Governança

O RECADO “EXPLOSIVO” DE BEIRUTE PARA A GOVERNANÇA DO ESTADO E CORPORATIVA DO BRASIL

Na terça-feira (04/08/2020) ocorreu uma explosão de dimensões inimagináveis em Beirute, levando à óbito mais de 100 pessoas, deixando outras centenas desaparecidas, deixando milhares de desabrigados e feridos, destruindo cerca de metade da região central da cidade, em proporção mais catastrófica que todas as guerras recentes ocorridas na capital do Líbano.

Nesse incidente, derivado da explosão de uma carga de 2.750 toneladas de Nitrato de Amônio, um material químico, potencial explosivo em condições inadequadas de armazenamento e temperatura, para além de todos os danos humanos, sociais e econômicos do trágico evento, uma informação específica é de fundamental relevância na tragédia – não era desconhecido da administração pública que tamanha carga de alto risco e dano estava armazenada inadequadamente em uma região portuária densamente habitada e economicamente muito ativa.

Segundo as informações divulgadas pela TV Al Jazeera, a carga de nitrato de amônio, por problemas com um cargueiro que não pode seguir viagem para Moçambique, ficou armazenada provisoriamente em um hangar do porto de Beirute por 6 anos, ou seja, o provisório se tornou permanente por inação ou omissão das autoridades com capacidade decisória. E a tragédia não aconteceu por falta de aviso – nesse período, entre 2014 e 2017, em pelo menos cinco ocasiões o responsável pela alfândega local enviou cartas às autoridades, solicitando soluções urgentes para o problema e alertando quanto ao risco, além de sugerir soluções para pôr fim à carga ali estocada (TV All Jazeera). Não suficiente, ao não serem ouvidos pelo executivo, o diretor da administração alfandegária (2017), ainda enviou carta ao judiciário alertando quanto ao risco (TV All Jazeera). Ou seja, pelo menos dois poderes foram alertados por meio de seus representantes.

O problema existia, os riscos eram conhecidos pela administração pública e pelas autoridades do executivo e judiciário. A pergunta que não quer calar é porque nada foi feito pelas autoridades públicas, devidamente avisadas e informadas, mais de uma vez, ao longo de 6 anos? Onde o sistema falhou?

Para compreender um pouco sobre a falta de correspondência entre o papel ao qual as autoridades públicas são investidas – planejar, regular, fiscalizar, publicizar, gerir, dar soluções a questões públicas e punir quando necessário – e a execução tempestiva e eficaz dessas funções é preciso conhecer um pouco de alguns conceitos da ciência política fundamentais à administração pública e que são considerados princípios básicos da boa Governança Corporativa e Pública. Como essência temos principal-agent, (os conflitos de agência), e como princípios: fairness (senso de justiça), compliance (conformidade legal), accountability (prestação responsável de contas), disclosure (transparência) e enforcement.

Não se pretende nesse breve texto discutir a literatura acerca desses conceitos, que é ampla e com várias vertentes teóricas, mas colocá-los brevemente, de maneira a explicitar a sua relevância na governança do setor público e na relação entre burocracia e as instâncias decisórias políticas.

Relação principal-agent no Estado e Conflitos de Agência nas Corporações
Enquanto nas Corporações temos os agentes principais que são os acionistas e como agentes executores os gestores, no ESTADO, principal são os cidadãos e agent diz respeito a seus representantes. Em termos de Estado, a relação principal-agent pode ser diferenciada em dois tipos – na relação representantes do legislativo ou executivo/representados (cidadãos) ou na relação governantes/burocracia, na qual os governantes ocupam o papel de principal e a burocracia não-eleita, seja ela de livre nomeação ou de carreira, ocupa o papel de agent.

O desafio fundamental que se coloca nesses dois tipos de relações é como representados (principal) podem controlar seus representantes (agent) no sistema político-eleitoral e como os políticos eleitos (principal) podem controlar a burocracia de carreira não-eleita (agent) a partir de uma engenharia institucional que possibilite cumprir a vontade coletiva no sistema democrático. É nessa interação da engrenagem que reside um aspecto relevante do problema – os representantes eleitos são simultaneamente agent e principal, dependendo do contexto em que se inserem, atuam como intermediários. São agent de seus eleitores e principal da burocracia, com a função primordial de fazer a burocracia cumprir (enforcement) as escolhas dos cidadãos. A burocracia, no papel de agent tem o dever de muni-los de informações técnicas para suas decisões.

Contudo, por outro lado, esses mesmos representantes eleitos, com o papel de fazer a burocracia cumprir as escolhas dos cidadãos (enforcement), também atuam como decisores, a partir das informações fornecidas pela burocracia. E neste ponto específico, chamamos a também a atenção para as razões essenciais destes conflitos sintetizados pelos axiomas de Klein e Jensen & Meckling na teoria de Governança Corporativa: a inexistência do contrato completo e a inexistência do agente perfeito.

Controlar e dar transparência às decisões dos representantes eleitos e à cadeia de informação da burocracia torna-se um ponto nevrálgico para evitar capturas por grupos de interesses diversos ou por inépcia da burocracia. A inter-relação representantes eleitos e burocracia não-eleita permite privilegiar interesses desses grupos em detrimento dos interesses coletivos dos cidadãos, na ausência de mecanismos de controle, de transparência decisória e de responsabilização.

A figura 1 traz o diagrama das relações principal-agent entre cidadãos e representantes e entre representantes e burocracia, no qual as setas representam o sentido das relações na engrenagem institucional e esse sentido não é neutro nas falhas de Governança do Estado.

Figura1: Diagrama de relações principal-agent na Governança de Estado considerando-se eleitores, representantes e burocracia

A engenharia institucional que possibilitará o controle necessário para que os representantes tomem decisões coerentes com as escolhas de seus representados (cidadãos) e a partir de informações técnicas providas pela burocracia, sem serem capturados pelos interesses da burocracia, pelos próprios interesses, ou de outros grupos de interesse é o desafio constante dos governos democráticos. E quando essas ações desviantes ocorrem, a capacidade de responsabilização dos responsáveis ou da cadeia de informação responsável, torna-se o desafio subsequente. E aqui agregamos aos atores principais destes processos (cidadãos e governantes, acionistas e gestores) a importância da qualidade dos sistemas de fiscalização e controle que completam o sistema de Governança: auditorias internas, independentes, comitês de auditoria, Compliance e no caso específico brasileiro os Conselhos Fiscais. Não existe Governança em nenhuma instância sem um robusto sistema de fiscalização e controle atrelados aos principais atores.

Accountability: Prestação responsável de contas à sociedade
No sistema político, accountability diz respeito a tornar governos responsáveis por suas ações (World Bank 1994) e é central à boa governança.

 “A capacidade de governance implica a capacidade governamental de criar e assegurar a prevalência — ou seja capacidade de enforcement — de regras universalistas nas transações sociais, políticas sociais e econômicas, penalizando ou desincentivando o comportamento rent seeking, promovendo arranjos cooperativos e reduzindo os custos de transação” (MELO, 1996, p.69).

A efetividade dessa resposta depende de uma engenharia institucional que envolve diversos fatores do sistema político-eleitoral e incentivos institucionais à maior correspondência entre o desejo amplo dos representados e a ação dos representantes.

Muitas respostas ainda estão por serem esclarecidas, especialmente, i) entender os caminhos da burocracia entre as instâncias técnicas (autoridades portuárias) e as instâncias decisórias (autoridades com poder decisório e de enforcement no executivo e no judiciário), ii) quais desincentivos do sistema político levaram essas autoridades a ignorar os alertas técnicos e não cumprir as suas funções, para as quais foram investidas, e iii) quais as falhas no processo de governança do Estado Libanês.

 O desastre já aconteceu e a tragédia sobre a vida de milhares não será revertida e nem irá se apagar. Essa conta é do Estado, por omissão ou inação. Todavia, Beirute nos serve como aprendizado, a ser dissecado e estudado, para entender como governance, accountability, relação principal-agent e enforcement, dentre outros, necessitam de interagir em um modelo institucional adequado, no contexto do Estado, para que as funções do poder público ocorram de maneira efetiva e tempestiva, evitando outras tantas tragédias semelhantes.

Como consequência prática, as últimas noticias do Líbano retratam o cenário de impacto negativo no ecossistema produtivo.

No contexto brasileiro, trazendo ao nosso racional eventos de igual importância e proporção, os últimos desastres ocorridos no setor de mineração acrescentam a “pitada” da recorrência , 2015 Samarco e 2018 Brumadinho, o que coloca a nossa Governança do Estado em cheque, como regulador e fiscalizador.

Os recursos minerais, inclusive os do subsolo são bens da União. Diante dessa premissa é assegurado, nos termos da Constituição da Republica de 1988, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios, bem como a órgãos da administração direta da União, participação no resultado da exploração ou compensação financeira por essa exploração. Compete a União organizar a administração dos recursos minerais, a indústria de produção mineral e a distribuição e o consumo de produtos minerais nos termos do Código de Mineração vigente, o Decreto Lei 227/67. Diante das disposições constitucionais e legais relacionadas a atividades de mineração, se entende que a Propriedade dos recursos naturais é da União, porém é outorgada às empresas a autorização ou a concessão o aproveitamento do bem conforme interesse nacional.

Há uma clara ligação entre os Princípios da Governança Corporativa e os que regem as melhores práticas internacionais de mineração, sintetizados na figura 2 abaixo, adaptado de Andrade Rossetti (2014) por Solé Schoroeder (2019). Em um momento em que estamos discutindo tanto transparência quanto responsabilidade é indispensável ir mais a fundo na questão Competência, principalmente a competência que existe no Estado para fiscalizar e regular os players do setor.

Figura2: Aderência dos Princípios e Códigos da Governança Corporativa com os da Mineração (Solé e Schoroeder, 2019)

Diante desse pilar, competência, fica clara a necessidade da responsabilização técnica. A própria estruturação legal, que coloca os interesses da União como primários, obriga aos órgãos reguladores, para atender aos interesses do país em ter o bem mineral melhor aproveitado, a cumprir o pilar da competência conforme os códigos internacionais.

O caso do Líbano vai ao encontro dos eventos recentes na mineração brasileira no que se refere às falhas de Governança de Estado e ao impacto tanto social quanto no setor produtivo, com efeitos muito mais amplos do que se supõem em um primeiro olhar. O Estado se mostra falho quanto as suas competências inerentes e precípuas – fiscalização e regulação – e a sua capacidade insuficiente de enforcement, relativa a adoção de medidas corretivas e punitivas, que deveriam ser tempestivas, antecipando-se preventivamente à ocorrência dos eventos, diante da ausência observada de compliance às regras pré-estabelecidas, e com isso, deixa patente os danos decorrentes dessas falhas de governança.

Essa falha não é aleatória ou casual, mas em grande parte derivada da engenharia institucional que estrutura as relações representadas na figura 1. Estas falhas de Governança de Estado impactam diretamente tanto a sociedade quanto o ecossistema produtivo. No que se refere ao social, um olhar mais atento às reportagens da imprensa, tanto referentes à Beirute quanto a Mariana ou Brumadinho, já deixam, per si, evidente a dimensão do estrago.

Todavia, a outra dimensão – o impacto no ecossistema do setor produtivo – tende a ser subestimado, pois a conta não se resume ao estrago econômico provocado por aquele evento, o qual, no melhor cenário, será reparado por seus responsáveis. O impacto no ecossistema produtivo transcende ao evento e promove consequências presentes e futuras no potencial econômico e de investimento daquelas empresas que se encontram no ecossistema atingido. Nesse sentido, a sociedade e, mais especificamente no que tange a investimentos, o mundo corporativo, não se atentar ao bom funcionamento da Governança do Estado traz danos duplos às corporações e ao ecossistema no qual se inserem. Estas sofrem o impacto direto da ineficiência na Governança do Estado, diante dos estragos provocados por uma de suas corporações membro, mas adicionalmente todo o ecossistema também sofre indiretamente, ao pagar a conta relativa a retornos e investimentos futuros, seja via limitações no investimento potencial, seja via gastos públicos para sanar as sequelas sociais, ambientais e produtivas do desastre ocorrido.

Lembremo-nos: o Estado aloca e realoca recursos! Portanto, os tributos pagos por essas corporações e pela sociedade, destinados a outros fins, são realocados para atender o desastre decorrente da falha de Governança de Estado, e essa conta se fecha destituindo-se outras áreas de recursos, ou tributando mais o setor privado.

O recado fundamental que os eventos recentes em Beirute e na mineração brasileira nos traz é: olhemos com carinho a saúde da Governança de Estado porque ela pertence a todos nós, é nosso problema também, e nos afeta o bolso!


Adriana de Andrade Sole
é Engenheira Eletricista, pós graduada em Gestão Empresarial e Engenharia Econômica . Conselheira de Administração da SCGÁS, recertificada pelo IBGC e Conselheira Independente da Editora Fórum. Consultora de Governança Corporativa do Instituto de Desenvolvimento do Mercado de Capital. Fundadora do canal do You Tube: Governança Já. Co-autora dos livros Código de Conduta: Evolução, Essência e Elaboração: A ponte entre a Ética e a Organização, Editora Fórum, 2019; Governança Corporativa - Fundamentos, Desenvolvimento e Tendências, pela Editora Atlas. Co- autora do livro Gestão Integrada do Território, IBIO, 2012. Co-inventora da patente PI 9100363. Professora convidada e associada da Fundação Dom Cabral, IBMEC MG e ENA Fundação Escola de Governo de Santa Catarina.
adrianasole@globo.com

Juliana Estrella
é Doutora em Ciência Política, former fellow na University of Texas at Austin -Vilmar Faria Fellowship Program for Quantitative Analysis and Public Policy, mestre em Ciência Política e Bacharel em Administração de Empresas (UFMG). Atuou como consultora em trabalhos para instituições como IETS, IPEA, FGV-Rio, PUC-Rio, PNUD/ MDS, CGAP/World Bank, Bankable Frontier Associates, Coffey International Development, Instituto Rede, UFF, Sebrae (Negócios de Impacto Social e Prefeito Empreendedor), Concremat Ambiental, em políticas públicas e sociais, negócios de impacto social, desenhos de implantação, monitoramento e avaliação de impacto social, e pesquisas sociais e de mercado. Recentemente vem se concentrando em políticas públicas e saúde.
julianaestrella.vcp@gmail.com


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