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Perpectivas

O MUNDO PÓS COVID-19

Passado quase 8 meses do início da pandemia provocada pela Covid-19, estive revendo o que havia escrito e procurei ajustar a uma nova realidade que vem se modificando com frequência.

INTERNAMENTE
Hábitos de consumo estão se alterando por razões econômicas, e comportamentais. Com a perda do poder aquisitivo e o desemprego, seremos mais prudentes no consumo, evitando desperdícios. Mesmo para os grupos de maior renda, creio que gastos perdulários serão controlados. Lembro também que com a sensível diminuição dos ganhos no mercado financeiro (taxas de juros estão próximas a rendimentos negativos) podemos ter o chamado “efeito pobreza”, ou seja, não gastar ou se endividar para consumos ostensivos.

As experiências recentes de países que iniciaram um processo de abertura gradual pós coronavírus, indicam um comportamento conservador em seus hábitos de consumo.

A preocupação com a saúde certamente irá ampliar-se, seja no plano individual ou coletivo, inclusive com o temor de uma segunda onda de contaminação viral.

Apesar do grande trabalho feito pelo SUS, foram constatadas deficiências em nosso sistema público de saúde que ficaram transparentes, e terão que ser priorizados pelo governo. As lacunas ficaram evidentes e terão que ser atacadas. Também, médicos de todas as especialidades serão prestigiados, assim como enfermeiros, e atendentes, enfim, todos aqueles ligados ao sistema de atendimento público. A ciência médica será valorizada.

Consequentemente, isso nos leva à questão da urbanização. É preciso dar um tratamento prioritário às favelas, oferecendo condições de habitação civilizadas, inclusive com saneamento e segurança.

Ficou evidente que não é mais possível a conivência com as gritantes deficiências do saneamento básico e de fornecimento de água encanada. É de se esperar o atual governo, e os que vierem a sucedê-lo, que essa questão seja vista como prioridade básica e política do Estado.

A telemedicina vem ganhando maior espaço, evitando assim deslocamentos para ir a médicos e hospitais, que estão sendo incentivados pelos planos de saúde.

RESPONSABILIDADE SOCIAL
Outro tema que aflorou durante a crise e seu impacto devastador sobre os grupos de menor poder aquisitivo, diz respeito a questão da renda mínima. Defendida há muitos anos pelo Senador Suplicy, agora tem apoio mais universal, inclusive de alguns países escandinavos e por renomados economistas como o Prof. Keneth Rogoff da Universidade de Harvard, em entrevista ao O Globo em 5/4/20, quando se declarou totalmente a favor dessa política, dependendo obviamente dos países com condições necessárias. Transferências de renda para ajudar os pobres era ideia defendida por economistas como Milton Friedman e James Tobin, ambos ganhadores de Prêmio Nobel. Houve a implantação do auxílio de R$ 600,00 estabelecido pelo governo para os grupos de menor renda, e discute-se sua manutenção, na faixa de R$ 250,00 por mais 2/3 meses.

TRABALHO REMOTO
O impacto do trabalho remoto, que já vinha mostrando sensível elevação, obrigou muitas empresas, devido à crise, a majoritariamente transferirem seus funcionários para trabalhar em suas residências. Não houve perda de eficiência, e até ao contrário. Como possíveis consequências podemos listar:

  • Diminuição dos deslocamentos de pessoas, melhorando a mobilidade urbana;
  • Queda do valor dos alugueres em espaços privilegiados que concentram grandes empresas em São Paulo;
  • Os restaurantes que funcionam próximos a empresas/escritórios perderam parte de sua clientela durante o almoço;
  • As residências deverão ter um espaço dedicado especificamente ao home Office;
  • Muitos funcionários manterão o trabalho remoto, e buscarão estabelecer-se fora da cidade.

ESCOLA DE NEGÓCIOS E EDUCAÇÂO
Ponto para reflexão é como respeitadas escolas de negócio no Brasil, e no mundo, irão ajustar-se a um novo ambiente, e como seus currículos se adaptarão ao novo mundo pós coronavirus. O mesmo se aplicará a educação em geral, particularmente a superior. Creio que o ensino a distância terá que ser aprimorado, inclusive com a melhoria da conectividade dos professores. Para os grupos de menor renda, o estudo a distância ainda apresenta grande complexidade e gargalos.

Também seria interessante identificar oportunidades que esse processo de mudanças irá provocar. Esses ajustes a uma nova realidade obrigarão a todos a inovações do processo educacional, inclusive no campo dos executivos.

EXTERNAMENTE
O que vimos nos Estados Unidos, Reino Unido, México, Rússia, e porque não dizer em nosso país, mostraram grandes falhas na condução do combate a pandemia. Olhando o cenário internacional, também podemos constatar as incertezas e dificuldades de prognosticar as mudanças mais prováveis.

Comecemos pelo mais óbvio, a crise global do novo coronavirus, exigirá cooperação global! Não é o que assistimos. Não houve nenhuma indicação de um diálogo frutífero para encontrar posições em comum nos países desenvolvidos. O caso das vacinas é bem demonstrativo, e os países com seus laboratórios, em sua maior parte do setor privado, buscando sair na frente! No entanto, os que estavam na vanguarda buscaram associações para testar suas vacinas em outros países, inclusive no Brasil.

O multilateralismo foi marginalizado. A Organização Mundial de Saúde (OMS), por exemplo, prestigiado pela maioria, sofreu um forte ataque dos Estados Unidos que alegou que demoraram a fazer o comunicado da pandemia. Trump os acusou de privilegiar os chineses, fato nunca comprovado.

A OMC vem sendo questionada, com críticas dos Estados Unidos, que não a vem respeitando. Em 13 de maio, o seu Diretor Geral, o brasileiro Roberto Azevedo, anunciou que irá abandonar seu posto, um ano antes do término do seu mandato.

Fala-se em desglobalização, sem definir exatamente de que se trata. O fato inequívoco é que as chamadas cadeias de suprimentos sofrerão impacto. O alto grau de dependência de suprimentos para alguns países, do fornecimento de insumos, principalmente chineses, a custo mais baixos que abastecem sua produção em outros países, está sendo repensado. Assim, muitos países vão estimular o desenvolvimento de produtores locais para certos insumos, que por uma questão de escala de produção, provavelmente provocará um aumento de custos.

O corolário de todo esse processo e seus desdobramentos, e ainda mirando o campo internacional, terá forte repercussão sobre nosso país, como também a hegemonia mundial com a disputa aberta entre Estados Unidos e China. As duas grandes potencias criaram uma disputa comercial que teve período de trégua, mas que está muito longe de uma paz duradoura. O “establisment” norte americano, mais notoriamente o partido republicano, não esconde seu dissabor com os chineses e, inclusive, de terem disseminado o novo vírus do corona e retardado sua divulgação. O partido democrata também não demonstra uma atitude simpática e conciliadora em relação aos chineses.

Essa situação conflituosa entre os dois países pode criar situações politicamente complicadas para o governo brasileiro, que na gestão atual tem se posicionado declaradamente pró Estados Unidos, proclamando uma parceria e uma amizade entre os dois presidentes.

As eleições de novembro, com a liderança nas pesquisas do candidato democrata Joe Biden e Kamala Harris como sua vice presidente, poderá, se confirmada sua vitória, ampliar a alteração de nossa política Brasil X Estados Unidos.

Para o nosso país, é situação de grande preocupação, tendo em vista a substancial importância dos chineses para nossas exportações de commodities agrícolas e minerais, além de sua importância como investidor em infraestrutura.

Portanto, o Brasil tem que manter uma política de convívio amigável com os dois países, e não tomar partido.

VIAGENS INTERNACIONAIS E TURISMO
Ainda sobre a questão internacional, vale registrar que as viagens internacionais sofreram efeito devastador e o turismo foi fortemente afetado com o lockdown em grandes cidades, com fronteiras fechadas em muitos países e as companhias aéreas de todo mundo, em situação de insolvência.

No caso brasileiro, com o encarecimento do dólar, não indica que essa situação possa se reverter no médio-curto prazo. Assim, haverá maior estímulo ao turismo interno, devido não só ao aumento de custos previstos para passagens aéreas, como da maior complexidade para o embarque e desembarque de passageiros.

MIGRAÇÃO
Uma palavra sobre a questão migratória. Temos duas possíveis consequências:

  • Brasileiros no exterior querendo regressar ao seu país devido ao desemprego ou certa hostilidade pelos estrangeiros em alguns países, que nos olham como roubando seus empregos.
  • Outra consequência é que os imigrantes que já vinham sofrendo grandes dificuldades na busca de alternativas em diferentes países, estão se deparando com barreiras cada vez mais severas e nenhuma abertura, como é o caso dos Estados Unidos. O Brasil, que vinha recebendo grande número de imigrantes venezuelanos, fechou sua fronteira de Roraima, como quase todos países de nossa região o fizeram.

Outro desdobramento é a perda de renda para muitas famílias em diferentes partes do mundo, dependentes das remessas de expatriados que trabalham em países desenvolvidos.

PARTICIPAÇÃO DO ESTADO
No contexto da crise foi necessária uma grande presença do Estado para que algumas empresas, pequenas ou médias, sobrevivessem. Foram disponibilizando recursos para os grupos de menor renda, trabalhadores informais e desempregados, durante a quase total paralização da atividade econômica.

Mesmo admitindo que gradualmente os países menos afetados permitirão o reinício das atividades do comércio e indústrias, alguns empregos perdidos dificilmente serão recuperados no médio-prazo. Certamente, a retomada do crescimento e saída de uma recessão que afetou todos os países irá tomar um tempo que é difícil precisar, mas que não será rápido.

Não devemos também esquecer que a questão do emprego, particularmente nas empresas onde as mudanças que vem ocorrendo com a IV Revolução Industrial, obrigam a uma reciclagem da mão de obra não especializada.
Assim, toda política que vinha sendo defendida de privatização e menos participação do Estado será impactada. Como consequência dos gastos com a pandemia e o orçamento de guerra, o equacionamento dessa dívida não será um processo trivial.

ECONOMIA MUNDIAL E NACIONAL
As projeções quanto ao impacto na economia mundial são impressionantes. Mesmo a China, que vinha apresentando altas taxas de crescimento determinante para que muitos países exportadores de seus produtos, sofrerá forte impacto.

A OMC, projeta uma queda do comércio mundial que poderá chegar a 32%. No Estados Unidos, o desemprego já superou 5 vezes a taxa anterior e uma recessão projetada maior do que a crise de 1929.

Apesar de nossa modesta participação no comércio mundial, não escaparemos do seu impacto, principalmente pelo fato da China ter papel fundamental no nosso comércio. Ainda assim, no 1º semestre tivemos saldo positivo na balança comercial, principalmente, graças a queda sensível nas importações.

No nosso mercado interno, a situação é muito grave pois observamos uma queda substancial do consumo pelo fechamento inicial do comércio em geral, perda do poder aquisitivo e desemprego. As projeções na queda do PIB são superiores a 5%. Alguns setores, como supermercados, farmácias e padarias, entre outras de venda.

Não se acredita que haja alguma reação sensível no ano em curso, e uma hipótese mais otimista é que uma estabilização somente aconteça em 2021. Portanto, a reação será lenta e diferenciada por setores de atividade. Mais adiante, quando o pior já tiver sido superado e seus efeitos sociais mitigados, teremos que iniciar um programa de reequilíbrio financeiro destinado ao equacionamento da parte fiscal, fortemente impactado pelos programas de governos federal, estadual e municipal.

A desvalorização de nossa moeda no ano em curso, que foi a maior entre os países em desenvolvimento, não encontra explicações plausíveis fora do aspecto político e da questão fiscal, que está pesando muito na perda do valor do Real.

MERCADO DE CAPITAIS
Quanto ao mercado de capitais, a queda da taxa de juros, fixada recentemente pelo Copom em 2,0% a.a., associado a uma substancial queda no valor do real, criando condições para que os detentores de poupança abandonassem o mercado de dívida pública (que durante muitos anos foi o nirvana para os aplicadores), e também dos títulos de dívida privada e fundos que se concentraram nesses papéis e buscam aplicações alternativas. A Bolsa de Valores (B3), que em 2019 já tinha sido favorecida por um substancial fluxo de investidores individuais, apesar dos ajustes que o preço das ações sofreu com o efeito da pandemia, e tem demonstrado certa sustentação. Desde janeiro até abril, 558 mil CPFs entraram com ações, fundos imobiliários ou fundos de índices (ETFs).

É preciso muita cautela, pois os demonstrativos financeiros que serão divulgados, apresentarão um cenário caracterizado principalmente pela perda de rentabilidade, queda na liquidez, e mesmo impairment, ou seja, fechamento de linhas de produção que se mostraram não competitivas ou dispensáveis diante do novo cenário do mercado.

Também poderá haver maior procura por novos instrumentos financeiros, como aconteceu no ano passado, com os fundos imobiliários que tiveram grande procura e sofreram no início do ano. Convém analisar em quais ativos imobiliários estão ou vão investir, pois alguns deles terão seus problemas de encontrar locadores ou comercialização.

Quais os novos desafios vão se apresentar para as empresas, como por exemplo, a questão do stakeholder capitalism (tratamento das minorias e dos cidadãos) que já estava na ordem do dia e estará associado ao problema de diminuição das desigualdades percebidas em diferentes países do mundo, inclusive no nosso, onde as diferenças de renda vem se agravando. Temos também a questão da adoção do padrão Environmental, social and governance (ESG) que se tornará uma necessidade.

Importantes investidores institucionais dos países em desenvolvimento têm deixado claro que não irão investir em ações de empresas que não estejam alinhadas ao princípio da sustentabilidade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS     
Espero que tenha conseguido transmitir o que registrei nesse primeiro semestre sobre o novo coronavirus em nossa sociedade e suas possíveis consequências sobre a economia mundial.

Estou convictamente situado no grupo que acredita em sensíveis mudanças nos próximos meses, e anos, no cotidiano e nas relações com o resto do mundo.

Ao longo do texto procurei demonstrar que no caso brasileiro a COVID-19 apontou com muita clareza nossas fraquezas, deficiências e as oportunidades que se abrirão para fazer as correções e definir um novo roteiro para que possamos tomar as providências e por em prática medidas de caráter econômico, político e social para o nosso desenvolvimento, inclusive para a diminuição das desigualdades sociais.

Difícil imaginar que essa virada aconteça no curso dos próximos 2 anos, o que nos remete às eleições de 2022, onde precisaremos escolher com prudência alguém que possa liderar nosso país nessa nova etapa de vida republicana.

Roberto Simonsen, grande industrial e um dos fundadores da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (FIESP) registrou: “Otimismo é esperar pelo melhor. Confiança é saber lidar com o pior”. Estamos realmente carentes desse fator e é preciso sabe enfrentar a crise com medidas construtivas.


Roberto Teixeira da Costa
é economista, foi o primeiro presidente da CVM – Comissão de Valores Mobiliários; é conselheiro emérito do Centro Brasileiro de Relações Internacionais e do Conselho Empresarial da América Latina.
teixeiradacostaroberto@gmail.com


Continua...