A partir de dezembro de 2019, todas as instâncias de nossas vidas foram profundamente impactadas por algo invisível, acelular, agressivo, veloz e letal, uma nova linhagem de coronavírus, causador da Covid. Em perspectiva histórica, podemos considerar que tivemos um grande choque a cada cem anos, rigorosamente: 1720, a gran plaga de Marsella; 1820, pandemia de cólera; 1920, la gripe española; 2020, a Covid-19.
De acordo com Oosterbeck, a reação frente às pandemias e epidemias anteriores era a de “isolar o problema” (se necessário, condenando os infectados) e “prosseguir a vida da sociedade” (protegendo a economia tal como funcionava antes). Pela primeira vez, em todos os continentes e em todas as tradições culturais, a atitude com a Covid-19 foi distinta, optando-se pela proteção material das vidas.
Ainda dentro do racional de Oosterbeck, a Covid-19, além de provocar uma mudança de valores e atitudes, acelerou os processos de afirmação individual (com todas as suas contradições, do individualismo à afirmação da dignidade da pessoa humana) e anulou a possibilidade de estruturar o debate público em torno de soluções técnicas para problemas (medicamentos e vacina para a pandemia, estratégias macroeconômicas para a crise mundial), unindo-os num quadro de dilemas cuja resposta implica a convocação de novos valores, desafiando tudo o que está estabilizado e estabelecido, abrindo espaço para discussão sobre os fundamentos da sociedade e as suas prioridades, repensando procedimentos logísticos, arquiteturas institucionais e também as bases para sua regulação.
Comportamentos evoluem sempre, redefinindo hábitos e costumes, reduzindo a prática de valores tradicionais, acrescentando novos. Mas todo esse contexto colocou em debate nossos princípios de convivência, fortalecendo conscientizações coletivas na direção da valorização do que é realmente útil e pertinente, da compreensão da importância individual e social do trabalho, da valorização do trabalho como instrumento de geração e de acesso a bens e serviços, da importância das atitudes individuais para a vida em sociedade e dos princípios básicos que regem o funcionamento das cadeias de produção e do sistema econômico como um todo.
É nesse contexto que a Agenda ESG foi e está inserida, colocando em xeque o conceito de sustentabilidade, em que os gargalos setoriais, como desigualdade, poluição, exclusão e outros, precisam ser integrados em função da vida e da saúde como direito fundamental de equidade.
Enquanto este debate se acirrava, percebíamos também que a pandemia forçava paulatinamente mudanças de rota nos aspectos geopolíticos quanto a barreiras comerciais internacionais. De acordo com o Banco Mundial, entre janeiro e meados de maio de 2020, 86 países, incluindo o Brasil, a Índia, o Japão e a Noruega, impuseram proibições de exportações e restrições de suprimentos médicos para atender a demandas internas e outros 27 impuseram o controle da exportação de alimentos.
Em dezembro de 2021, a Administração do governo Biden assinou a Lei de Prevenção do Trabalho Forçado e instou seus aliados ocidentais, incluindo a União Europeia, a aprovarem legislação similar. Esse movimento, a meu ver, ilustra bem a teia criada entre a agenda ESG e a geopolítica. Ao mesmo tempo que esta lei, atendendo a um grito da sociedade planetária, procura tratar dos abusos aos direitos humanos, de longa data embutidos na cadeia de fornecimentos globais, cria novas incertezas e potencializa os desafios e riscos de compliance para as empresas e seus administradores.
O ano 2022 foi extremamente complexo! Em fevereiro, com a invasão russa da Ucrânia, outras situações foram adicionadas ao contexto ESG e geopolítico, expondo a insegurança energética da Europa e enviando ondas de choques através dos mercados globais, principalmente os de energia e alimentos. Mudaram-se os ventos geopolíticos, provocando uma queda da cooperação no comércio internacional, dando lugar a um protecionismo alimentado pela rivalidade geopolítica.
Assistimos perplexos à agressividade das sanções ocidentais contra a Rússia, que quase interromperam a atividade financeira entre ela e o Ocidente. Chamou-nos a atenção o ritmo feroz com que as empresas ocidentais, sob pressão de investidores institucionais e principais stakeholders, retiraram sua atividade desse país, por motivos de reputação e insegurança jurídica antes e depois de as sanções entrarem em vigor.
Enquanto a guerra na Ucrânia redobrava a urgência de reduzir a dependência de combustíveis fósseis, materializava-se também o dilema de que “a transição verde” provavelmente dependerá de recursos do mesmo punhado de países com os quais o Ocidente está cada vez mais cauteloso em fazer negócios.
No centro de muitos planos de redução de emissões de gases de efeito estufa e metas líquidas zero está a dependência da tecnologia renovável a minerais como cobre, lítio, níquel, cobalto e elementos de terras rara. De acordo com a Agência Internacional de Energia, os planos atuais de fornecimento para muitos minerais críticos ficam muito aquém do que é necessário para apoiar uma implantação acelerada de painéis solares, turbinas eólicas e veículos elétricos.
Os custos crescentes já percebidos e dimensionados decorrentes da transição climática têm acirrado também as tensões entre o Norte e Sul do Globo, na direção de quem suportará esses custos e quem terá acesso aos recursos naturais. As barreiras que foram erguidas recentemente dificilmente se dissiparão, pois a tendência é que essas tensões geopolíticas continuem a dividir os países, posicionando-os em campos opostos e influenciando drasticamente os seus modelos de governança.
Acompanhamos o aumento da tensão entre China e EUA, colocando em risco a soberania de Taiwan, extrapolando a questão política econômica para o questionamento sobre os valores dos sistemas políticos na corrida competitiva, traduzida pelo presidente americano como a batalha entre a utilidade das democracias do século XXI e as autocracias.
Os principais players internacionais estão respondendo a esses movimentos trabalhando a estrutura de Governança do Estado e empresas, como destacamos a seguir.
EUA
Várias das principais agências de classificação de crédito entraram recentemente no espaço de classificação da Agenda ESG; A Moody`s adquiriu majoritariamente a Vigeo Eiris; a S&P adquiriu a Trucosl e criou o índice S&P Dow Jones ESG; e a Morningstar adquiriu 40% da Sustainalytics.
Os principais focos da agenda ESG que estão sendo trabalhados incluem:
a) liderança regulatória contínua na consolidação dos padrões de divulgação através das novas regras e regulamentos lançados pela SEC;
b) maior atenção à transição energética global impulsionada pela contínua preocupação com o impacto de longo prazo da guerra na Ucrânia;
c) desenvolvimento do foco em riscos geopolíticos e seus impactos financeiros, legais e de reputação;
d) maior preocupação com a biodiversidade e seus impactos econômicos e sociais.
Entretanto, tem crescido também o ceticismo dos investidores anti ESG, questionando o quanto as iniciativas ESG estão alinhadas com os interesses dos acionistas e o quanto garantem a proteção de valor criado ao longo do tempo. Também têm se acelerado os esforços dos reguladores na direção do policiamento das divulgações das iniciativas ESG e o escrutínio do greenwashing e socialwashing.
Reino Unido:
Foi muito impactado concomitantemente pelo Brexit, principalmente no que se refere a regulamentos de boa governança. Há foco nas empresas drones, diversidade nos conselhos, levando-se em conta gênero, etnia, competências e cultura.
Desde 2020, o governo tem focado em tornar o sistema financeiro britânico como o mais verde do planeta, e em 2021 criou um conjunto de requisitos aplicados em todos os setores da economia, o SDR (Sustainability Disclosure Requirements).
Esses requisitos abrangem as divulgações corporativas, as divulgações de bens e propriedades de ativos e a divulgação de produtos de investimentos. Levam em consideração as regras de contabilidade IFRS e o Greentaxonomy UK.
Busca-se equilíbrio na divulgação dos fatores que tratam dos riscos de longo prazo da empresa, com o desempenho de curto prazo no sistema de remuneração dos executivos, à procura de maior materialidade na medição dos fatores ESG.
Canadá
O impacto dos choques geopolíticos seguidos pela mudança climática foram definidos como os grandes desafios do Governo canadense em 2022. De acordo com estudo e pesquisa ISS 2022, a incidência de propostas ambientais e de diversidade dobraram na temporada das Assembleias de Acionistas em relação a 2021. Enquanto as propostas de diversidade giravam em torno das metas do Conselho, as propostas em 2022 focalizaram uma maior representação das mulheres em todos os níveis da gestão das empresas.
Fortaleceu-se a incorporação dos fatores ESG na tomada de decisão quanto ao investimento e à robustez/segurança das estratégias de longo prazo. Houve foco maior em diversidade e inclusão, levando-se em conta comunidades BIPOC: Black, Indigenous, People of Color.
51% dos participantes do índice S&P/TSX em 2022 forneceram informações sobre a estratégia da gestão na abordagem com as comunidades indígenas, foco crescente em responsabilidade corporativa e sustentabilidade. A estratégia ESG até então era diretamente orientada pela Diretoria Executiva. Com a Covid-19, os relatórios externos e a comunicação mais relevante passaram a ser direcionados para o Conselho e seus Committee.
Alemanha
Com os impactos da Covid-19 e da Agenda ESG, percebe-se uma maior participação da Assembleia Geral dos acionistas na estratégia das empresas, institucionalizando como obrigação do Conselho Supervisor submeter à Assembleia Geral todas as questões sobre remuneração do Conselho Executivo, aumentando a responsabilidade do mesmo Conselho quanto a transações com partes relacionadas. Introduziram-se também obrigações adicionais, fortalecendo-se a transparência com os investidores institucionais. Trinta por cento da composição do Conselho Supervisor já responde a diversidade de gênero, e essa meta está em fase de desdobramento ao Conselho Executivo.
O foco principal da Agenda ESG tem sido a mudança climática, complementado a crescente onda de proteção aos direitos humanos, tão trabalhada na União europeia focalizando as cadeias de suprimento. De acordo com os estudos em andamento, Regulamentação da Taxonomia, a classificação de uma atividade econômica como ecologicamente sustentável requer um sistema de due diligence em matéria de direitos humanos. Os acordos internacionais não vinculados a isso assumem significado adicional.
Japão
A Covid-19 evidenciou um problema característico no Japão: o trabalho excessivo dos funcionários japoneses. Muitas companhias se tornaram mais conscientes da importância da segurança e de uma ambiência confortável para seus colaboradores, promovendo uma série de medidas e treinamentos remotos nessa direção e na prevenção da pandemia. Instituições educacionais também foram altamente impactadas pela insuficiência dos telessistemas educacionais.
Quanto à agenda ESG, já é realidade a diminuição drástica de financiamentos para plantas industriais novas que utilizam carvão, uma vez que os três principais bancos japoneses já anunciaram que irão se abster de fornecer financiamentos a usinas elétricas a carvão. Em consequência, a manutenção dos títulos verdes e o aumento dos títulos sociais e sustentáveis, ocorrendo, nesse sentido, lançamento em série de social bonds por várias instituições financeiras. Mudanças climáticas e diversidade de gênero são assuntos fortemente incluídos nos conselhos de administração, mas ainda sem forte regulamentação nessa direção.
China
Em relação à Agenda ESG, as iniciativas na prática são bastante incipientes, uma vez que o Governo Chinês anunciou que as emissões de dióxido de carbono atingirão seu ponto máximo em 2030 e a sua neutralização só terá chance de ocorrer por volta de 2060.
Foram definidos como áreas estratégicas e focos de médio/longo prazo: forte gerenciamento de risco ligado às questões climáticas, divulgação de informações ligadas à questão climática que facilite a tomada de decisão dos investidores, encorajamento de inovação e pesquisas na direção da causa sustentável e verde, e transformação de Hong Kong em centro de financiamento mundial para a causa verde. O foco principal do governo chinês é o desenvolvimento econômico e social até 2035.
Estão sendo fortalecidas iniciativas multilaterais, como o Cinturão e Rota da China e a Organização de Cooperação de Xangai, aumentando as esferas de influência chinesa através de novas alianças econômicas e políticas e moldando o futuro acesso a novos mercados. Os números impressionam, tomando como exemplo o BRI (Belt and Road Initiative), Cinturão e Rota da China, que compreende mais de 100 países, abrangendo mais de 62% da população mundial, 30% do PIB Global e 75% dos recursos energéticos disponíveis e tem como objetivos: o aumento da conectividade do espaço euro-asiático, a alocação eficiente de recursos e a coordenação de políticas econômicas, de modo a promover uma arquitetura regional de cooperação que seja aberta, inclusiva e que estimule o desenvolvimento conjunto dos países envolvidos no processo.
Os modelos de governança sobreviverão adaptando-se a novas tendências e suportados no que faz realmente sentido: as respectivas culturas corporativa e nacional. Toda essa dinâmica de evolução exigirá dos conselhos de administração empresariais e institucionais competências plurais e integradas capazes de suportar o contraditório, sendo imprescindível que estejam dispostos a saírem de sua zona de conforto, para mergulhar corajosamente numa arena desconhecida, em que tudo pode acontecer.
A ressurgência de rivalidades entre grandes potências intensificam um ambiente político e regulatório incerto para as nossas empresas. Estas precisarão pesar os riscos de estarem sob tensões geopolíticas contra os impostos de fato, ricos de reputação, legais e financeiros associados à operação em países com fraco Estado de Direito, abusos dos direitos humanos e governos autocráticos.
Avaliações passadas de riscos e oportunidades de fazer negócios em diferentes mercados precisarão ser reavaliadas, e algumas estratégias de expansão de longo prazo precisarão ser alteradas, pausadas ou abandonadas. Isso fortalece e responsabiliza ainda mais uma das funções principais dos Conselhos de Administração: direcionar estrategicamente as suas empresas alinhando a agenda ESG aos novos dilemas comportamentais e geopolíticos.
As empresas precisam estar preparadas para se adaptarem ao que vier. Os Conselhos de Administração, Diretorias Executivas e Comitês ligados ao Conselho precisam responder positivamente, mitigando efetivamente riscos e limitando perdas.
Faz-se necessário, portanto, que Conselhos e Diretorias Executivas identifiquem, supervisionem e mitiguem oportunamente as ameaças geopolíticas para seus negócios, adotando abordagens e estratégias que:
a) revejam as categorias de riscos corporativos, incluindo os geopolíticos quanto a concentrações e inter-relações de riscos, assim como os respectivos impactos de médio e longo prazo nas estratégias e operações da empresa;
b) avaliem o sistema de monitoramento de riscos e relatórios de prestação de contas quanto à inclusão dos principais riscos geopolíticos que poderão impactar a empresa;
c) reconheçam que os choques geopolíticos colocarão à prova, de forma contínua, os valores e objetivos corporativos, exigindo a leitura antecipada de cenários para melhor posicionamento competitivo da empresa, integrando esses riscos a gestão de crise das empresas e os planos de contingência empresarial;
d) revejam as habilidades, experiência profissional e práticas exigidas pela Diretoria e Conselho para supervisionar de forma efetiva e com o senso de urgência adequado, identificando prioridades internas, inclusive de perfil de recrutamento.
Com a deterioração das relações sino-americanas e da guerra Rússia x Ucrânia, o mundo corporativo foi duramente impactado e uma nova era de incertezas se instalou. A geopolítica tem revigorado a atenção dos Conselhos de Administração e Assembleias de Acionistas para o direcionador estratégico GCR (Governança, Compliance e Risco), posicionando-o como condição sine qua non para o atendimento dos dilemas inerentes à Agenda ESG.
O fato é que, será o mundo corporativo por seu poder de fogo e influência quem dará forma as novas escolhas da sociedade planetária, o que exigirá muito mais das empresas e sua estrutura de governança principalmente dos Conselhos de Administração na qualidade de sua tomada de decisão . A partir de agora, veremos o quanto o discurso da Diversidade , Equidade e Inclusão sairá do papel e o quanto será relevante o papel da mulher neste novo contexto.
O novo tabuleiro do xadrez geopolítico está sendo armado, a qualidade dos jogadores escolhidos e os respectivos poder de força e intenções começarão a emergir e as empresas que conseguirem decifrar e antecipar as jogadas geopolíticas terão alguma chance de sobreviver ao inusitado. E que Deus nos proteja da insensatez dos vencedores!
Adriana de Andrade Solé
é Engenheira Eletricista, Conselheira de Administração, Autora, Pesquisadora, Professora, Consultora e Palestrante nas áreas de Compliance e Integridade, Estratégia Empresarial e Estruturação do Ambiente de Governança Corporativa. Professora convidada e associada da Fundação Dom Cabral, IBMEC/MG, PUC Minas, IBGC, FUMEC, KPMG, HSM, Grupo Primoe na Fundação Escola de Governo de Santa Catarina.
adrianasole2021@gmail.com