A análise fundamentalista não está com os dias contados. Muito pelo contrário. Estamos testemunhando uma das fases mais instigantes desde que Benjamin Graham cunhou a ideia de valor intrínseco. A diferença é que, agora, os analistas ganharam um novo parceiro de mesa. Não um especialista, mas um motor de linguagem de larga escala: a Inteligência Artificial (IA).
Sim, a IA já está presente nas salas de reunião, nos comitês de investimento e até nas conversas informais de quem vive imerso em balanços, múltiplos e projeções. E não estamos falando de futurologia. Trata-se de uma realidade cada vez mais cotidiana. Uma ferramenta que amplia o que sempre fizemos de melhor: perguntar, comparar, interpretar e, por fim, decidir.
Quem já passou horas lapidando uma planilha de valuation sabe o quanto a precisão das premissas pode determinar o valor percebido de uma empresa. Com a IA, e mais especificamente com comandos bem formulados, os chamados prompts, esse processo ganha velocidade e profundidade. É possível testar múltiplos cenários, comparar abordagens, sintetizar relatórios e até identificar inconsistências de forma quase instantânea.
Recentemente, revisando um relatório sobre o varejo de vestuário, precisei reavaliar os drivers de crescimento de grandes redes. O prazo era apertado e as premissas envolviam margens, digitalização e custo de capital. Decidi acionar a IA como apoio, reunindo dados históricos e formulando um prompt que pedisse comparação entre projeções conservadoras e os últimos dados do setor.
Em segundos, a ferramenta retornou uma matriz com divergências e sugestões de ajuste. Isso ajudou a identificar rapidamente onde havia ruído e quais pontos exigiam análise mais profunda. A decisão foi humana, mas a IA ampliou nossa agilidade e clareza na revisão.
Esse tipo de interação revela um ponto chave: a construção de prompts se tornou uma competência técnica em si. Saber o que perguntar, e como, é hoje tão estratégico quanto saber qual linha do balanço observar. A pergunta bem feita, com clareza, lógica e contexto, pode reduzir o tempo de entrega de uma análise em mais de 50%. É como conversar com uma entidade que leu milhares de relatórios, atas de conference calls, discursos de relações com investidores e pareceres regulatórios, mas que só oferece bons insights se você souber como acionar seu repertório.
Nesse cenário, o papel do analista humano não enfraquece. Ele se torna ainda mais relevante. A recente diretriz do Código de Conduta da APIMEC Brasil é clara ao afirmar que a IA deve ser tratada como aliada, jamais como substituta. A responsabilidade técnica, o julgamento profissional e a supervisão crítica continuam sendo intransferíveis. E isso não é um detalhe. É o que mantém a integridade da profissão.
A IA pode acelerar a checagem de dados, sugerir alternativas de modelagem ou resumir fatos relevantes. Mas não compreende sutilezas políticas de um setor regulado. Não percebe o entrelinhar de uma mudança de gestão. Não capta, por exemplo, a diferença entre uma empresa "barata" e uma empresa "mal interpretada" pelo mercado. Algo que o olhar treinado do analista, com sua bagagem contextual, é capaz de intuir.
Portanto, o que vemos emergir não é um cenário de substituição, mas de expansão de capacidade. Relatórios mais robustos, diagnósticos mais ágeis e maior margem para o pensamento crítico tornam-se possíveis. A IA se consolida, assim, como uma extensão da inteligência analítica do profissional, sem jamais substituir seu crivo ético, técnico e interpretativo.
O futuro da análise fundamentalista será, sim, cada vez mais híbrido. E, na minha vivência, isso exige mais do que adaptação tecnológica. Exige uma postura crítica, curiosa e ética diante das ferramentas. A pergunta que tenho me feito, e que proponho aos colegas, é a seguinte: estamos liderando essa transformação ou apenas reagindo a ela? Porque, no fim das contas, nossa maior entrega continuará sendo transformar dados em entendimento, e entendimento em decisão.
Cabe a nós, profissionais de finanças, buscar o domínio consciente dessas ferramentas. Mais do que aprender a usá-las, é preciso aprender a pensar com elas. Iniciativas de capacitação em inteligência artificial, oferecidas por instituições reguladoras e educadores do mercado, já estão se consolidando como parte da formação contínua.
Participar ativamente desse processo não é apenas uma vantagem competitiva, mas um compromisso com a excelência técnica e a evolução da profissão.
Giácomo Diniz
é economista pela FEA-USP, especialista em Mercado de Capitais e professor de Valuation em instituições como FIA, Saint Paul, IBMEC e B3 Educação. Atua com M&A, avaliação de empresas e transição digital em áreas financeiras. Instrutor no Programa de Educação Continuada da APIMEC Brasil.
giacomollz@gmail.com