Educação Financeira

VOCÊ SABE COM QUEM ESTÁ FALANDO?

No final do século XIX, meus antepassados passavam fome na Europa. A terra era o principal fator de produção e estava ficando cada vez mais escassa. Naquela época, a saída era migrar para o Novo Mundo, onde terra parecia não faltar.

Na história oral, preservada pelas gerações de descendentes tanto da parte materna, italianos, quanto da parte paterna, alemães, conta-se que foi preciso fazer uma escolha entre América do Sul ou do Norte. Naquela época, o Brasil, a Argentina, o Chile, o Canadá e os Estados Unidos da América tinham terras férteis e carência de mão de obra.

Com as informações que temos hoje, sabemos que a escolha dos meus antepassados, o Brasil, não foi das melhores. Mas, por que tantos migrantes que tiveram opção entre América do Norte ou do Sul escolheram a segunda? Seriam pessoas néscias?

Na verdade, olhando para o cenário da época, a escolha não era nem um pouco óbvia. Os EUA ainda tinham graves feridas da Guerra de Secessão travada entre 1861 e 1865, e o Canadá com seu clima hostil não parecia mais atrativo do que a América do Sul.

Quais são os motivos que levaram os EUA e o Canadá a ter tanto sucesso econômico enquanto os países da América do Sul ficaram estagnados economicamente?

Jared Diamond tem uma profícua obra em que tenta entender quais são os motivos que direcionam algumas nações a darem certo e outras não. Em seu último livro, “Reviravolta: Como indivíduos e nações bem-sucedidas se recuperam das crises”, Diamond identifica 12 fatores que fazem com que indivíduos tenham sucesso na resolução de uma crise pessoal; na sequência, ele correlaciona 12 fatores que levam nações a superarem crises nacionais. Neste artigo, vou citar apenas os três primeiros. Espero, assim, despertar sua curiosidade e lhe motivar para a leitura do livro, a fim de conhecer os outros nove.

O primeiro fator é o consenso nacional de que a nação está em crise. Hoje parece que existe um consenso nacional de que estamos em crise.

O segundo é a aceitação da responsabilidade nacional de fazer algo. Quando eu estava na universidade, era consenso de que todos os nossos problemas eram causados pelos EUA. Hoje nem o mais ferrenho esquerdista acredita, de fato, nessa hipótese. Sim, aceitamos a responsabilidade por nossos problemas.

O terceiro fator é a construção de uma cerca para delinear os problemas nacionais que precisam ser solucionados. Combate à corrupção, reforma tributária, saneamento das finanças públicas, reforma eleitoral, reforma do funcionalismo público, combate à pobreza e retomada de obras públicas: foram esses os problemas nacionais delimitados por Getúlio Vargas antes de se tornar ditador em 1930. De lá para cá, candidatos tanto da esquerda quanto da direita têm a mesma plataforma de ataque aos problemas nacionais, porém quase nada tem sido feito.

Se existe quase um consenso sobre os problemas do país, por que não conseguimos atacá-los com afinco? Por que os EUA, nação colonizada praticamente ao mesmo tempo que o Brasil, com recursos naturais semelhantes, se tornaram a nação mais rica do mundo, enquanto nós, da Terra de Vera Cruz, patinamos com nossos eternos problemas há mais de um século?

No fantástico livro “História da riqueza no Brasil – Cinco séculos de pessoas, costumes e governos”, Jorge Caldeira traça um impressionante e inédito retrato do nosso desenvolvimento. Ele mostra que a sociedade brasileira traz de nascença a dualidade entre o direito dos costumes, herdado da amalgamação entre o poder Tupi-Guarani, o africano com sua herança tribal e o europeu pobre, em grande parte descendente de árabes, com o direito romano da coroa portuguesa.

Como em todas as coroas europeias, o direito e a política portuguesa se baseavam na regra aristotélica de que os seres humanos não eram iguais. A justiça ideal não era aquela que considerava todos iguais perante a lei. Mas, ao contrário, a boa justiça era dar a cada qual o seu direito. O governo bom era aquele que não interferia nas desigualdades, pois, acreditava-se que as desigualdades haviam sido introduzidas por Deus na natureza.

Baseado nessas ideias, em 1521, o rei de Portugal Don Manuel, aproveitando as vantagens da tipografia recém-criada, mandou imprimir um conjunto de preceitos jurídicos que ficou conhecido como Ordenações Manuelinas. Esses preceitos difundiam a ideia do corporativismo, que nada mais é do que entender a sociedade como um corpo, cujo governo, a cabeça é designado por Deus.

Abaixo do rei, vinham os homens de estado, geralmente aqueles que aplicavam as leis; eles somente poderiam ser presos por ordem do monarca. Mais abaixo, vinham a nobreza e o clero, cujos representantes também só poderiam ser presos com ordem do monarca, e suas prisões deveriam ser feitas com discrição. E, assim, cada categoria da nobreza ou ordem religiosa tinha garantidos seus privilégios. Os privilégios também eram tratados como “direito adquirido”, de modo que nem o próprio rei poderia subtraí-los. Os desembargadores só poderiam ser citados em um processo com autorização do rei e, claro, só poderiam ser presos com autorização expressa da sua majestade, o que nunca acontecia. Finalmente, as Ordenações tratavam das relações entre fidalgos e os extratos mais baixos da sociedade: os homens de negócio e o povo trabalhador.

É nesse ponto que podemos entender a gênese das ações de um “deusembargador” se recusa a receber uma notificação de quem ele julga ser “analfabeto”, ou seja, um homem do povo que tenta cumprir uma norma sanitária. Também podemos entender a postura de um homem branco, morador de condomínio, que se acha superior a um entregador de aplicativo. Imagino que aquele homem, deva ignorar que seu comportamento de se julgar superior ao trabalhador “preto, favelado e semianalfabeto” vem das terríveis e ultrapassadas Ordenações Manuelinas.

É verdade que precisamos de muitas reformas, entre elas a tributária, a eleitoral e a do funcionalismo público. E, sem dúvida, precisamos combater a corrupção e a pobreza. Porém, antes de tudo, precisamos acabar com a concepção aristotélica aqui difundida pelas Ordenações de Dom Manuel que divide a sociedade em castas, que desrespeita o mais básico pilar das sociedades modernas de que todos são iguais perante a lei.

Precisamos compreender que privilégio jamais deve se tornar direito adquirido, pois é um pretenso direito concedido no passado e exercido à custa do futuro das próximas gerações.

Neste momento em que os messiânicos combatentes da corrupção mais parecem “santos do pau oco”, tanto para a esquerda quanto para a direita, temos a oportunidade de encarar de frente que o judiciário precisa de controle, visto que em seu seio existem pessoas endeusadas pelo poder quase absoluto, pessoas que não aceitam responder por seus erros. Até porque julgam que, ao contrário dos outros mortais, não erram.

Como meus antepassados que pisaram nesta terra e que aqui se uniram a pessoas de todas as etnias dando origem a brasileiros miscigenados como eu, sonho ver um país justo onde o Estado trate cada cidadão com igualdade, onde a justiça esteja ao lado do povo e não sobre o povo, como ocorre atualmente. Onde desembargadores não se julguem superiores a policiais. Onde moradores brancos de condomínios não se achem melhores que pretos, moradores de favela.

Acredito que a cerca para delinear os problemas nacionais, a que se refere Jared Diamond, deva ser construída em torno das desigualdades estruturais da nossa sociedade. Quando tivermos coragem para admitir que vivemos em uma sociedade injusta, que discrimina as pessoas pela raça ou etnia, pelo sexo, pela orientação sexual, pela religião ou não religião e, pela origem social, poderemos aspirar construir uma sociedade moderna e verdadeiramente democrática.

Segundo a pesquisa “Educação, pobreza e desigualdades”, desenvolvida pela Universidade Federal de Minas Gerais, com apoio da Fundação Tide Setubal, a origem social é o fator de maior influência nas desigualdades de desempenho entre estudantes. Essa desigualdade na educação básica, além de moralmente indefensável, ainda é economicamente injustificável, pois, na era do conhecimento, uma criança bem educada pode, no futuro, gerar muito mais riqueza do que uma mina de ouro.

Como já sabemos desde Getulio Vargas, o Brasil precisa de muitas reformas, mas a mais urgente é enfrentar as desigualdades que condenam o futuro de uma criança apenas pela sua origem.

Chega de “você sabe com que está falando?”. Chega de privilégios, chega de direitos adquiridos, chega de preconceito, chega de racismo, chega de sexíssimo, chega de discriminação de qualquer natureza.

Precisamos unir todos os brasileiros, de todos os espectros ideológicos, que acreditam na igualdade entre os seres humanos, para encarar de frente as desigualdades estruturais que estão impregnadas em nossa cultura e, assim, mudar o Brasil.

Jurandir Sell Macedo
é doutor em Finanças Comportamentais, com pós-doutorado em Psicologia Cognitiva pela Université Libre de Bruxelles (ULB) e professor de Finanças Pessoais da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
jurandir@edufinanceira.org.br


Continua...