que a revogação do JCP causará aumento perene da arrecadação, como consta dos cálculos apresentados pelo Governo Federal. A tendência é que as empresas se endividem mais, apurando despesas dedutíveis na apuração do IRPJ/CSLL, enquanto os credores são tributados a alíquotas mais baixas do que a corporativa, na faixa de 15%.

A ampla compreensão deste cenário nos mostra que devemos pensar em acompanhar a Europa em um modelo de ACE, ou ACI, com vistas a tornar neutra, tributariamente, as fontes de financiamento das empresas. A principal mensagem, contudo, é que não devemos revogar o JCP sem fazermos uma análise detalhada dos seus impactos desde 1995 e das prováveis mudanças de comportamento decorrentes da sua revogação.


Daniel Abraham Loria 
é vice-presidente da Comissão de Liquidez, Finanças e Tributação (CLIFT) da Abrasca, coordenador do grupo de trabalho da Associação sobre a reforma do Imposto de Renda, sócio do Stocche Forbes Advogados, pesquisador e professor do Insper.
dloria@stoccheforbes.com.br


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