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Compliance

MORALISMO EMPRESARIAL, GUERRA, GOVERNANÇA & COMPLIANCE

O provérbio popular “o justo paga pelos pecadores” nunca fez tanto sentido quanto na corrente e deplorável guerra internacional. Sim, pode-se dizer internacional e não restrita aos países diretamente envolvidos, Rússia e Ucrânia, haja vista o envolvimento político e empresarial de países e empresas de todo mundo.

Particularmente quanto ao envolvimento empresarial, configurado pela saída de empresas da Rússia e cessação de serviços online, numa tentativa de estrangular economicamente o país e forçar autoridades a recuar, a postura delas mostra-se, a certo ponto, uma afronta aos princípios da função social da empresa, da responsabilidade corporativa, da ética empresarial e mesmo do “fashionista” ESG, em especial seu pilar social.

Isso porque a função social da empresa diz respeito à produção e distribuição de bens à sociedade (sem discriminação), fazendo circular riquezas e gerando empregos, enquanto o princípio da responsabilidade corporativa orienta que os agentes de governança zelem pela viabilidade econômico-financeira das organizações, o que significa que eles devem atuar de modo a reduzir as externalidades negativas de seus negócios e operações - os efeitos de uma guerra, por exemplo -, e aumentar as externalidades positivas.

Já a ética empresarial refere-se à conduta corporativa, às diretrizes aplicadas na interação com clientes, funcionários e demais organizações (aqui incluindo fornecedores e demais parceiros comerciais), ou seja, os esforços conscientes empregados para tratar as pessoas (físicas e jurídicas) com respeito, contribuindo para um ecossistema de trabalho positivo; enquanto o pilar social de ESG (sigla em inglês para "environmental, social and governance" que, na tradução livre para o português é ambiental, social e governança) está diretamente ligado à responsabilidade social e ao impacto da empresa em prol da comunidade, como respeito aos direitos humanos, que devem ser assegurados a todos, independentemente, inclusive, da etnia, e inclui a liberdade de expressão, direito ao trabalho e à educação.

A desconsideração pelas empresas dos referidos princípios e boas práticas demonstra, em verdade, além da ambiguidade nos discursos e ações empresariais, que a máscara da moralidade encobre, na verdade, ações INconscientes e mesmo midiáticas, que nada tem de humanitárias e sustentáveis.

A bem da verdade, observa-se um certo aproveitamento da situação por empresas cada vez mais politizadas (e engajadas na doutrinação de funcionários e clientes), executivos de curta carreira menos comprometidos com a perenidade das empresas e uma massa consumidora mais influenciada pela mídia e redes sociais e que, em efeito manada, pela publicação de mensagens de ódio e boicote, da noite para o dia, destroem negócios que levaram anos para se solidificarem e, por consequência, liquidam empregos e toda uma cadeia de suprimentos.

Isso não significa que a guerra e atuação tirana de Putin não sejam reprováveis, tampouco que não se deva ter empatia às diversas famílias (de ambos os lados) que perderam pais, filhos, esposas. Apenas que, de modo geral, injustificável tirar o trabalho, direito de comunicação e mesmo lazer, de civis, a grande maioria, vítimas de decisões políticas, originadas na vaidade e desvario de seus governantes.

A exceção ao encerramento de atividades com contrapartes russas diz respeito às sanções de países às empresas nacionais que, direta ou indiretamente, realizarem negócios com a Rússia. É o caso dos embargos econômicos impostos por potências econômicas como os Estados Unidos, que não dão alternativa às empresas de determinados segmentos, senão o rígido corte de relações comerciais. Aqui, a decisão corporativa é resultado da fatídica intervenção do estado e visa evitar um prejuízo maior, o fim de mais empregos ou grande perda de investimentos.

A maior ironia que também permeia algumas decisões é que, agora, depois de dois anos de um mundo “confinado” em razão do Covid-19, gigantes da indústria alimentícia, do entretenimento, comunicação e energia, dentre outras, resolveram levantar suas bandeiras do politicamente correto. Seria a pandemia, nascida na China, que matou milhões de pessoas e levou à falência milhares de empresas, menos devastadora e repudiável que a guerra? Ou seriam as relações comerciais com o gigante asiático indispensáveis à economia global, justificativa a uma cegueira segregadora?

Ainda com relação ao antagonismo de conduta, é inquietante o silêncio quanto às tantas ações xenofóbicas em relação aos russos - contratos e patrocínio de atletas cancelados, artistas e intelectuais censurados etc. Enquanto na situação relacionada à China, fervilhou na mídia matérias de repúdio a atos discriminatórios contra os chineses, agora, parece que as empresas que superestimam seus atos e propagam a cultura do cancelamento são aclamadas.

É assustador ver notas públicas, inclusive de empresas do ramo da saúde não sujeitas a imposições de seus países de origem, proclamando o fim de qualquer relação com pessoas e empresas russas. E, mais ainda, a aparente omissão ou negligência dos agentes de governança e compliance que deveriam, em favor da preservação dos interesses dos stakeholders, o que inclui investidores e acionistas que visam lucro/dividendos, e da defesa da imagem corporativa, orientarem, de forma imparcial, as decisões empresariais.

A situação que poderia ser tratada com a revisão de processos e procedimentos, a exemplo, os de conhecimento de terceiros (também denominado “background check”), que permitem (dentro de limites razoáveis) identificar o beneficiário final de empresas, relação direta ou indireta com pessoas politicamente expostas (ex e atuais agentes públicos, por exemplo relacionados a Putin) parece mostrar que a maior publicidade dos temas pelas empresas não significa, necessariamente, seu amadurecimento, tampouco que seus agentes pensam suas diretivas para além da publicação de códigos e realização de poucos treinamentos.

Na era das campanhas por igualdade e respeito, e de ênfase ao liberalismo econômico, a ética nunca esteve tão flexível, “os meios justificando os fins”. A guerra, ao final, veio para enfatizar outros problemas do mundo globalizado e hiper conectado: a desconexão entre o discurso e a ação; a incoerência e irresponsabilidade da conduta empresarial (a irresponsabilidade inclui, mas não se limita aos efeitos das decisões empresariais na cadeia de suprimentos); os riscos de negócios em estados intervencionistas; a desconstrução de valores humanitários; a licença para censura e discriminação quando não dizem respeito a direitos e interesses próprios; e, até mesmo a fragilidade de programas de governança e compliance.

Necessário a revisão de valores, a restauração de princípios criados para preservação de interesses coletivos (sem descuidar das minorias) e para o resguardo de direitos fundamentais. E, antes de mais nada, é fundamental que as empresas compreendam o papel social que tem, na construção ou desconstrução da cultura, e no equilíbrio de um mercado global, interdependente.

Gabriela Alves Guimarães
é advogada especialista em GRC e Proteção De Dados, certificada em Compliance pela SCCE/USA, especializada em Leis e Regulamentações de Dados pela London School of Economics and Political Science/UK, com dual MBA em Business Administration pela FGV e Ohio University/USA. Sócia da Fourethics Consultoria, professora, palestrante e autora de diversos artigos sobre o tema GRC, Investigações Corporativas, ESG e Proteção de Dados.
gabriela.guimaraes@fourethics.com

 
 
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