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Ponto de Vista

COMO SUPERAR O MACHISMO ESTRUTURAL NO MERCADO FINANCEIRO?

Quando eu estava na 8.ª série li um livro da Heloneida Studart, cuja 1.ª edição é de 1974, intitulado “Mulher: objeto de cama e mesa”. Estudava em um colégio de freiras em São Paulo e a Madre Superiora, uma espanhola bastante progressista que hoje reconheço como mulher feminista, pôs-nos a discutir o texto em sala de aula. Para os meus 13 anos de idade o livro teve um impacto importante por conta do conteúdo disruptivo para a época: praticamente um libelo acusatório em tom jocoso do reinante machismo estrutural e uma grande exaltação a um sentimento feminista.

Desde cedo o ambiente que me circundou e as pessoas com as quais convivi me estimularam a exercer um protagonismo. Minha mãe, por exemplo, sempre fez questão de frisar a importância da independência econômica do parceiro; meu pai, por sua vez, era o entusiasta mor de qualquer tema de carreira em casa; vida profissional acima de tudo e de todos. Por outro lado, lembro claramente algumas amigas divagarem aqui e ali sobre casamento como projeto de vida (o que também não tem nada de errado; só estou querendo destacar o ambiente no qual cresci e os estímulos que recebi). Neste contexto, foi natural, desde muito cedo, conectar-me com preocupações tidas como feministas.

Só que admito que nasci, cresci e me desenvolvi em um ambiente privilegiado, se compararmos com histórias de mulheres que vivenciaram dilemas e travaram batalhas mais tristes, trágicas e sofridas por conta de raça, orientação sexual, condição social, poder econômico.... 

Contudo, e eu cito a nigeriana e ativista feminista Chimamanda Ngozi Adichie, “eu escolho não me desculpar pela minha feminilidade e por ser mulher. Só quero ser respeitada.” Tal postura independe de privilégios. É uma questão universal na qual me permito inserir. Por esta razão entendo ter este espaço de fala livre para a minha manifestação.

Quero falar de feminismo enquanto equilíbrio. Ele é essencial para a desconstrução da estrutura de um poder patriarcal e sexista, possibilitando que a liberdade de ser e de existir das mulheres seja simplesmente admitida pelos homens e também pelas próprias mulheres a fim de que não mais haja qualquer tipo de dominação, que na verdade não deveria se encontrar em nenhuma esfera da humanidade.

Quando falo em reconhecimento também pelas mulheres é porque me lembro de Simone de Beauvoir que afirmava que o processo histórico de dominação da mulher só foi bem-sucedido porque teve ajuda das próprias mulheres, que foram convencidas de que seu lugar era de subordinação. Interessante refletir como nós, mulheres, reproduzimos o machismo dentro de nós mesmas, de forma naturalizada, como nas pequenas armadilhas do dia-a-dia. Portanto, é fundamental trabalharmos nessa desconstrução cultural.

As mulheres, pelo menos a maioria delas, só querem ter as mesmas oportunidades de promoções e desafios, sem que isso signifique trabalhar em dobro e serem vistas como ambiciosas demais. A mulher precisa se provar e reafirmar continuamente a sua competência. O dia de trabalho já é estressante, naturalmente; para ela acaba sendo em dobro.

Falando em trabalho, até 1962 no Brasil as mulheres necessitavam autorização do marido para exercerem uma profissão. 32 anos depois, em 1994, lá estava eu na Av. Faria Lima, centro financeiro paulistano, iniciando a minha carreira como assistente jurídica do Trading Desk de um banco europeu. Eram meados da década de 1990, período sem muita preocupação com o politicamente correto, sendo um ambiente predominantemente masculino e, como hoje, bastante patriarcal, onde homens brancos héteros prevaleciam em posições de liderança e onde as líderes feministas fortes eram frequentemente taxadas como mandonas e desagradáveis. A queniana Wangari Maathai, 1.ª mulher africana a receber o Prêmio Nobel da Paz, em 2004, disse: “the higher you go the fewer women there are” (quanto mais alto você for menos mulheres irá encontrar), o que continua sendo ainda na atualidade um interessante refrão. Como está o percentual de mulheres em posições de liderança?

As mulheres experimentam cenas muito fortes no ambiente profissional, e para mim não foi diferente. Posso dizer que alguns conceitos, entendidos como próprios do movimento feminista, foram vivenciados na minha história profissional, e não apenas uma vez. Vale a pena relembrar e, inclusive, até mesmo citar um episódio emblemático do programa humorístico o time do Porta dos Fundos que retrata muito bem essas situações. Vamos lá:

  • MANSPLAINING – homem explica em tom paternalista coisas óbvias como se a mulher não fosse entender o tópico;
  • MANTERRUPTING – mulher está falando e, antes mesmo de terminar sua fala, é interrompida. O homem, sem constrangimento e com total confiança, passa a explicar o que ela estava dizendo;
  • BROPRIATING – homem se apropria da mesma ideia já expressada anteriormente pela mulher e leva créditos por ela;
  • MICROMACHISMO – exteriorização e construção de uma masculinidade tóxica; formas sutis de sexismo, como: (i) “Vai lá falando com o cliente porque você é mulher e ele vai se distraindo”; (ii) “Mas você vai viajar sozinha, não tem mesmo ninguém para ir com você?”; (iii) “Você não vai colocar o sobrenome do seu marido?”.

Sheryl Sandberg, Chief Operating Officer do Facebook, ponderou uma vez que quando uma mulher se expressa em um ambiente profissional, ela caminha na corda bamba: ou ela mal é ouvida ou é considerada muito agressiva. Quando um homem diz exatamente o mesmo ponto de vista, seus colegas apreciam a boa ideia. A conversa passa a ser um campo de batalha onde é preciso lutar pelo espaço de fala.

Certa vez, em 2005, fui obrigada a uma reação mais incisiva: um bom tapa na mesa para chamar a atenção e garantir meu espaço de diálogo: “Vou poder falar ou não?” Foi o suficiente para, em tom mais alto, garantir um lugar de mais evidência após diversas tentativas interrompidas. Infelizmente corremos o risco de sermos sabotadas por pares que nos julgam da turma do “mimimi” ou, no caso do sexo masculino, muito comumente ouviremos comentários na linha do “Deveria estar na TPM...”.

Os homens em geral e algumas mulheres acreditam que as mulheres exageram em seu comportamento, mas a questão envolve um machismo estrutural. Enquanto não houver a consciência do corpo, das regras e da vontade, como expressas na versão feminista de “Mulheres” - de Doralyce Gonzaga, não entenderemos que o poder está na liberdade. Liberdade de ser e de existir; sem receio, nem restrições para exercer a individualidade. Sem preocupações com as escolhas.

Para tanto, contudo, é significativo não deixar que o medo e a insegurança, que muitas vezes são do outro (e este outro é um homem na maior parte dos casos) sejam despejados na mulher. É muito fácil cair na armadilha da intimidação que faz com que a mulher se sinta diminuída ou invisível. A prática do autovalor é a regra número 1 para a sobrevivência.

Na sequência enfatizo que estratégia e foco são ferramentas essenciais para a administração do cotidiano. Saber esperar o imprevisível e escolher as batalhas. Pensar continuamente no que pode dar errado em uma determinada situação e estar em busca do “cisne negro”, ou seja, daqueles evento imprevisíveis, altamente improváveis que ocasionam resultados impactantes. 

Resiliência nunca sai de moda e saber se reinventar depois de uma queda deve ser especialmente caro para as mulheres.

A inteligência emocional é uma regra de ouro e fará com que a mulher não se deixe desestabilizar com táticas propositais de desequilíbrio; saber tirar proveito do emocional é um grande trunfo para o sucesso.

Por fim, porém não menos importante, nunca perder a conexão com a questão humana e o propósito interior.

Uma vez Robert Wong, um dos mais renomados executivos de recrutamento e seleção do Brasil, disse-me que eu deveria seguir os desígnios da minha alma porque se eu não o fizesse ela sinalizaria um comportamento inadequado, adoecendo meu corpo, e os períodos de permanência no mundo corporativo seriam cada vez mais curtos. Em função disso, como medida de “gerenciamento de risco”, eu sempre mantive atividades paralelas à minha vida corporativa, como que “hobbies” para a minha alma.

Para preservar a sua essência no mundo corporativo o homem basta manter-se conectado com ele próprio o tempo todo; para ser mulher de sucesso no mundo corporativo ela precisa vencer as batalhas diárias pelo espaço de fala; desconstruir a referida masculinidade tóxica; provar, comprovar e reafirmar diariamente, continuamente, a sua competência. Não menos relevante, trabalhar em dobro; deixar de reproduzir o machismo cultural e estrutural historicamente dentro de todos nós; ser forte, porém não mandona; ser firme, ainda assim não desagradável ou agressiva. Cansativo.

Sou apenas mulher. Somos iguais, porém diferentes. Meu corpo, minhas regras e minha vontade. Meu poder. Minha liberdade.

Ana Paula P. Candeloro
é advogada pela USP, pós-graduada em Sustainable Banking e Mestre em Finanças Sustentáveis, ambos pela Universidade de Cambridge, Inglaterra. Conselheira Certificada pelo IBGC, professora do LL.M. do Insper por 6 anos, autora de artigos acadêmicos, capítulos em obras coletivas, um livro sobre Governança Corporativa/Ed. Saint Paul e o Compliance 360º lançado em 2012 e reeditado em 2015. Atua há 25 anos no mercado financeiro e de capitais. Em 2018 e 2019 recebeu o prêmio “Top Compliance: os 20 mais admirados profissionais de Compliance do Brasil”. Diretora de Compliance do Grupo RB Capital, Membro Suplente do Conselho Fiscal da Viver Incorporadora e Construtora S.A., Coordenadora Acadêmica da Revista de Governança Corporativa, Compliance e Negócios Sustentáveis da Enlaw e Mentora dos Programas Distrito.Network e InovAtiva Brasil.
anacandeloro@uol.com.br


Continua...