Enfoque

COPA DO CATAR, ELEIÇÃO BRASILEIRA & A UNIVERSALIDADE DOS PRINCÍPIOS DE GOVERNANÇA

Em 2022 estamos vivenciando dois eventos de importância nacional (eleição) e global (Copa do Mundo de Futebol) que acontecem a cada quatro anos. Ambos altamente impactados pelas consequências da Covid-19, o que amplifica estrondosamente o efeito de cada um deles. Não foi, nem está sendo, e não será apenas uma eleição presidencial, como não será apenas uma Copa do Mundo de Futebol. Ambos atestam uma sociedade civil planetária, articulada em rede, se posicionando e questionando paixões, valores, culturas e comportamentos.

Sabemos que comportamentos evoluem sempre, redefinem hábitos e costumes, reduzindo a prática de valores tradicionais, acrescentando novos. Estamos testemunhando a força inequívoca desta sociedade em rede no fortalecimento de uma consciência coletiva mundial na direção de posturas mais críticas referentes a questões morais, na maior maturidade no exercício da cidadania e principalmente no empoderamento da opinião coletiva.

Estamos literalmente presenciando o fortalecimento de um tribunal mundial da opinião pública, formada por uma maioria (poder) representada pela maioria (número), modificando uma situação cristalizada ao longo de milênios – da maioria (poder) exercida por uma minoria (elite).

Tanto a Copa do Mundo de Futebol quanto a nossa eleição, independentemente dos resultados, estão sendo analisadas, criticadas e julgadas por este tribunal mundial dentro desse contexto, e ambas estão testando todas as instâncias de governança no que ela tem de mais precioso: a dimensão e a universalidade dos seus princípios.

Entendo como dimensões de Governança: a Global, dos Estados-Nação e a Corporativa. E os Princípios que permeiam todas estas dimensões: Compliance, conformidade legal; prestação responsável de contas à sociedade; equidade, senso de justiça e transparência. A figura abaixo ilustra o que estamos abordando.

Figura 1: Universalidade dos Princípios de Governança

Universalidade dos Princípios de Governança

Governança Global é o jargão que se legitimou depois da Guerra Fria para designar a maneira pela qual o mundo se articula graças à cooperação. A expressão reflete simultâneo aumento da participação e influência de agentes da sociedade civil – principalmente do empresariado e do terceiro setor – em processos que criam e gerenciam acordos e organizações internacionais. A governança global reside no processo de construção das instituições como a ONU, FMI, OMC e outros, e dos regimes internacionais para a regulação dos desafios contemporâneos, portanto, não deve ser confundida com um “governo global”. Quando trabalhamos, por exemplo, na direção dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável, das questões inerentes à sustentabilidade planetária e dos direitos humanos, estamos focados na governança global. Existem questões sobre as quais não se pode vacilar, a sociedade está consciente de sua importância e de que a solução está na participação, ou seja, no envolvimento e no comprometimento de todos.

Governança do Estado diz respeito a questões dos países: soberania, relacionamentos, força política e econômica, voz democrática, poder da opinião pública, ambiente legal e controle da corrupção em todos os níveis da sociedade. Por último, a governança corporativa está focada no mundo dos negócios, das corporações e instituições e no seu atual poder para influenciar todas as instâncias da sociedade.

Alinhados a todo esse contexto, a Copa do Mundo de Futebol é um evento global muito maior que o simples amor pelo esporte. Segundo Kofi Annan, ex-secretário-geral da ONU, em 2006, em artigo veiculado: “Você pode estar se perguntando por que o secretário-geral das Nações Unidas está escrevendo sobre futebol. Mas a Copa do Mundo faz com que nós, nas Nações Unidas, morramos de inveja. Como o único jogo realmente global, praticado em todos os países, por todas as raças e religiões, é um dos poucos fenômenos tão universais quanto as Nações Unidas. Podemos até dizer que é ainda mais universal. A FIFA tem 207 membros. Nós temos 191. (...)”

Além da visibilidade que a Copa do Mundo possui, fazendo dela a maior oportunidade publicitária do mundo, inclui também em seu pacote economia e política. A escolha do país-sede do evento ocorre a partir de acordo entre investidores e instituições governamentais focados em interesses políticos e econômicos comuns. Em 2010, por exemplo, a Copa da África do Sul foi repleta de simbolismo, tendo Nelson Mandela como seu garoto propaganda, marcando o fim do apartheid e lançando a nova África do Sul no contexto mundial.

Outro ponto relevante a se considerar é a grande tensão para a realização do evento, que tem feito a FIFA recorrer a coberturas financeiras exorbitantes contra possíveis cancelamentos da Copa do Mundo. Um exemplo que ficou bastante famoso foi o da Copa de 2002, ocorrida no Japão e na Coreia do Sul, em que a FIFA se assegurou contra cancelamentos decorrentes de terremotos ou de instabilidade política.

Em 1930 foi criada a FIFA como uma força para o bem, que através do futebol privilegiaria a juventude e os países do terceiro mundo, por ser um esporte limpo, divertido e justo: Jogo é jogado, lambari é pescado. A FIFA foi idealizada para ser a ONU do futebol. Com o passar do tempo o futebol passou a ser um produto da FIFA e o Mundial sua principal e maior fonte de renda, e prometer uma Copa é prometer dinheiro.

E em 2022, por que o Catar? País de condições de trabalho, direitos humanos e acessibilidade a torcedores internacionais altamente questionáveis e com uma temperatura média em junho e julho em torno de 41 graus. Dinheiro não era o problema, mas o calor sim. O país foi considerado como de alto risco para desenvolver a Copa do Mundo.

A Copa no Catar foi uma decisão política que fez e faz parte de uma missão de construção da identidade nacional, que descole a imagem do país como sombra da Arábia Saudita. Foi um projeto governamental, de Estado, cujo objetivo era colocar o Catar no centro do mundo. Só um projeto dessa monta seria capaz de reconstruir toda a cidade, construir todos os estádios, hotéis para as seleções e turistas. Trazer para o mundo islâmico um evento esportivo como o futebol, importante e querido também na cultura árabe, fazendo dele um catalizador para levar adiante alguns objetivos da nação Catar.

Os catarenses criaram uma indústria desportiva que tornou o esporte parte da identidade nacional. Querem ser vistos como uma força para o bem no mundo, querem mostrar que o mundo árabe pode organizar um torneio que acolhe e respeita todas as culturas, e querem ser vistos como os banqueiros do esporte mundial, onde nada pode ser organizado sem a ajuda do Catar.

Portanto, temos um evento global fazendo parte da governança do Estado do Catar e influenciando a Governança Corporativa de várias empresas internacionais e chamando atenção para a estreita, complexa e delicadíssima ligação que edifica o contexto normativo da boa governança tanto dos Estados quanto das empresas a questão entre legalidade e legitimidade, muito bem evidenciada em 2009 por Martin Hibb em seu livro: A nova Governança Corporativa, sintetizado na Figura 2 abaixo. Percebam que o domínio da boa governança consiste no equilíbrio das práticas nos níveis mais altos da conformidade e da legitimidade

Figura 2: Contexto normativo da boa governança: Legalidade x Legitimidade

Contexto normativo da boa governança: Legalidade x Legitimidade

Iniciando pela legalidade, não podemos deixar de mencionar o fato de que, em história bem recente, o organizador dos mundiais de futebol da FIFA foi protagonista do maior escândalo planetário de corrupção no esporte. O FBI americano, que durante anos acompanhou os processos de controle, sintetizou a instituição como a criadora da lavagem de dinheiro através do esporte, osportswashing. A FIFA, na dinâmica de sua evolução com instituição internacional, criou uma cultura de toma lá, dá cá que se tornou seu modo de vida, influenciando um grupo de dirigentes de confederações do mundo inteiro que achavam que não deviam satisfação a ninguém. Se os dirigentes são corruptos, o problema não é dos países que se candidatam a sede, o problema é das pessoas que decidem.

E aqui entramos no nosso foco: a Governança. Se não há estrutura de governança que funcione, ou seja, a segregação de funções entre os principais atores e um sistema de fiscalização e controle, não há pesos e contrapesos. Se ninguém controla seus atos e se ninguém precisa se justificar para ninguém, tudo vira farra. Nesse contexto foram definidas as sedes do mundial de 2018 e 2022, Rússia e Catar, respectivamente.

Em termos de legalidade, entendo que existem diferenças normativas entre os países naquilo que é legalmente prescrito e no que é socialmente recomendado e defendido pelos códigos existentes. Sabemos que a cultura nacional interage com as leis, principalmente com aquelas que regem o mundo corporativo. Em se tratando do eixo legalidade/conformidade legal, podemos afirmar que atributos culturais próprios determinam, em grande parte, as disposições normativas em cada país – as quais têm sido duramente impactadas pela falta de observância de princípios basilares da governança corporativa, como objetividade, transparência e prestação responsável de contas à sociedade.

Independentemente de como tenha sido montado os esquemas FIFA e seus controles, a Copa do Catar já está acontecendo. Sob o ponto de vista dos ativistas de direitos humanos, está sendo considerada imoral e uma aberração. Estamos testando o grau de tolerância entre as diversas culturas presentes em solo islâmico, cujas leis e costumes árabes diferem em muito dos ocidentais. Tolerância e respeito das torcidas e seleções com as regras e costumes árabes assim como a resiliência dos anfitriões com a ignorância cultural sobre o mundo islâmico de boa parte dos visitantes. Princípios e respeito sendo testados, ao mesmo tempo em que percebemos o quanto efetivamente estamos preparados para vivenciar o discurso da diversidade.

E, no eixo da legitimidade – definindo esse termo como aquilo que é verdadeiro, autêntico, que está de acordo com o bom senso, que é considerado justo –, como será o entendimento, a percepção e o julgamento mundial em se fazer a primeira Copa do Mundo de Futebol 100% neutra em carbono através de estádios sustentáveis, transporte verde, plantio de árvores e investimentos em energia solar? O que será considerado legítimo no que diz respeito aos stakeholders? Muitos dos desafios, das escolhas e das decisões tomadas pelos catarenses têm sido considerados legais, mas de difícil entendimento e concordância pela opinião pública dos visitantes. Em qual quadrante a sociedade planetária posicionará a Copa do Catar no binômio legalidade e legitimidade de Hibb? Legal e ilegítima? Ilegítima e ilegal? Legal e legítima?

Quanto às eleições brasileiras de 2022, dentro deste mesmo racional de legalidade e legitimidade, como nós brasileiros julgaremos esse processo? Quais serão efetivamente os principais desafios de quem subir a rampa em primeiro de janeiro de 2023?

As eleições foram realizadas em dois turnos, dando como vencedor por uma margem de 0,9 % dos votos o candidato Luiz Inácio Lula da Silva. Considerada uma das eleições mais sujas, recheada de fake news, teve como tom principal a repressão da liberdade de expressão, ideias e opiniões. Seu resultado vem sendo contestado por parte da população brasileira, que através de manifestações de rua, em todo o território nacional, questionam a lisura do pleito realizado. Manifestações estas sendo acompanhadas pelas mídias internacionais e sociais e praticamente ignoradas pela mídia tradicional impressa e televisiva brasileira.

É preocupante o relatório expedido pelo Ministério da Defesa brasileiro, bem como as variadas análises estatísticas de tratamento de dados dos resultados das urnas, conduzidas por especialistas e auditorias independentes, que expuseram o fato de que não contamos com um sistema eleitoral de condições mínimas que atestem sua segurança, transparência, veracidade, rastreabilidade e que possa ser auditado em todas as etapas do processo, conforme prevê nossa legislação em vigor.

Essas eleições expuseram uma grave crise institucional entre os três poderes constitucionais quando o Poder Judiciário vem sistematicamente se colocando acima das leis e de suas próprias competências, invadindo atribuições de outros poderes.

No dia 26 de outubro último, o Alto Comando das Forças Armadas Brasileiras divulgou uma Carta Aberta a Nação brasileira, reforçando o comprometimento da Instituição com a nação e com o povo brasileiro defendendo “o retorno ao estado de direito e a observância de preceitos constitucionais, tendo em vista a censura e o caos que estão sendo impostos ao país, por quem deveria manter a lei, a ordem e ser o guardião da Constituição.”

Estamos em um impasse perigoso, tanto a legalidade e a legitimidade do nosso processo eleitoral estão sendo cirurgicamente questionadas, quanto a governança do Estado e das nossas instituições públicas e privadas estão sendo checadas.

Parte da população comum e do setor privado, fazendo a leitura difusa do contexto a sua maneira, com censura e falta de referência, começou a se posicionar desde o começo de novembro. Primeiro manifestantes com suas famílias, seguidos dos caminhoneiros, seguidos das transportadoras, produtores rurais, setores produtivos e se generalizando de várias formas... A questão que era inicialmente Lula ou Bolsonaro evoluiu para Valores x Corrupção, Lliberdade de Expressão x Censura, Bem x Mal!

A logística e o suprimento brasileiros começam a ser estrangulados, com portos e rodovias bloqueados, os ânimos começam a se exaltar e se não tivermos uma tratativa respeitosa, estratégica e rápida, corremos o risco de uma convulsão social, com graves reflexos na segurança, soberania e liberdade do povo brasileiro.

Estamos protagonizando a criação do tribunal brasileiro de opinião pública, em que a maioria em números, está lutando para ser representada por uma maioria em poder.

Em minha opinião, muita coisa está para acontecer, nada está definido. Que Deus nos ajude e abençoe, e que a universalidade dos princípios da boa governança: o bem comum, conformidade legal, transparência e prestação de contas à sociedade prevaleçam. Amém!


Adriana de Andrade Solé
é engenheira eletricista, conselheira de administração, autora , pesquisadora, professora e consultora. Co autora do livro Governança Corporativa: Fundamentos , Desenvolvimento e Tendências em parceria com José Paschoal Rossetti.
adrianasole2021@gmail.com


Continua...