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Ponto de Vista

TERMO DE COMPROMISSO: PORQUE ISSO DESEDUCA O MERCADO

Imaginem a seguinte cena: um motorista fortemente embriagado (1,90 mg de álcool por litro de ar expedido nos pulmões), com carteira de habilitação suspensa por excesso de pontos, dirigindo a 220 km/h um possante carro de luxo (o limite da via era de 60 km/h), mata um inocente trabalhador ao invadir desgovernado um ponto de ônibus. A sociedade aceitaria que o motorista, cujo delito foi classificado como homicídio doloso, fosse agraciado com uma “transação penal” com o Ministério Público, que substituiria uma condenação severa, como a restrição de liberdade, por meia dúzia de cestas básicas e/ou serviços comunitários?

Não senhores, isso não é permitido pela nossa legislação. Esse sujeito representa um risco para a sociedade.

Por outro lado, uma situação que carrega a mesma consequência – uma pessoa morta por atropelamento – terá outro tratamento se ficar comprovado que o acusado, possuidor de uma carteira de habilitação válida, dirigia abaixo do limite de velocidade da via e que a vítima foi atingido ao atravessar a via, carente de iluminação pública, fora da faixa destinada a pedestres. Por não representar um risco para a sociedade, esse infrator poderá ter a sua pena convertida em prestação de serviços, por exemplo.

Assim como o motorista embriagado, quem é acusado de infração grave no mercado de capitais, como manipulação de preço de ações e insider trading, deveria ser sempre julgado; nada de “acordinhos” que servem para “engavetar” processos.

Imaginem agora que todo criminoso soubesse, de antemão, que qualquer crime que viesse a cometer poderia, se descoberto, ter o seu julgamento transformado em uma pena pecuniária, e o melhor: o acusado não precisaria admitir culpa.

Pois é exatamente isso que acontece no nosso mercado de capitais. Independente da gravidade da infração, os acusados podem propor o chamado Termo de Compromisso, cuja proposta será negociada por um Comitê da Comissão de Valores Mobiliários (CVM). Sim, isso mesmo, é negociado, ou seja, o crime é relativizado pelo número de zeros à direita. Nessa ferramenta, o acusado se compromete, junto com a proposta de pagamento de uma “reparação” (indenização de danos difusos), a cessar a prática deletéria. O caso é encerrado sem julgamento e sem confissão de culpa.

As justificativas do nosso regulador para o uso indiscriminado da ferramenta, até mesmo para infrações graves como insider trading e manipulação de preços, são: (i) a economia de tempo e de recursos e (ii) a possibilidade de se ressarcir todos os lesados pelas práticas reputadas ilícitas com especiais celeridade e efetividade (veja o artigo com a opinião do então Procurador-Chefe da Procuradoria Federal Especializada junto à CVM, Dr. Alexandre Pinheiro dos Santos, no link: www.bsmsupervisao.com.br/assets/file/publicacoes-e-eventos/ArtigoAlexandreTC.pdf).

Admito que a ferramenta realmente traz celeridade, mas penso que o seu uso deveria ficar restrito a infrações de “menor poder ofensivo” para o mercado. Um bom exemplo é o atraso na divulgação de informações periódicas, infração que não demandaria apuração, já que se trata de um fato consumado que ofícios inquisitórios do “Xerife” não mudarão a avaliação do fato. Reparem que nesse exemplo não houve um prejuízo mensurável, já que quem negociou no período de atraso o fez sabendo dessa condição “especial”, e também não é possível afirmar que alguém se beneficiou da “não informação”.

Infelizmente o nosso “Xerife” chega a enaltecer o uso da ferramenta; em 2021 foram propostas de Termo de Compromisso relacionadas a 102 processos, o maior número de processos com propostas de ajustes da espécie apreciados pela CVM em um mesmo ano. Desse total, o Colegiado da Autarquia aprovou 45 propostas de ajuste, envolvendo 98 participantes do mercado de capitais. Somados os valores, o montante atingido foi de R$ 71,8 milhões (veja a matéria completa no link: www.gov.br/cvm/pt-br/assuntos/noticias/em-2021-cvm-analisou-propostas-de-termo-de-compromisso-relacionadas-a-mais-de-100-processos).

Acreditem, tem até Diretor de Relações com Investidores alegando que negociou ações enquanto a Cia. fazia uma importante negociação comercial, que resultaria em fato relevante, porque “não existia certeza de que algum acordo seria estabelecido ao final das conversas entre as sociedades envolvidas e, portanto, não havia “informação relevante que devesse ser divulgada”” (o processo em questão foi encerrado com a aceitação pela CVM de um Termo de Compromisso no valor de R$ 170 mil).

Repare que são comuns grandes oscilações de preços de ações pouco antes da divulgação de fatos relevantes, o que leva o mercado a desconfiar “fortemente” que toda grande operação de mercado carrega o vazamento de informações a reboque. Não causa surpresa que um suposto vazamento de informações sobre o ITR da Natura seria o responsável pela queda abrupta do papel, com mais de 15% no dia. (www.seudinheiro.com/2022/empresas/natura-ntco3-vazamento-balanco-1t22-vvka/).

Diante desse cenário sombrio, um verdadeiro vale-tudo, concluo que dificilmente teremos um acusado de insider trading ou de manipulação de preços inabilitado (são raríssimas as inabilitações pela CVM) ou até mesmo colocado atrás das grades, uma vez que nenhum Juiz condenará um acusado cujo crime sequer mereceu julgamento por parte do regulador.

Infelizmente, para nosso regulador um acusado desse tipo de crime continua sendo, após a assinatura do Termo de Compromisso, um homem probo com reputação ilibada, digno para continuar atuando livremente em diretorias e conselhos de empresas listadas.

Finalizo com as palavras de Robert Khuzami, ex-diretor de fiscalização da SEC (2010): "A dissuasão funciona no mundo do colarinho branco". Em uma versão menos polida: “Só o medo de uma borduna educa o nosso mercado de capitais”.

Renato Chaves
é especialista em Governança Corporativa, ativista e conselheiro em empresas listadas. Editor do Blog da Governança (www.blogdagovernanca.com).
rchaves@blogdagovernanca.com

 
 
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