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Governança

A TRANSFORMAÇÃO DA GOVERNANÇA: PASSADO, PRESENTE E FUTURO

Em um período superior a mais de 5 décadas ligado ao mercado de capitais, presenciei, direta ou indiretamente, profundas transformações, começando pelo passado, onde o tema GOVERNANÇA não estava inserido no jargão de mercado.

Passado
Deixei o Citibank, onde havia trabalhado de 1956 a 1958, para ingressar numa empresa pioneira na área de mercado de capitais chamada Deltec, fundada por operadores do Wall Street que resolveram montar uma operação que no segundo estágio transformou-se numa empresa pioneira da área de investimentos, vendendo ações de empresas brasileiras, e que contava com uma equipe de vendedores (na época não tínhamos agentes autônomos). Nessa iniciativa a Deltec teve como parceiro um representativo grupo de banqueiros brasileiros.

Os principais lançamentos de ações (hoje chamados IPO’s) foram: Cia de Força e Luz; Cia Brasileira de Energia Elétrica; Cia Paulista de Força e Luz do Paraná; Cia de Energia Elétrica Riograndense; Listas Telefônicas Brasileiras; Arno Squibb; Brinquedos Estrela e Cimento Aratu, entre outros . No entanto o lançamento da Deltec, que teve maior volume e repercussão foi em 1958, da Willys Overland (que produzia o Jipe e a Rural Willys). Nessa fase de desenvolvimento do mercado, quem comprasse mais de 500 ações da WO tinha direito a compra de um Jeep com um desconto de 10%, o mesmo ocorreu com a VEMAG que também lançou o carro DKW no país.

A Deltec, em termos de governança, exigia que as companhias contratassem auditoria externa e, em muitos casos, indicavam diretores para representar os acionistas minoritários, com ações preferenciais. Inicialmente as ações preferenciais tinham direito a dividendo de 12%, que mais tarde, em alguns casos, passou para 18%, eram cumulativos, ou seja, o percentual que não fosse pago naquele ano, acumulava para o período seguinte. A motivação das preferenciais era a de oferecer um dividendo preferencial que pudesse atrair os poupadores acostumados em aplicação em imóveis e, dependentes de aluguéis, O prospecto de emissão se reduzia a um folheto de vendas que não continha projeções (guidance) sobre o futuro. Em alguns casos isolados, a empresa emissora, com o apoio de alguns corretores, organizava programa de sustentação do mercado e, as que eram um pouco mais sofisticadas, tinham os chamados “market makers”. Assim, diferentemente de hoje, os adquirentes tomavam decisões baseados na renda futura, e não na sua valorização, mesmo porque a liquidez em bolsa era pequena. Um dos atrativos adicionais eram as bonificações ações, que mais tarde foram ampliadas quando as empresas passaram a reavaliar ativos desgastados com a inflação.

As informações a disposição dos acionistas eram precárias e não havia informações periódicas trimestrais, e sim anuais, quando das assembleias ordinárias. Nessa ocasião, algumas e raras empresas davam informações adicionais sobre o desempenho dos 4 meses que antecediam a assembleia. A ABAMEC (Associação Brasileira de Analistas de Mercado de Capitais) foi criada em 1965. Antes, o BIB organizava vários encontros no 30º andar de seu escritório localizado na Praça do Patriarca. Raríssimas empresas recebiam os analistas para dar informações, e as que possibilitavam, não abriam muitas informações e projeções. Como se dizia na época, o body language do entrevistado é que dava algumas pistas sobre o futuro.

Lembremo-nos que o balanço e a conta de resultados tinham prazo de divulgação até abril, quando s assembleias eram realizadas, e, portanto, muito defasados da situação corrente. Os relatórios que acompanhavam o balanço anual e o demonstrativo de lucros e perdas eram, em sua maioria, telegráficos e raramente comentavam a performance no mercado. Lembro ainda que as convocações de assembleias extraordinárias não davam indicações dos temas que seriam tratados e, somente mais tarde, com alguma regulação, foram obrigados a ser mais específicos.

O Fundo Crescinco, primeiro na área, foi lançado pelo IBEC em 1957 e o Condomínio Deltec em 1961.

A Lei do Mercado de Capitais (4728) e a criação dos bancos de investimentos (dedicados ao mercado de capitais) deram obrigatoriamente novas tinturas ao mercado para os bancos. Sequencialmente tivemos a lei que criou os fundos de investimento da DL 157, que tinha como princípio o destino de suas aplicações e fortalecimento do capital de giro que viriam a ser beneficiados pelos seus recursos. Diria que essa legislação foi o marco dessa história e foi grande impulsionador no desenvolvimento do mercado e provocou um extraordinário desenvolvimento da Bolsa, que recebeu em seus pregões um número elevado de novos investidores, em sua maioria totalmente despreparados para avaliarem o risco de mercado.

Vale registrar que após a Lei 4728, entre 1968 e 1974, o PIB cresceu 10% a.a. com a taxa de inflação razoavelmente controlada em torno de 20%, quando tivemos o chamado “milagre brasileiro”.

Foi nessa fase, principalmente até 1970/1971, que houve uma explosão do interesse pelo mercado acionário, com euforia desenfreada no preço das ações. Estavam lançadas as bases de um novo “encilhamento” que levou as ações a preços que não guardavam qualquer relação com sua rentabilidade esperada.

Vale lembrar as condições então prevalecentes:

  1. Regulação precária ou inexistente;
  2. Intermediários financeiros despreparados;
  3. Disclosure insuficiente;
  4. Prospectos pouco ou nada informativos;
  5. Emissões colocadas superavam valores registrados;
  6. IPOs privilegiavam insiders e aqueles que tinham ligações com emissores/distribuidores;
  7. Investidores desinformados quanto aos riscos assumidos;
  8. Expectativa na valorização imediata;
  9. Legislação societária desatualizada.

Presente
O período de ressaca que sucedeu, e que durou alguns anos, o inventário desse segundo “encilhamento” das bolsas foi diagnosticado basicamente em quatro causas básicas:

  1. A lei das S/A (Decreto-Lei no 2.627, de 1940) tinha se mostrado desatualizada em relação às novas necessidades do mercado. Era preciso não só atualizá-la não só para maior proteção aos acionistas minoritários como também para criar novos instrumentos societários que permitissem às empresas acessar a poupança para seus projetos;
  2. Apesar do esforço do Banco Central, por meio de seu departamento especializado, em para estar à altura dos grandes desafios que o mercado de capitais exigia, ficara evidente a necessidade de haver entidade específica que se dedicasse exclusivamente à regulação do mercado e seu acompanhamento direto;
  3. Não se concretizou a fundamental a existência de uma base de investidores institucionais para o mercado, que o utilizasse como instrumento de aplicação a longo prazo e que orientassem suas aplicações para remunerar seus investimentos, baseando-se no fluxo de rendas futuras e não na expectativa de valorização especulativa.
  4. Não houve a necessária abertura para investidores estrangeiros que aportassem um fluxo de recursos e, ao mesmo tempo, trouxessem maior sofisticação e experiência na análise para os profissionais do mercado.

Temos na sequência a reforma da Lei das S/A; a criação da CVM, e a aprovação pelo CMN de regras para obrigar os fundos de pensão a investir uma parcela de seus recursos em Bolsa e, posteriormente, alterações nas regras para permitir a participação em Bolsa de investimentos estrangeiros que aqui chegaram aportando recursos, mas também analistas mais treinados e experimentados na análise de investimentos, tanto do chamado buy como do sell side.

Nessa fase, que ainda classifico como PRESENTE, devemos registrar:

  • Cunha-se a expressão Governança Corporativa.
  • Tornou-se obrigatória a participação de conselheiro independente no Board das companhias abertas.
  • Criam-se associações para proteção dos acionistas minoritários (APIMEC).
  • Cria-se também uma associação destinada a dar cobertura educativa e treinamento para os empresários (Instituto Brasileiro de Governança Corporativa) da qual fui um dos subscritores iniciais.
  • A ANBID (Associação Nacional de Bancos de Investimento e Desenvolvimento) mais tarde, com a fusão de outras entidades, transformou-se em ANBIMA, e passou a colaborar com a CVM na análise preliminar de novas emissões.
  • Tivemos também a criação de instituições de outros grupos de investidores tais como ABRASCA (Associação Brasileira de Empresas de Capital Aberto), ABRAFP (Associação Brasileira dos Fundos de Pensão). Lembro ainda nessa fase mais moderna do mercado, pós 1972, o CODIMEC (Comitê de Desenvolvimento do Mercado de Capitais), que hoje tem como seu seguidor o CODEMEC. Essas instituições, direta ou indiretamente, foram estimuladoras entidades de autorregulação.

Nesse período deve ficar registrado que os investidores estrangeiros foram os demandantes por uma melhor governança corporativa.

Na fase contemporânea do mercado, vale a pena ressaltar a criação do NOVO MERCADO (NM), pela então BOVESPA, em junho 2001, visando oferecer um foro adequado para questões relativas ao mercado de capitais, e para atuar nos eventuais conflitos surgidos no âmbito das companhias comprometidas com a adoção de práticas diferenciadas de governança corporativa e transparência, hoje em seus segmentos especiais de listagem na B3.

O NM foi feito por encomenda a um grupo de experts, oferecendo uma condição especial aos investidores, e criou um segmento especial para empresas negociadas hoje na B3, para investidores nessas empresas, como lançamentos exclusivos em ações ordinárias votantes, tag along integral, um float mínimo disponibilizado (para ser suficiente e a chamada clausula compromissória para resolver eventuais litígios entre minoritários e majoritários. Também são requisitos do NM a divulgação dos salários máximos dos executivos, comitê de auditoria, compliance e o conselho de administração com no mínimo 20% de conselheiros independentes.

Não hesitaria em afirmar que, do ponto de governança corporativa, o NM representou um marco importante, bem como a criação de diferentes instituições que tem desempenhado papel relevante para o aprimoramento da governança.

Futuro
Analisamos o passado e o presente, e agora vivemos o futuro, porém, algumas características já podem aqui ser alinhadas:

  • Acionistas mais ativistas, particularmente os institucionais.
  • Conselho de Administração com composições representativas de diferentes perfis e que aportem conhecimento diferenciado para que possam realmente trazer conhecimento para definições estratégicas da empresa.
  • Os administradores cobrados de forma crescente sobre seus compromissos, não só com os shareholders, como também com seus stakeholders, ou seja, com seus funcionários, clientes, mais ambiente, diversidade e o chamamos de good citizenship.
  • Sem prejuízo de buscar retornos compatíveis para seu patrimônio, a rentabilidade não será o único parâmetro a ser utilizado para analisar as empresas.
  • Particularmente, os investidores institucionais, como os grandes gestores dos fundos de pensão vão privilegiar as empresas que estejam respeitando os princípios do ESG. Efetivamente, episódios recentes observados cada vez mais, como a questão climática e meio ambiental serão decisivas para o futuro da humanidade, cabendo às empresas definir padrões claros de sustentabilidade.
  • Ao longo do tempo os consumidores deverão gradativamente dar preferência a compra de ações de empresas cujos produtos/serviços estejam dando uma sensível e clara preferência para as regras sadias de sustentabilidade para compor seu portfólio.
  • Os analistas financeiros terão que olhar a empresa não exclusivamente por padrões passados como rentabilidades, liquidez e planos de expansão, mas também analisar seus eventuais passivos, principalmente ambientais que não estejam transformados. Talvez as empresas possam considerar dispor de analistas ou auditores ambientais.
  • O polêmico Voto Plural.

Considerações Finais
Metodologicamente, e arbitrariamente, classifiquei o PASSADO com o qual convivi a partir de 1958, quando passei a trabalhar na DELTEC, indo até 1965, que foi um marco para o mercado de capitais com a edição da Lei 4728 que veio introduzir sensíveis modificações nas operações com valores mobiliários, criando novas instituições e reformulando algumas já existentes.

O PRESENTE se inicia imediatamente após a reforma da Lei 2627 e a Nova Lei das S/A, quando Mario Henrique Simonsen, então Ministro da Fazenda, designou Alfredo Lamy e José Luiz Bulhões Pedreira para propor uma nova legislação societária, a 6404, complementada pela Lei 6385 que criou a CVM ambas em 1976.

Em fevereiro de 1977, o Ministro convidou-me para estruturar o órgão regulador e compor seu colegiado, o qual presidi até o final de 1979. Creio que essa fase, coloco como marco a crescente institucionalização do mercado como um importante componente que foi a duplicação de investidores estrangeiros em Bolsas, refletindo a crescente circulação de capitais no mundo ocidental.

A presença de investidores estrangeiros trouxe como contribuição a melhoria dos padrões de governança. Foi um dos fenômenos claros da chamada globalização em que a circulação livre de capitais foi um dos fatores relevantes.

Nessa fase temos que destacar a própria criação do IBGC, que não preciso aprofundar-me em sua importância em aspectos educacionais e das companhias abertas, bem como das companhias com estrutura familiar.

Gostaria de lembrar o que historicamente veio do velho continente, o registro de Lord Watson em 1973, que como chair do Company Affairs – que foi responsável pelo A code of practise for corporate responsibility. Ele enfatizava que deveria haver um tratamento justo aos acionistas e, posteriormente, foi determinante o Relatório Cadbury em 1992, marco importante no tema de governança corporativa.

Lembro também, o papel da OCDE que lançou os Principles of Corporate Governance. Reitero a relevância da criação do Novo Mercado pela Bolsa de São Paulo, que foi sem dúvida um marco na governa corporativa. Nesse mesmo sentido, registro a iniciativa tomada pela própria CVM, ao editar suas sugestões e propor um código de conduta.

Nessa fase atual vale destacar a sofisticação dos mercados, novos produtos sendo oferecidos aos investidores, novas instituições que também vierem a ser criadas, ou mesmo algumas já existentes, que já se sofisticaram e passaram a atuar agressivamente no mercado de valores mobiliários com certo nível de especialização e sofisticação.

Incluiria nessa fase atual as Fintechs que, de forma crescente, vem ocupando papel relevante, principalmente no futuro do setor bancário.

O que temos visto no caso brasileiro, com a substancial queda na taxa de juros até recentemente, foi uma presença marcante da vinda de novos investidores pessoas físicas ao mercado em busca de uma rentabilidade perdida com os títulos de renda fixa. Também um grande surto de novas empresas ingressando no mercado, deixando dúvidas, em alguns casos, se essas novas entrantes realmente têm a consciência da responsabilidade assumida quando passam a se tornar sociedades de capital aberto (cerca de 3 milhões).

Esse processo de aumento de investidores será afetado, e apresentará sensíveis riscos, com a volta da inflação e sua consequente repercussão nas taxas de juros que, certamente, irá impactar o processo de entrada de empresas no mercado. Voltaremos ao reinado da renda fixa?

Afirmaria, que ainda estamos distantes de contarmos com uma governança corporativa que não prescinda de constante atualização. No entanto, se olharmos o passado vamos nos dar conta do quanto progredimos. Mas ao terminar uma visão de 5 décadas, não nos resta a menor dúvida o progresso alcançado.

Roberto Teixeira da Costa
foi o primeiro presidente da CVM – Comissão de Valores Mobiliários e é conselheiro emérito e fundador do Centro Brasileiro de Relações Internacionais (CEBRI).
teixeiradacostaroberto@gmail.com


Continua...