Governança Corporativa

O CASO PETROBRAS E A NECESSIDADE DE REENCONTRAR OS FUNDAMENTOS DA GOVERNANÇA CORPORATIVA NO BRASIL

Motivado pelos escândalos de corrupção na Petrobras, o presidente da BM&FBovespa, declarou, durante um recente encontro de analistas da APIMEC em São Paulo, que a bolsa está elaborando, junto com órgãos governamentais, propostas para reformar a governança corporativa de empresas estatais. Segundo Edemir Pinto, tais reformas não seriam exclusivas às companhias listadas mas não ofereceu maiores detalhes, prometendo simplesmente revelá-los em breve. A iniciativa da Bolsa busca melhorar a imagem do mercado de capitais brasileiro, que tem sofrido muito com as irregularidades reveladas pela operação Lava-Jato na empresa que era, até pouco tempo atrás, a Cinderela do mercado brasileiro.

Existem problemas de governança inerentes às empresas estatais, e as propostas da Bolsa certamente irão considerá-los. Mas há dois perigos em buscar em novos regulamentos para estatais uma solução à corrupção na Petrobras. O primeiro é que as questões regulatórias são sempre complicadas e, como na medicina medieval, existe a possibilidade da cura ser pior que a doença. Ou seja, os potenciais custos e benefícios regulatórios precisam ser bem ponderados. O segundo é o risco de não reconhecer que a corrupção na Petrobras é o resultado de falhas básicas de governança corporativa que se aplicam também a muitas outras companhias brasileiras e que ao apontar o dedo às empresas estatais se perde a oportunidade de implementar importantes mudanças na governança corporativa brasileira como um todo.

O FOCO REGULATÓRIO EM EMPRESAS ESTATAIS
A grande questão na governança de empresas estatais é como minimizar a interferência do governo. Portanto, é de se esperar que os regulamentos a serem propostos pela Bolsa busquem uma maior separação entre as funções do Estado como acionista e como administrador nacional. Essa maior independência na gestão permitiria que todos os “stakeholders” (acionistas, credores, fornecedores, clientes, empregados, competidores, e contribuintes) fossem tratados de forma mais equitativa, sem que nenhum deles fosse beneficiado às custas do outro. No âmbito da governança corporativa, essa separação entre o Estado e a estatal precisa ocorrer pela formação de um conselho de administração agindo em prol da empresa como um todo, e não simplesmente defendendo o interesse do governo.

As propostas da Bolsa, devem, portanto, exigir um maior nível de independência do conselho de administração. As propostas podem incluir um requisito mínimo de conselheiros independentes, requerimentos que um certo número de conselheiros venham da iniciativa privada e não tenham vínculos partidários, ou reformas estatutárias para prevenir conflitos de interesse. Para assegurar que essa independência seja, de fato, observada, a BM&FBovespa também pode propor medidas para melhorar a transparência das estatais e, talvez, melhorar a atuação de órgãos que fiscalizam o cumprimento de normas.

É justamente nessa questão de novas regras para a fiscalização de estatais que não se deve exagerar. O Tribunal de Contas da União (TCU), cujo objetivo é proteger os cofres públicos, já fiscaliza empresas estatais, mas sua atuação é, talvez, excessivamente formal e rigorosa. Do lado positivo, o TCU pune e inibe transgressões dos administradores. Mas do lado negativo, essa maior disciplina pode sobrecarregar e retardar a administração da empresa.

O formalismo exagerado, focado em questões técnicas ou processuais, que pode caracterizar a atuação do TCU, é especialmente perigoso porque o TCU tem a capacidade de impor severas penas aos administradores de empresas estatais. Uma pequena omissão processual, mesmo que bem intencionada, pode expor um administrador a punições como o confisco de bens, uma longa batalha judicial e o eventual ressarcimento de todo o prejuízo causado à companhia pela decisão. E como uma diretoria pode agir em colegiado, é possível que um administrador não diretamente envolvido na questão seja sujeito às mesmas punições. A atuação do TCU pode, portanto, dificultar o recrutamento de altos executivos.

É até possível que haja uma seleção perversa de administradores em empresas estatais. Isto é, aqueles com menor aversão a risco e, consequentemente, aqueles com mais probabilidade de infringir a lei, seriam justamente os mais atraídos a trabalhar na empresa. Portanto, para permitir um mínimo de agilidade administrativa e para poder atrair executivos de qualidade, a resposta regulatória à corrupção na Petrobras não deveria incluir um regime de fiscalização externo mais estrito do que atualmente existe para empresas estatais.

A RESPOSTA REGULATÓRIA DEVERIA IR ALÉM DE EMPRESAS ESTATAIS
Mas o grande perigo de uma reforma regulatória focada exclusivamente em empresas estatais é que esse foco é pequeno demais. É claro que existem males inerentes a estatais e que soluções específicas seriam vantajosas. Mas também é claro que a corrupção na Petrobras não é toda causada pelo fato de a empresa ser estatal e que um foco mais amplo, sob a perspectiva da governança corporativa, revela soluções que podem ser úteis a muitas companhias abertas brasileiras.

É bem provável que motivos políticos contribuíram para a omissão do conselho de administração com relação aos problemas de corrupção na Petrobras. Ou seja, conselheiros, ao longo dos anos, não exerceram uma fiscalização mais rigorosa porque apurar problemas de corrupção não beneficiaria quem os colocou lá. Mas mesmo não havendo nenhuma influência política é difícil imaginar que a corrupção na Empresa se eliminaria por completo. Diretores e gerentes pareciam operar como déspotas de seus pequenos reinos. E um lado da Empresa não sabia o que acontecia no outro. Nesse ambiente de pouca fiscalização, fica fácil exigir e receber propina.

E falhas de fiscalização não são exclusivas da Petrobras. Vários relatos sugerem, por exemplo, que a prática de “agradar” o diretor responsável é importante para se ganhar contratos de muitas grandes empresas brasileiras, sejam elas estatais ou não. Nessas empresas, assim como na Petrobras, não existem controles internos adequados. Portanto, seria um erro não usar os escândalos da Petrobras para refletir mais amplamente sobre o estado da governança corporativa nacional.

Os problemas de corrupção na Petrobras são o resultado de duas falhas básicas de governança: um conselho de administração que não é suficientemente independente, e estruturas inadequadas para o conselho monitorar a diretoria. A solução para tais falhas são recomendações clássicas da boa governança, mas que são tipicamente ignoradas no Brasil por serem consideradas irrealistas ou desnecessárias.

Em nosso contexto, onde a grande maioria das companhias abertas são controladas, existe uma resistência à recomendação de se aumentar o nível de independência do conselho de administração. Rejeita-se a recomendação de que a maioria do conselho seja independente, como regem as melhores práticas de governança, por ser irrealista. E o aumento no número de conselheiros independentes é visto como uma inconveniência. Mas, como o caso da Petrobras revela, é importantíssimo que a visão do controlador seja contestada dentro do conselho. A diversidade de perspectivas é essencial para que haja um debate saudável e que as decisões da companhia sejam bem fundamentadas.

Outra recomendação clássica da boa governança corporativa que é ignorada no Brasil é a de se dar ao conselho de administração a capacidade institucional adequada para fiscalizar os demais administradores. A divergência de interesses entre o proprietário de uma empresa e o agente (administrador) contratado para gerenciá-la é a principal questão da governança corporativa nos países anglo-saxônicos, onde as companhias tendem a ter o capital difuso. Mas o “dilema de agência”, como essa divergência de interesses é chamada, perde a relevância no Brasil, onde a proximidade entre o acionista controlador e os administradores alinha os interesses das duas partes. No Brasil, então, encontrar uma solução para o dilema de agência não é tido como prioridade.

Como o escândalo da Petrobras evidencia, porém, a presença de um acionista controlador não garante, necessariamente, o bom comportamento dos administradores. Nem todo controlador, ou grupo de controle, é igualmente próximo aos administradores. A força da fiscalização de um controlador que fundou uma companhia, por exemplo, normalmente será maior que a fiscalização exercida pelos seus vários netos que controlam a companhia três gerações depois. Portanto, é importante, mesmo no Brasil, encontrar soluções ao dilema de agência e isso se dá com o aumento da capacidade institucional de fiscalização do conselho de administração.

SOLUÇÕES PARA O PROBLEMA DE INDEPENDENCIA DO CONSELHO NA PETROBRAS
Realisticamente, não se pode esperar que o Estado ceda o controle da Petrobras, mas a Empresa se beneficiaria enormemente de um conselho de administração mais independente que possa efetivamente oferecer um contrapeso à visão do acionista controlador. A Petrobras atualmente tem um conselho de administração com 10 membros. Segundo permite a legislação brasileira, um deles é o representante dos empregados (Lei 12.353 de 2010, que se aplica somente a estatais) e dois deles são respectivamente eleitos pelos acionistas minoritários e os preferencialistas (Lei 6.404 de 1976). Considerando que o presidente do conselho tem o voto de desempate (Artigo 31 do Estatuto Social da Companhia), o Estado poderia permitir que mais dois conselheiros fossem eleitos pelos minoritários e mesmo assim manter o poder no conselho. Portanto, em vez de eleger somente um, os minoritários poderiam eleger até 3 conselheiros. Outra mudança para ser implementada em conjunto ou independentemente da medida acima seria exigir que, dentre aqueles conselheiros eleitos pelo Estado, um número deles viesse da iniciativa privada ou não tivesse vínculos diretos com algum partido político. Finalmente, os fundos de previdência associados ao governo deveriam ser considerados parte do grupo controlador para fins da eleição dos representantes dos acionistas minoritários e preferencialistas, como aconteceu nas últimas eleições do conselho.

Além de aumentar o número de conselheiros independentes, poder-se-ia também aumentar a influência desses conselheiros. Conselheiros independentes poderiam ser incluídos nos principais comitês de assessoria do conselho e poderiam receber certos poderes especiais, como aconteceu quando foi criada a nova Diretoria de Governança, Risco e Conformidade. Para que haja a substituição do indivíduo ocupando aquela diretoria, pelo menos um conselheiro eleito pelos minoritários ou preferencialistas precisa dar seu aval. Esta e todas as outras propostas mencionadas aqui deveriam ser mudanças estatutárias para que sejam mais transparentes e para demonstrar o comprometimento da Companhia com elas.

SOLUÇÕES PARA O DILEMA DE AGÊNCIA NA PETROBRAS
A segunda grande carência na governança da Petrobras é a capacidade do conselho de efetivamente supervisionar os demais administradores. Não faz sentido uma empresa da complexidade da Petrobras ser administrada por um conselho que trabalha em tempo parcial. Para exercer a função de fiscalizar os administradores, como manda o Artigo 142 da Lei 6.404 de 1976, o conselho precisa de assessores que atuem diariamente dentro da empresa. Tais assessores fariam parte da secretaria de governança, um órgão assessor do conselho, recomendado pelo Instituto Brasileiro de Governança Corporativa, mas ainda pouco difundido no país.

A Petrobras possui uma Secretaria Geral que parece exercer parte das funções de uma secretaria de governança, como a manutenção de registros do conselho de administração e da assembleia geral de acionistas. Porém, por estar sob a jurisdição do diretor presidente no organograma corporativo, essa Secretaria Geral, naturalmente, não pode exercer a responsabilidade de fiscalizar a diretoria como deveria uma secretaria de governança. O mesmo acontece com a recém criada Diretoria de Governança, Risco e Conformidade, que nada contribui para mitigar a importante questão do dilema de agência.

Aumentar a capacidade de monitoramento é essencial porque atualmente o conselho da Petrobras fica, de certa forma, refém dos relatórios apresentados pela diretoria. Como em muitas outras companhias brasileiras, o Conselho não consegue examinar todas as propostas da diretoria de forma crítica. E é por isso que a criação de uma secretaria de governança seria vital. A secretaria de governança, agindo sob a direção do conselho, acompanharia, diariamente, as atividades dos diretores.

Outra forma de fortalecer o poder de monitoramento do conselho seria exigir que os resultados de uma auditoria externa especial fossem apresentados sempre que projetos da companhia estiverem acima do orçado. Finalmente, o conselho de administração da Petrobras deveria se reunir com mais frequência para avaliar o andamento dos negócios da empresa. O fortalecimento da função de supervisão do conselho de administração é a forma mais direta de combater o dilema de agência que, junto com a falta de independência no conselho, são os grandes responsáveis pelos problemas de corrupção da Empresa.

CONCLUSÃO
O escândalo da Petrobras afetou a confiança dos investidores em todo o mercado brasileiro e, por isso, faz sentido pensar em soluções que se apliquem ao mercado como um todo. As reformas na Petrobras precisam ir além da substituição de Graça Foster ou da criação da Diretoria de Governança, e a resposta regulatória precisa ir além de novas regras para empresas estatais. As mudanças recentemente implementadas ou atualmente sendo consideradas são importantes, mas não são suficientes para prevenir problemas futuros na Petrobras nem em outras companhias abertas brasileiras.

A governança corporativa explica e oferece soluções à corrupção na Petrobras que podem também ser aplicadas mais universalmente. Sob a ótica da governança, as grandes deficiências da Petrobras são um conselho de administração que não oferece nenhum contrapeso ao acionista controlador e cuja capacidade de supervisão é fraca. E esses problemas são característicos da muitas outras empresas brasileiras. Seria, portanto, um grande erro não utilizar as lições da Petrobras para promover melhorias em nossa governança corporativa como um todo.

Existe um discurso que tem ganho força internamente desde a crise financeira desencadeada nos Estados Unidos em 2008, que a governança corporativa brasileira é, de certa forma, superior ao modelo anglo-saxão. Aqueles que defendem essa posição citam que os conselheiros brasileiros conhecem mais intimamente a companhia e não permitiriam as falhas gerenciais observadas nos EUA. Isso pode ou não ser verdade. Como um contra-exemplo basta lembrar das perdas com derivativos cambiais na Sadia e Aracruz durante aquela mesma época. O fato que não se pode negar é que a governança corporativa brasileira ainda tem muito que melhorar e que a tradicional receita anglo-saxônica de governança, baseada na maior independência do conselho de administração e na mitigação do dilema de agência, torna as decisões do conselho de administração mais bem fundamentadas e cria sistemas de controle interno mais institucionalizados e confiáveis.



Lucas Medeiros

é economista formado pela Universidade de Chicago e com mestrado da Johns Hopkins School of Advanced International Studies.
lmedeiros@gmail.com


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