Orquestra Societária

GOVERNANÇA DAS EMPRESAS DE CONTROLE ESTATAL

Quais similaridades e especificidades as empresas estatais apresentam em relação à Orquestra Societária? Como a sinfonia corporativa pode ser incrementada nas empresas estatais? Em resposta parcial à primeira pergunta, afirmamos que todos os elementos presentes na Orquestra Societária integram tanto a realidade de estatais quanto de empresas privadas, quais sejam: a existência de públicos stakeholders, as necessidades de ética, transparência, governança corporativa e sustentabilidade, bem como de uma arquitetura organizacional (estratégia, estrutura, processos, pessoas e sistema de recompensas) e de um modelo de gestão. Esses itens têm sido intensamente tratados nesta Revista RI, desde o início da coluna Orquestra Societária, em março de 2014 (edição n. 181).

Já com respeito às especificidades mencionadas na mesma pergunta inicial, podemos identificar os seguintes aspectos não exaustivos:

    1. A Governança Corporativa de uma empresa estatal pode ser substancialmente mais complexa do que aquela de uma empresa privada, especialmente quando a primeira participa do mercado de capitais, por vezes, em âmbito internacional.

    2. As Constituições Federal e Estaduais e as Leis Orgânicas Municipais dispõem sobre diretrizes, objetivos e metas a serem cumpridos pela União, Estados e Municípios, respectivamente, ao longo de um período de quatro anos, entre outros quesitos. Nesse contexto, o orçamento das estatais é parte integrante de um sistema de planejamento e controle que deve atender aos ditames constitucionais e legais.

    3. Uma empresa estatal pode ter sócios substancialmente distintos em seus interesses, como governos federais, estaduais e/ou municipais, além de uma multiplicidade de investidores privados com distintos perfis. Os interesses dos sócios podem ser conflitantes, embora possa existir razoável convergência quanto a expectativas por dividendos.

    4. O clássico conflito de agência que se estabelece entre sócios e administradores, intensamente e exaustivamente tratado pela literatura especializada – e aqui nos permitimos suprimir os respectivos autores, dada a multiplicidade de fontes -, se reveste, nas empresas estatais, de uma característica distinta daquela de empresas privadas, especialmente das organizações familiares, nas quais famílias controladoras não conscientes sobre a importância das boas práticas de governança corporativa podem lesar a organização e outros sócios em benefício próprio, ou, no limite, até em prejuízo próprio, dependendo do grau e nível do conflito existente entre os membros das famílias envolvidas.

O conflito de agência acima citado constitui-se na chave para a resposta à segunda pergunta do início deste artigo, demandando, porém, uma reflexão preliminar. Genericamente, o citado conflito ocorre quando alguém investido de poderes para decidir em nome de outrem toma más decisões, por incompetência, negligência ou má fé. O agente (agent) pode prejudicar o mandatário (principal), exposto a custos de agência ex ante, os quais visam prevenir problemas, e ex post, decorrentes de problemas não evitados.

Quais conflitos de agência podem ocorrer nas empresas estatais? Divergentes interesses entre o investidor estado e o investidor privado podem, de fato, gerar decisões que favorecem o primeiro em detrimento do segundo, em um contexto em que o sócio controlador é o estado. Entretanto, organizações estatais podem estar sujeitas a interesses de grupos focados em objetivos próprios e não alinhados com o bem estar da organização, conjunto de seus sócios e da sociedade, conforme a Operação Lava Jato tão bem tem demonstrado no caso da Petrobrás. Quando isso acontece, o conflito estabelecido se dá entre os sócios estado/privados e os dirigentes que operam em prol dos citados objetivos.

Neste ponto, não resistimos à tentação de apresentar uma provocação aos nossos leitores. Conforme dito, por um lado, existe o risco, nas empresas controladas pelo estado, de uso organizacional a favor de grupos de interesse, do conflito de agência sócios x dirigentes focados em objetivos próprios. Por outro lado, se um determinado grupo de poder venceu eleições, democraticamente, e em tese representa os interesses da população, ele não deveria cuidar das empresas sob a égide do estado, de posse de um mandato democraticamente alcançado? Esta é uma bela discussão conceitual e de cunho político. A nosso ver, o dilema apresentado deve ser tratado retornando-se à essência da análise: o conflito de agência entre os sócios e os grupos/indivíduos com interesses espúrios precisa ser neutralizado ao máximo possível, em benefício dos sócios, da sociedade, do país, da sustentabilidade da organização e da perenidade dos negócios.

Na figura 1, representamos a Orquestra Societária, com destaque para a imersão das organizações no ambiente social e, portanto, sujeitas à percepção da sociedade e dos eleitores que elegem os representantes nos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário. Note-se, na figura, a representação de um stakeholder importante: as auditorias independentes e, sobre essas, teceremos considerações ampliadas em relação ao conceito de auditoria independente com foco em demonstrações financeiras.

Frequentemente citada como uma referência importante no que concerne a práticas de governança corporativa de empresas estatais, a Suécia dispõe de instrumentos interessantes que impactam fortemente a governança dessas organizações. De forma não exaustiva e brevemente, mencionamos:

1. A proteção contra a interferência política partidária está assegurada pela Constituição do País e a quebra da regra de proteção é reportada ao Comitê de Constituição do Parlamento (Konstitutionsutskotet, ou KU), além de submetida a sabatina pública transmitida pela TV. O Ministerstyre é um código de conduta que proíbe o primeiro ministro e outros ministros de interferência nas operações de empresas estatais e de agências governamentais.

2. O governo sueco estabelece, baseado no estatuto social de empresas, metas financeiras e indicadores de desempenho, a fim de assegurar que políticas públicas sejam bem executadas, que os custos das citadas políticas sejam claramente conhecidos e que as condições estabelecidas para o atendimento de metas financeiras sejam bem elucidadas.

Figura 1 – A Orquestra Societária e a influência da sociedade civil

3. Não existem cargos comissionados nas estatais suecas, sendo os conselhos de administração e as diretorias executivas integradas por profissionais da indústria e sem vinculação partidária. Nas holdings controladas pelo Estado, o governo, geralmente, indica um representante para o conselho de administração.

4. O Serviço Nacional de Auditoria da Suécia, o Riksrevisionen, entidade independente responsável pela fiscalização regular de empresas estatais do País, dispõe de auditores que acompanham diligentemente essas organizações.

5. A independência do Riksrevisionen é assegurada pela Constituição do País. Os auditores-gerais que comandam o órgão são nomeados pela Comissão de Constituição do Parlamento, cumprem mandatos fixos e não podem ser reeleitos. O Riksrevisionen é, ainda, fiscalizado por empresas internacionais de auditoria.

6. Os auditores produzem relatórios de fiscalização e eficiência que apontam, regularmente, problemas identificados, alternativas para correção de rumo e recomendações de práticas para melhorar o desempenho das empresas. O foco vai além da busca de problemas, abrangendo a profissionalização dos dirigentes, a estratégia, os riscos e a melhoria da administração.

7. Os relatórios dos auditores são submetidos ao Parlamento, o qual remete os mesmos ao governo, para que resultados sejam comentados. As autoridades têm prazo para informar quais medidas foram ou estão sendo tomadas para ampliar a eficiência operacional. O comitê parlamentar responsável analisa as medidas relatadas e o Parlamento sueco delibera sobre cada situação.

8. Os investimentos das empresas estatais são monitorados em relação aos seus objetivos, metas, riscos e eventuais impactos negativos nas finanças das empresas.

9. A corrupção é objeto de especial atenção e se uma suspeita de crime é identificada, o Riksrevisionen recorre às entidades competentes, mencionando-se a Agência Nacional Anti-Corrupção (Riksenheten mot Korruption) e a Autoridade para Crimes Financeiros (Ekobrottsmyndigheten).

10. Assim como as empresas privadas, as empresas estatais também se submetem a auditorias internas e externas; nesse segundo caso, constituídas por grandes players internacionais do ramo.

Destacam-se, ao lado das regras formais, as regras informais, que formam a chamada cultura do País. O caso Telia Sonera, empresa sueco-finlandesa de telecomunicações na qual o governo sueco detém participação de 37%, é um exemplo que ilustra como a cultura sueca lida com a corrupção. Suspeitas de pagamento de suborno a autoridades de países em que a Empresa operava, visando obter licenças de operação naqueles mercados, criaram elevada pressão pública e conduziram à extinção das operações em regiões da Ásia Central.

Assim, não é por acaso que a Suécia é um dos países com menor nível de corrupção do Planeta, o que é altamente positivo para a população do País, haja vista que a corrupção na esfera pública é, de forma inquestionável, prejudicial ao sistema democrático e ao bem-estar social.

Estatais brasileiras seriam diferentes se seus dirigentes – conselheiros de administração, fiscais e diretorias executivas – fossem sujeitos ao escrutínio de estruturas independentes nos moldes do modelo sueco? Com certeza. Ao mesmo tempo, o ambiente cultural nacional é substancialmente distinto; isso, entretanto, não impede que se busque melhorar a governança das empresas estatais nacionais.

Enfatizamos que mesmo em um mundo de governança com a independência próxima da ideal, a complexidade do governo organizacional tende, ainda assim, a ser alta, conforme o negócio e a organização. Como seriam conciliados os interesses dos sócios e demais stakeholders, considerando que eles podem ser altamente conflitantes? Ilustramos esse ponto com três situações genéricas de uma (ou mais) empresa(s) petroleira(s) genérica(s) – não necessariamente a Petrobrás –, com grande importância para a economia de um País:

Exemplo 1: preços de combustíveis
Sob o prisma do acionista-estado, elevar, sem preocupações adicionais, o preço desses insumos no mercado interno tende a aumentar a inflação e a criar impactos econômicos com potencial para onerar substancialmente, e para pior, a performance das empresas e as vidas de milhões de cidadãos. Por outro lado, administrar uma organização sem atentar à sua sustentabilidade na esfera econômica (ao lado das esferas social e ambiental) pode, simplesmente, ser fatal. Como equacionar preços de combustíveis conciliando ambas as demandas?

Exemplo 2: investimentos em exploração de reservas petrolíferas, transporte e outras atividades relacionadas
O setor petrolífero requer investimentos elevados e com retorno de longo prazo, sendo que a expectativa pela distribuição de dividendos tem, frequentemente, o foco de curto prazo. Dessa forma, como conciliar as necessidades de realizar investimentos imprescindíveis para o abastecimento de um país e, ao mesmo tempo, obter lucro e, portanto, distribuir dividendos considerados razoáveis aos sócios no fluxo de tempo desejado?

Exemplo 3: reservas petrolíferas especiais
Conforme as condições naturais de um país, reservas petrolíferas especiais podem ser descobertas, a exemplo do pré-sal, no Brasil e em outros países. Quais são os melhores modelos de exploração dessas reservas, os quais possam compatibilizar os interesses da população do país, os riscos a serem enfrentados e os investimentos a serem realizados?

Com base no exposto, a implantação de uma cúpula organizacional independente, se por um lado, mitiga substancialmente o conflito de agência sócios x dirigentes focados em objetivos próprios, por outro lado, ela não elimina a complexidade que pode ser inerente a determinados negócios, especialmente quando esses impactam em grande medida a economia de um país, as finanças das empresas e demais organizações e o bem estar do povo. O tratamento de questões como as três anteriormente apresentadas requer discussões aprofundadas de interesse nacional e que, indubitavelmente, extrapolam os limites da empresa estatal.

Dadas essas considerações, aproveitamos esta oportunidade para comentar o esforço da BM&FBovespa em prol da melhoria da governança das empresas estatais brasileiras. Nesse sentido, apresentamos, na figura 2, quadro extraído de seu site institucional, no qual essa sumariza os principais pontos do seu Programa Destaque em Governança de Estatais (Programa). Sobre o quadro em questão, síntese de um trabalho que merece o aprofundamento dos leitores, a posteriori, observam-se:

1. Quatro são as linhas de ação contempladas, objeto de preocupação da BM&FBovespa: transparência, controles internos, composição da administração e compromisso do controlador público. A cada linha de ação, corresponde um conjunto de medidas, com pesos iguais a 1, 2, 4 ou com o status de obrigatório.

2. São obrigatórias as seguintes seis medidas: aprimoramento do conteúdo do Formulário de Referência, instalação da área de compliance e riscos, auditoria interna e comitê de auditoria estatutário, política de transações com partes relacionadas, requisitos mínimos para a indicação de administradores e aderência aos requisitos para indicação de administradores.

  Governança das estatais e as linhas de ação da BM&FBovespa

Fonte: Site institucional da BMFBovespa (www.bmfbovespa.com.br)

3. Sem deixar de reconhecer a importância de todas as linhas de ação da figura 2, menciona-se que a terceira linha é aquela que incorpora maior nível de polêmica. Conforme informa a BM&FBovespa, todos os participantes consideraram muito relevante que os conselhos de administração das empresas estatais sejam integrados por membros qualificados e isentos, com diversificação de qualificações. Dessa forma, aspectos como o loteamento de cargos, a participação de pessoas ligadas ao governo ou a partidos políticos nos órgãos de administração das estatais foram intensamente debatidos na elaboração do trabalho.

O Programa terminou por vedar a participação, no conselho de administração, de representantes de órgãos reguladores aos quais a estatal esteja sujeita, de dirigentes estatutários de partidos políticos e, ainda, de titulares de mandatos no Poder Legislativo. Ademais, a participação de membros indicados pelo Controlador Público aos conselhos de administração foi limitada a 50%, sendo que apenas dois conselheiros podem ser detentores de função comissionada sem vínculo efetivo com o ente federativo controlador.

Conforme se percebe, o esforço de autorregulação de mercado empreendido pela BM&FBovespa constitui-se em uma iniciativa que deve ser enaltecida, adaptada às condições específicas do mercado nacional.

Por fim, e respondendo à pergunta inicial: Como a sinfonia corporativa pode ser incrementada nas empresas estatais?, retornamos à figura 1 com o seguinte ponto de vista: a sinfonia produzida pela Orquestra Societária, no caso dessas organizações, será tanto melhor quanto maior for a independência vigiada que pautar as instâncias mais elevadas de decisão e esta é uma consideração que observa os interesses dos sócios e o bem estar da sociedade e do país. Nessa perspectiva, convidamos os leitores a refletir sobre as considerações aqui apresentadas, agradecendo comentários e sugestões ao presente artigo, para nós, um dos mais desafiadores apresentados nesta coluna.

CIDA HESS
é sócia diretora da KPMG, eco nomista e contadora, especialista em finanças e estratégia e membro da Comissão de Comunicação do IBGC.
cidahess@kpmg.com.br

MÔNICA BRANDÃO
é engenheira eletricista, foi gerente de análise e acompanhamento de projetos e planejamento corporativo da Cemig e tem atuado como conselheira de organizações e professora em cursos de pós-graduação.
mbran@terra.com.br


Continua...