Desde a formulação de sua legislação ambiental a partir dos anos 1980, o Brasil é reconhecido por seu arcabouço legislativo avançado e protagonismo em questões ambientais, se posicionando de maneira ambiciosa nos grandes fóruns do tema. No atual governo, esse protagonismo tem sido posto à prova.
O enfraquecimento do Ministério do Meio Ambiente, somada ao posicionamento do Planalto em prol de um afrouxamento na fiscalização e multas relacionadas ao desmatamento, contribuíram para que o Brasil apresentasse em 2019 e em 2020 recordes de queimadas e desmatamento. Em 2019, o Brasil apresentou um aumento de 49% no número de incêndios. Só em 2020 foram 222 mil incêndios no Brasil, sendo 103 mil na Amazônia e 22 mil no Pantanal. Esse montante representa um crescimento de 12,7%, 16% e 120%, respectivamente, em relação ao ano anterior, e o maior nível desde 2010. Somando com outras formas de desmatamento, na Amazônia, no Pantanal e no Cerrado foram impactados mais de 58.000 km2 em 2020, recorde nos últimos 12 anos.
Adicionalmente à questão do desmatamento, no final de 2020, o Brasil apresentou um novo (ou talvez velho) compromisso nacionalmente determinado (NDC) frente ao Acordo de Paris com uma ambição igual (ou menor) ao do compromisso anterior. Apesar do compromisso de redução de emissão manter o valor (37% até 2025 e 43% até 2030), o país recalculou sua linha de base de 2005, aumentando a mesma de 2,1 GtCO2e para 2,8 GtCO2e. Além disso, apesar de especulações, o Brasil não se comprometeu com neutralizar suas emissões até 2060, colocando isso como uma intenção, e excluiu a parte do texto em que o atingimento das metas dispensaria ajuda internacional. A NDC também omite ações que serão feitas para o combate ao desmatamento e redução do consumo de combustíveis fósseis. Em uma tentativa de melhorar a imagem do governo e do país, durante a Cúpula do Clima em abril de 2021, o presidente sugeriu uma neutralidade climática em 2050 e fim do desmatamento até 2030, mas sem detalhes do processo de execução, o que gerou ainda mais incertezas. Dias após o pronunciamento, houve mais um corte no orçamento de Ministério de Meio Ambiente.
Apesar do cenário perfeito para diminuição da ambição ambiental por parte das empresas, estas questões acenderam o alerta internacional quanto às fragilidades ambientais no Brasil. Esse ambiente aumentou a pressão por parte de investidores, clientes e consumidores sobre as companhias nacionais, principalmente aquelas relacionadas à agropecuária.
Mesmo diante do contexto pandêmico, o Brasil seguiu em 2020 se destacando como grande exportador agropecuário, fechando o ano com R$45 bilhões exportados, valor 6% superior ao ano anterior, o que representa 43% do volume exportado pelo país. O destino das exportações do agro é, principalmente, China, Europa e Estados Unidos. Além da Europa, já reconhecida como ambiciosa em relação a políticas climáticas, a China apresentou em sua nova NDC um compromisso de ter seu pico de emissão antes de 2030 e neutralização de emissões até 2060. Nos Estados Unidos, a administração do democrata Joe Biden tem feito progressos e o discurso do presidente na Cúpula do Clima foi arrojado quanto às ambições norte americanas.
Como materialização dos riscos dessa ambição sobre o setor agropecuário brasileiro, podemos citar o plano francês de se tornar auto-suficiente em soja até 2030, que tem como foco “parar de importar de áreas desmatadas” (“to stop importing deforestation”), de acordo com o Ministro de Alimentos e Agricultura. Essa questão já acende um alerta para os produtores brasileiros.
Outro importante catalisador desse movimento são ameaças de boicotes de empresas inglesas aos produtos brasileiros. Quarenta empresas, entre elas Sainsbury's, Tesco, Morrisons e Marks & Spencer, assinaram uma carta aberta criticando a NDC brasileira e afirmando que esta “coloca em risco a possibilidade de continuar consumindo do Brasil no futuro (“put at risk the ability of organisations such as ours to continue sourcing from Brazil in the future”). É importante salientar que essa carta foi resultado de uma pressão feita pela sociedade civil (Greenpeace) sobre a Tesco, que também se comprometeu de outras formas em melhorar a gestão da sua cadeia de suprimentos para não comprar de desmatadores.
Como resultado dessas pressões, as empresas brasileiras ganharam, em 2020, protagonismo no combate ao desmatamento. Em julho deste ano 40 empresas, entre elas, BRF, Klabin, Marfrig e Suzano, assinaram um comunicado, facilitado pelo CEBDS e direcionado à Vice-Presidência da República e ao Conselho Nacional da Amazônia Legal, manifestando preocupação com a percepção internacional negativa do Brasil em relação à Amazônia. Em específico, JBS e Marfrig são duas gigantes que melhoraram seus posicionamentos no ano recém finalizado. O posicionamento quanto as questões climáticas também se intensificaram, tendo a JBS e a Minerva Foods assumido metas net-zero.
Mesmo com esses compromissos, estas empresas ainda são alvo de controvérsias e críticas constantes em relação ao tema. Relatório lançado em dezembro de 2020 pela Global Witness mostra que JBS, Marfrig e Minerva compraram gado, entre 2017 e 2019, só do Pará, de 379 fazendas com mais de 165 km2 desmatados, sem que isso fosse identificado por suas auditorias ou bancos. O Índice de Frigoríficos da FAIRR, rede de investidores que avalia questões ESG na cadeia de produção de proteína animal, identifica que JBS, BRF e Marfrig possuem riscos medianos, já Minerva possui riscos altos.
Com segurança é possível afirmar que a tendência vai para além das empresas que comercializam a proteína bovina, devendo se expandir para os traders de commodities e outras cadeias de proteína animal, como é o caso da cadeia de frango que depende de grãos como o milho. Matéria publicada no The Guardian em 2020 já alerta para a alimentação da produção avícola no Reino Unido com origem em desmatamento do Cerrado brasileiro. O artigo apresenta, inclusive, que cerca de metade das exportações brasileiras da Cargill para o Reino Unido são originárias desse bioma, de acordo com dados coletados na plataforma Trase.
Fica evidente que, apesar do avanço das grandes empresas em relação ao desmatamento, existe uma tendência que estas reforcem ainda mais seu posicionamento, gestão, narrativa e comunicação em relação ao tema. Isso tende a levar um efeito em cascata, influenciando toda a cadeia do setor agropecuário.
Finalmente, fica claro que a pressão internacional sobre temas climáticos tende a ser um direcionador da postura das empresas ainda maior do que as próprias políticas públicas. Sendo assim, as empresas tendem a ganhar protagonismo, antes do governo, para poderem sobreviver às pressões do mercado internacional. Além de acesso ao mercado, quem estiver melhor posicionado neste tema tende ampliar o acesso aos bolsos de investidores dedicados à questão ambiental e de sustentabilidade em geral, até então pouco acessados pelo setor, devido aos riscos por este apresentado.
Para além de 2021 o tema da biodiversidade deve também entrar em voga com a consolidação das metas da “Biodiversity Post-2020 Task Force”. Esse movimento trará pressão também para outros setores que têm impactos relevantes sobre o uso do solo, como o setor de infraestrutura.
Em um mundo em transformação e refletindo sobre as vantagens e riscos das cadeias globais após o impacto da pandemia, estar atento aos aumentos de pressões de consumidores e sociedade civil organizada deixará de ser considerado como um posicionamento diferenciador e passará a ser questão de sobrevivência. Esse é um dos resultados da emergência do capitalismo de stakeholders.
Carla Schuchmann
é consultora internacional em ESG.
carla.schuchmann@gmail.com
Felipe Nestrovsky
é líder de consultoria para empresas não-financeiras na SITAWI.
fnestrovsky@sitawi.net