Enfoque

A PONTE ENTRE A ÉTICA & A EMPRESA

Este é o 21º evento de entrega do Prêmio ABRASCA de Melhor Relatório Anual. Fico bastante feliz ao registrar que tive a honra de participar de todos eles, sem nenhuma ausência. Ao escolher o tema deste encontro, levei em conta que, em novembro passado, o Instituto Brasileiro de Governança Corporativa (IBGC) comemorou seu 24º ano de fundação. Qual a relação entre os dois registros? Simples: a criação do IBGC – do qual fui também um dos fundadores – marca o início da governança corporativa em nosso país e, entre várias abordagens do tema, estou optando por aquela que define a governança como a ponte entre a Ética e a Empresa.

Permitam-me acrescentar, ainda com relação ao IBGC, que em seu início de vida foram definidas três metas como propósito da nova entidade. A primeira, ser referência em Governança Corporativa no Brasil; a segunda, manter rigorosa independência de opinião, mesmo admitindo patrocínios em seus eventos e a presença de pessoas jurídicas no quadro de associados; a terceira, profissionalizar as atividades de conselheiro de administração e de conselheiro fiscal. Esses três objetivos foram alcançados plenamente, tendo o Instituto conquistado a condição de “referência” em governança no Brasil - e fora dele, mantido sua independência de opinião e, além disso, estruturado a figura do “conselheiro certificado pelo IBGC”, categoria que hoje envolve um número expressivo de participantes.

Recentemente, resolveu o IBGC substituir o primeiro de seus objetivos por algo mais abrangente e afinado com os novos tempos, ou seja, “melhor governança para uma sociedade melhor”. Partindo de uma equação bem simples, ou seja: governança corporativa = gestão empresarial no estado da arte + princípios éticos.

E, reconhecendo que são as empresas as entidades com maior poder de influência no rumo das mudanças que se multiplicam na sociedade moderna, fecha-se o círculo em torno do ideal de melhorar a sociedade aprimorando e reorientando o desempeno das empresas. Estas não deixam de ser entidades econômicas dependentes da geração de lucros, mas a forma de produzir e distribuir esses lucros passa a submeter-se ao critério maior do bem comum, como um imperativo ético.

O Relatório Anual é um exemplo bem ilustrativo e prático dos princípios éticos da transparência e da prestação de contas. Seu objetivo maior é dar aos investidores diretos (acionistas) ou indiretos (stakeholders) todas as informações de que eles necessitam para avaliar o risco que pretendem assumir. Entre essas informações, sobressaem temas vitais para a economia, como a criação e desenvolvimento de empregos, a remuneração justa de todos os capitais envolvidos (e não apenas do financeiro), o esforço de desconcentração de riquezas, o apoio decisivo à inovação em suas múltiplas formas de conquista e assim por diante.

Podemos considerar que a governança corporativa é uma das boas heranças que o século XX nos legou, juntamente com progressos notáveis no campo dos direitos humanos, da ciência – com particular destaque para a medicina – e da comunicação, terreno no qual, pela primeira vez na história da civilização, se chegou a essa figura admirável de um “mundo conectado”. Lamentavelmente, o mesmo século se destacou pela morte de milhões de pessoas em duas guerras mundiais e vários conflitos ideológicos na China, Rússia e vários outros países. Nossa missão, com vistas ao século XXI, não deixa margem para dúvidas: temos que aproveitar tudo que de bom o século XX nos propiciou e evitar, custe o que custar, repetir os terríveis erros que registrou. Faremos bem se rejeitarmos, também, alguns conceitos bastante distorcidos que ferem nossos ouvidos com frequência como: falar em “empresas íntegras” e “empresas corruptas” quando, na realidade, o que pode ser íntegro ou corrupto em uma empresa é sua administração.

Disso a Siemens nos deu um exemplo bem convincente ao substituir todos os seus altos gestores como condição para recuperar sua confiabilidade no mercado. Outra distorção é falarmos em “donos da empresa”, quando o que elas têm são sócios e o que estes possuem são cotas de capital em quantidade que os classifica como controladores ou minoritários. Esquecemos muitas vezes que os sócios, além dos direitos que a propriedade das cotas de capital lhes proporciona, têm duas obrigações básicas em face da empresa: prover sua capitalização em níveis que permitam a operação rentável e eleger administradores idôneos e competentes. A ideia de “dono da empresa” tem, no caso particular das empresas de controle familiar, gerado uma infinidade de conflitos pela indefinição da divisória entre interesses empresariais e interesses familiares.

Uma perspectiva do século XXI
O panorama geral que o século XXI nos oferece é bastante alentador. Sem mesuras ao otimismo (muito inclinado para a fantasia), mas com base em dados concretos, podemos concluir que os problemas que ainda nos afligem estão hoje bem diagnosticados e – melhor ainda! – que já estão disponíveis os recursos necessários para resolvê-los. A corrupção é um exemplo gritante: não vejo como ela possa manter o mesmo nível de alcance em uma sociedade na qual o sigilo praticamente desapareceu, em que a delação premiada tornou muito difícil a formação de quadrilhas, os controles internos das organizações se aprimoram a cada dia, o papel moeda vai desaparecer cedendo lugar à moeda digital, os performance bonds fulminam as negociatas em obras públicas e assim por diante.

Se pensarmos na desigualdade de riqueza, temos que atentar para o fato de que passou a ser um tema “na ordem do dia” na maioria dos países, particularmente no mundo ocidental onde se reconhece um fator de grande peso nesse desequilíbrio, que é o desperdício. Chegamos ao absurdo de eleger o desperdício como símbolo de sucesso! Um exemplo gritante: o mundo gasta 1,5 trilhão de dólares por ano em armamentos. Um único país responde por metade disso e, evidentemente, não será nunca um aliado convicto da paz mundial... Com proporções bem menores, mas sem fugir do absurdo, podemos lembrar a existência de cerca de 3 milhões de livros didáticos armazenados há vários anos em nosso MEC e sem qualquer utilidade.

O consumo de energia é outro capítulo dessa novela infeliz. Como existem estoques de carvão e petróleo para muitos anos, há grandes interesses em luta aberta contra a adoção das energias limpas (sol, vento, marés etc.). Felizmente, nesse aspecto, o Brasil brilha! O estilo de vida dos países avançados é outro cúmplice indisfarçado: é difícil aceitar que algumas formas de puro desperdício sejam considerados símbolos do sucesso! Por acaso você ouviu a historia de um maluquinho que mandou construir um barco com quadra de basquete?

Uma das mais notáveis mudanças de nosso século reside no fato de que a sociedade não favorece mais a hegemonia econômica, militar e cultural, de um único país, como vem acontecendo desde o final da segunda Grande Guerra. E não poderia ser diferente porque, ao final das contas, os EUA representam apenas 4% da população mundial (7,7 bi), enquanto apenas dois países – China e Índia – somam um terço (2,5 bi) e, além disso, mostram taxas de crescimento econômico mais elevadas do que a média mundial. Por oportuno, uma comparação entre cenários hoje cultivados pela China e pelos EUA nos conduz a conclusões interessantes:

CHINA
De acordo com artigo publicado por José Roberto Campos, no Jornal Valor Econômico, a China é dona de US$ 5 trilhões (6% do PIB mundial) de ativos (valores e créditos) em mais de 100 países, formados por ações e títulos soberanos nos desenvolvidos e financiamentos aos emergentes. Valor maior dos que todos os empréstimos feitos pelo Banco Mundial e pelo FMI juntos, já cresceu 1.000% desde 2.000. Dentre aplicações no primeiro grupo: US$ 1,6 trilhão em títulos do Tesouro norte-americano (quase 10% do PIB norte-americano). No segundo grupo, há na África, por exemplo, países que devem de 10 a 50% de seu PIB para a China. Diferente do que fazem USA e Rússia, que emprestam por interesse ideológico. Os empréstimos feitos pela China podem ter como garantia produtos e serviços a serem fornecidos pelos devedores. O grande projeto “Nova rota da seda” é bem ilustrativo de uma estratégia de convergência.

EUA
Houve uma clara mudança de lado: os EUA: em vez do empenho na imposição do Estado de Direito ao resto do mundo, como faziam no tempo da Guerra Fria, estão se convertendo no maior “paraíso fiscal” do mundo a ponto de atrair cerca de US$ 300 bi por ano através das shell companies cuja principal característica é ressuscitar a figura dos “sócios anônimos”. Grande parte dos projetos imobiliários da Organização Trump na Flórida foram financiados por esse tipo de recursos. Por outro lado, o processo de concentração de riqueza teve um grande aliado na redução do imposto de renda das empresas, que utilizaram os ganhos da redução, em vez dos esperados novos investimentos, para distribuir maiores dividendos e promover a recompra de suas ações no mercado Só a Apple fez, na primeira tacada, recompras da ordem de US$ 100 bilhões com a economia de imposto. A pergunta que desponta naturalmente é: será sustentável esse tipo de hegemonia? Se for negativa a resposta, o resto do mundo agradece! (fonte: Edward Luce, editor do Financial Times)

O papel das empresas no século XXI
Sobre o papel construtivo das empresas modernas, o Guia Exame de Sustentabilidade, de novembro/2019, coleciona uma série muito animadora de ótimos exemplos, dentre os quais extraí os seguintes:

  • Usina Coruripe: redução de 95% nas causas de afastamento do trabalho com novo mapeamento de riscos de acidente e programa de capacitação;
  • Bunge: iniciativas para eliminar venda de grãos oriundos de áreas desmatadas;
  • Natura: longo histórico de produção de renda local e manejo sustentável na Amazônia;
  • Pepsico: aproveitamento de 100% dos resíduos em 7 das 10 fábricas no Brasil;
  • Siemens: 45% da receita vem de produtos de defendem o meio-ambiente;
  • Celesc: programas que combatem o desperdício de energia elétrica e favorecem os consumidores de menor renda;
  • Neoenergia: cursos de eletricidade só para mulheres para equilibrar , nos próximos anos, a participação de homens e mulheres na força de trabalho;
  • Merck: como meta para 2023, igual número de homens e mulheres nos cargos de liderança;
  • Novartis: mantém uma carreta que percorre municípios levando informações, diagnósticos e tratamento para hanseníase;
  • Triunfo Transbrasiliana: programas de treinamento de funcionários para combater riscos de abusos contra crianças e adolescentes;
  • Duratex: programas de Ensino à Distância sobre temas socioambientais;
  • Novelis: reciclagem de 70% das latas de alumínio descartadas no país; alta participação de mulheres na liderança;
  • DSM: adesão, em 2017, ao Programa Mundial de Alimentos da ONU para combate à fome;
  • Termotecnica: 100% de biomassa como fone de energia nas 5 fábricas brasileiras;
  • Central Nacional Unimed: volta da simpática figura do “médico de família”;
  • Algar Telecom: horários flexíveis e home office para funcionárias que voltam da licença-maternidade;
  • Renner: contratação de mulheres refugiadas de vários países.

Vale a penar repetir: melhor governança para uma sociedade melhor.

Observações finais
1. Infelizmente, o BEM ainda não é notícia e isso não acontece por falta de boas ou ótimas noticias (em editorial recente, o OESP classificou a última década como o período de maior progresso na história da humanidade; em artigo para o New York Times, Nicholas Kristof apontou 2019 como o melhor ano da história). Como vimos, há muitas coisas boas acontecendo em nosso mundo sendo que o maior destaque foi dado à redução expressiva e veloz da pobreza.

2. Uma confortante realidade é que já estão disponíveis os recursos com os quais poderemos resolver grande parte dos problemas da sociedade. Basta um exemplo: a quantidade de alimentos que o mundo ocidental joga no lixo é mais do que suficiente para eliminar a fome no mundo.

3. A boa governança reorienta a estratégia das empresas, no sentido de continuar buscando o lucro mas, também, convertê-lo em ganhos para todos os capitais envolvidos – não só o financeiro – reduzir desigualdades e contribuir poderosamente para a sustentabilidade;

4. As empresas dispõem de vários instrumentos para desenvolver uma boa governança. Destacamos dois: a) o código de conduta, com o qual podemos implantar uma “cultura ética” nas organizações, isto é, uma cultura na qual a confiança, o respeito e a solidariedade formem o “novo normal”, com melhora substancial no ambiente de trabalho, ganhos de produtividade e enorme redução nas práticas regulatórias; b) o Relatório Anual, com o qual os princípios éticos de transparência e de prestação de contas podem ser plenamente postos em prática.

NOTA: Texto da palestra proferida por Lélio Lauretti, em 05/12/2019, no evento de entrega do 21º Prêmio Abrasca de Melhor Relatório Anual, no Teatro CIEE em São Paulo.


Lélio Lauretti
é consultor e expert em Relatórios Anuais - foi o criador e o 1º presidente da Comissão Julgadora
do Prêmio Abrasca de Melhor Relatório Anual.
lauretti@osite.com.br


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