AMEC | Opinião

O SAPO NA PANELA

Se jogarmos um sapo numa panela com água fervente, ele rapidamente vai pular para fora para sobreviver. Por outro lado, se o colocarmos numa panela com água fria e lentamente a aquecermos, ele morrerá cozido. O sapo não repara que a temperatura está caminhando para um nível fatal e não toma uma atitude. Fica complacente. Se acostuma.

A metáfora é perfeitamente aplicável ao que estamos vivendo no mercado de capitais brasileiro. O nosso mercado já representou cerca de 25% do índice MSCI Emerging Markets – a principal referência mundial para mercados emergentes. Hoje, nosso peso é de aproximadamente 7%. E de acordo com estudo recente do Credit Suisse (2014), em 2030 representaremos algo em torno de 3 ou 4%. Ou seja, em 40 anos teremos perdido quase 90% de nossa relevância nos mercados globais, sem que tenhamos tomado uma atitude para reverter este processo. O sapo está quase cozido.

Nossa perda de relevância tem duas fontes principais. A primeira, sem dúvida é macroeconômica. A incapacidade do país em atingir seu potencial, por conta de políticas econômicas equivocadas e uma instabilidade política. Mas isso não é tudo.

Os participantes do mercado de capitais são os responsáveis pela segunda parte deste processo. Apesar de termos largado com várias vantagens competitivas em relação a outros mercados emergentes, nós as desperdiçamos, nos tornamos complacentes, e acabamos superados em muitos pontos em que nos destacávamos.

O Brasil sempre foi considerado pela higidez de sua infraestrutura financeira. Construímos um sistema sólido, com alto uso de tecnologia, transparência e de relativa eficiência. Ao contrário de outros mercados emergentes, um investidor que adquire títulos mobiliários no país não precisa se preocupar em ter seus registros de propriedade apagados ou seus ativos de outra forma desviados. O sistema regulatório do mercado bancário e de capitais é sólido e, no que tange à letra da lei, comparável aos países mais desenvolvidos.

Nossos bancos são sólidos, e nos momentos de crise os reguladores atuaram de forma decisiva, mantendo a credibilidade do sistema. O Novo Mercado, criado em 2001, foi saudado como uma das grandes inovações mundiais para desenvolvimento do mercado de ações.

Ocorre que paramos no tempo. Deitamos em berço esplêndido e deixamos de evoluir. Regras foram afrouxadas, interpretações curvilíneas foram inicialmente toleradas e posteriormente consolidadas, direitos foram esgarçados...tudo isso sem que tenhamos nos dado conta que o sapo estava cada vez mais grogue. Vejamos alguns exemplos:

  • Passamos pelo maior escândalo societário, contábil e de corrupção do mundo sem que nenhum administrador ou provedor de serviços tenha sido punido pelos seus atos contra o mercado de capitais.
  • A B3 concede waivers a normas importantes do regulamento do Novo Mercado e do Nível 2, com o objetivo de atrair um maior número de empresas, mesmo que diluindo a eficácia do sistema como um todo.
  • O conceito de alinhar poder político a comprometimento econômico, que foi a força motriz da criação do Novo Mercado e dos níveis diferenciados de governança corporativa (além da reforma da Lei das S/As, em 2001) foi revertido, com a autorização para listagem no Nivel 2 de empresas com ações “superpreferenciais”, que autorizam a manutenção do controle acionário com fatias minúsculas de comprometimento do capital.
  • Na mesma linha, investidores acreditam no conceito de que as ações ordinárias são verdadeiros instrumentos de renda variável e compram empresas do Novo Mercado. Na sequência, empresas do segmento são incorporadas por ações preferenciais de outras, ainda que como parte de operações mais complexas.
  • Decisões confidenciais da Câmara de Arbitragem terminam em acordos que beneficiam poucos acionistas, em detrimento dos demais.
  • Interpretações são criadas e aceitas pelos reguladores no sentido de escamotear estruturas de controle, afastando assim as responsabilidades do acionista controlador. O próprio conceito de controle é relativizado, a partir de interpretações como “reforço de controle” ou “acionista relevante com influência significativa”.
  • Regras aplicáveis a ofertas públicas mandatórias são burladas, frustrando a expectativa dos acionistas minoritários por tratamento equitativo.
  • Na instância recursal do mercado de capitais, a União Federal é inocentada de abuso de poder de controle, a partir do voto de minerva de seu próprio representante no órgão.
  • Iniciativas de cunho principiológico são operados de maneira formalista, dando guarida a operações notadamente lesivas aos investidores minoritários.
  • A CVM ignora sua própria Deliberação 390, ao celebrar termos de compromisso sem qualquer sombra de “indenização dos prejuízos causados ao mercado” – teoricamente condição para admissibilidade da proposta de termo de compromisso (Artigo 7º).
  • Laudos de avaliação equivocados ou significativamente questionáveis são aceitos como base para operações societárias altamente lesivas aos minoritários, incluindo situações nas quais estes se vêm obrigados a absorver dívidas dos acionistas controladores.
  • Ofertas públicas são cursadas em meio a fraudes comprovadas, sem que haja qualquer punição no âmbito regulatório ou autorregulatório.
  • Conceitos aparentemente claros como “alienação de controle” e “conflitos de interesse” se perdem em interpretações jurídicas complexas, tornando as proteções aos minoritários mais fracas e inócuos os artigos 115 e 254-A da Lei das S/A.
  • Após quase 20 anos de ter sido considerada crime, a prática do insider trading ainda não levou ninguém para a cadeia.
  • Sete anos depois da implementação do IFRS, de cunho principiológico, o formalismo continua imperando na elaboração de demonstrações financeiras, e na supervisão do órgão regulador, em detrimento dos princípios elencados no CPC 00.
  • Acionistas controladores continuam com um diferencial de informação em relação a acionistas divergentes, dado que aqueles controlam tanto a lista de acionistas como os boletins de voto, e os utilizam ativamente para convencer a base de suas ideias – direito não garantido aos eventuais opositores. Há caso inclusive de assembleia cancelada por conta desse diferencial de informações.
  • Empresas dispendem recursos corporativos para defender ideias da administração ou dos controladores, em detrimento de propostas alternativas.
  • Empresas publicam dados de remuneração de executivos de difícil entendimento pelos acionistas.
  • Apesar de seu mandato conferido pela Lei 7913/89, desconhecem-se iniciativas práticas do Ministério Público no sentido de “evitar prejuízos ou obter ressarcimento de danos causados aos titulares de valores mobiliários e aos investidores do mercado”.
  • O Judiciário reiteradamente privilegia os interesses corporativos, negando direitos aos acionistas minoritários prejudicados, levando a um conjunto vazio de punições de administradores e controladores por desvios de deveres de lealdade.

Qualquer leitor que tenha chegado até aqui pode ter a clara visão do sapo boiando na panela – bem passado. Cada um dos problemas aqui citados envolve situações reais – muitas das quais tendo recebido forte oposição da Amec e de acionistas minoritários. Ocorre que, como um transatlântico no meio da noite, a tendência continua sempre na mesma direção: rumo ao iceberg.

Não há possibilidade de sonharmos com um mercado de capitais mais saudável se não atuarmos nas raízes que permitem que esses casos continuem a acontecer. Precisamos acordar, sentir a temperatura da água e pular antes que seja tarde. Do contrário, não teremos um mercado de capitais capaz de contribuir com o desenvolvimento do nosso país.


(*) A AMEC publica periodicamente na Revista RI - artigos a respeito de posições importantes para a associação. O objetivo é facilitar o reconhecimento da Amec como referência em discussões a respeito do nosso mercado de capitais, e difundir as ideias defendidas pela associação para o público em geral.
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Continua...