Governança

GOVERNANÇA NAS TRANSAÇÕES ENTRE PARTES RELACIONADAS E DESVIO DE PODER

Esse tema sempre foi uma preocupação dentro das organizações, especialmente nas companhias de capital aberto. Tanto assim, que a Lei 14.195/2021, alterou a Lei das Sociedades Anônimas para consagrar que é de competência privativa da Assembleia Geral de Acionistas de companhia aberta, a deliberação sobre transações com partes relacionadas que corresponda a mais de 50% (cinquenta por cento) do valor dos ativos totais da companhia constantes do último balanço aprovado.

Mas a realidade é que o ponto de atenção está relacionado aos procedimentos e controles internos para o regular monitoramento dessas transações que, ao atingirem a relevância necessária, possam ser submetidas e avaliadas pelas instâncias de governança da companhia para demonstração do cumprimento do dever de diligência dos administradores.

Para empresas listadas no segmento do Novo Mercado da B3 S.A. – Brasil, Bolsa, Balcão, há exigência da instalação de comitê de auditoria, estatuário ou não, que tenha entre suas atividades, a avaliação, o monitoramento e a recomendação à administração quanto a correção ou aprimoramento de suas políticas internas, especialmente a política de transações entre partes relacionadas.

Como melhor referência, utilizamos aqui as exigências do regulamento do Novo Mercado no qual há obrigatoriedade das companhias disporem de uma política de transações entre partes relacionadas para estabelecer os critérios e os procedimentos necessários à identificação de situações individuais que possam envolver conflitos de interesses, como os procedimentos e os responsáveis pela identificação das partes relacionadas e pela classificação dessas operações, além da clara identificação das instâncias de aprovação, a depender do valor envolvido ou de outros critérios de relevância contidos nessas transações.

A responsabilidade das companhias abertas de divulgarem comunicado ao mercado sobre transações com partes relacionadas está prevista na Resolução CVM 80/2022, para aquelas que se enquadrem nas hipóteses do Anexo F, ou seja, cujo valor total supere o menor dos seguintes valores: (i) R$50.000.000,00 (cinquenta milhões de reais); ou 1% (um por cento) do ativo total da companhia, além de outras operações que, a critério da administração, a transação ou o conjunto de transações correlatas cujo valor total seja inferior aos parâmetros mencionados, pelas características da operação, natureza da relação da parte relacionada com a companhia e a natureza e extensão do interesse da parte relacionada na operação, sejam de interesse do mercado.

Vale mencionar que o Informe de Governança constante do Anexo D à Resolução CVM 80/2022, prevê que as companhias devem ter políticas e práticas de governança visando a assegurar que toda e qualquer transação com parte relacionada seja realizada sempre no melhor interesse da companhia, com plena independência e absoluta transparência (princípio 5.3.), e que o estatuto social deve definir quais transações com partes relacionadas devem ser aprovadas pelo conselho de administração, com a exclusão de eventuais membros com interesses potencialmente conflitantes.

O Informe de Governança, ainda que não seja uma regra a ser seguida, mas uma recomendação que as companhias devam explicar ao mercado as justificativas de sua aplicação ou não, recomenda que o conselho de administração solicite à diretoria alternativas de mercado à transação com partes relacionadas em questão, ajustadas pelos fatores de risco envolvidos, como a proibição a empréstimos em favor do controlador e dos administradores.

Dada a relevância do tema e os conflitos de interesses que possam surgir dessas operações, o tema continua a ser apontado pela CVM como risco a ser mitigado no plano bienal - supervisão baseada em risco de 2025-2026.

Supervisão Baseada em Risco | CVM 2025-2026
Riscos a serem mitigados:

  • Inadequação à normatização em eleição de administradores e conselheiros fiscais.
  • Inadequação das Demonstrações Financeiras às normas contábeis (deficiência nos controles internos)
  • Inadequação à normatização da divulgação de Fatos Relevantes e Comunicados ao Mercado.
  • Inadequação à normatização em Reorganizações Societárias (incorporação, fusão e cisão).
  • Inadequação à normatização em emissão de ações ou títulos conversíveis em ações por subscrição privada.
  • Inadequação à normatização em Transações com Partes Relacionadas (TPR).

E nesse sentido, levantamos decisão da CVM de outubro de 2024, relativa ao Processo Administrativo Sancionador CVM nº 19957.010613/2019-01, no qual se apurou responsabilidades de membros do conselho de administração da Companhia Estadual de Geração e Transmissão de Energia Elétrica – CEEE-GT por infração aos arts. 153 e 154 da Lei 6.404/76, por deliberarem sobre a renovação de contrato de mútuo com a coligada, Companhia Estadual de Distribuição de Energia Elétrica - CEEE-GD.

Por meio de reclamação de investidor, houve questionamento quanto à aprovação em reunião do conselho de administração da CEEE-GT, na qualidade de mutuante, do recebimento de fração ideal de imóvel a título de dação em pagamento de parte do valor devido pela CEEE-D (mutuária), cujo débito foi algumas vezes renegociado em termos de prazo e valor.

Da leitura da decisão colegiada, verifica-se que os conselheiros de administração que se manifestaram expressamente contrários à aprovação dessa transação, deixaram de ser condenados, e que os demais membros do conselho que faziam parte de ambas as empresas, CEEE-GT e CEEE-GD, foram condenados.

Muito embora a deliberação de aprovação do aditamento/renegociação do mútuo tenha cumprido com os rigores procedimentais necessários, incluindo a anuência prévia da Agência Nacional de Energia Elétrica – ANEEL, era de conhecimento dos conselheiros que a CEEE-GD enfrentava dificuldades financeiras que poderiam impactar no adimplemento da transação, inclusive em razão dos argumentos levantados por conselheiro que se manifestou contrariamente de que não havia evidências de que a aprovação do aditamento ao contrato de mútuo seria a melhor aplicação do caixa da CEEE-GT.

Sob o ponto de vista procedimental, após ter sido rejeitada proposta de termo de compromisso, a decisão colegiada da CVM com relatoria de Marina Copola e voto divergente de João Accioly, entendeu que houve o cumprimento do dever de diligência do Art. 153 da Lei 6.404/76, muito embora não tenha a defesa apresentado avaliações de alternativas para o uso dos recursos da CEEE-GT ou as motivações pelas quais entendeu que o contrato atenderia aos interesses da companhia.

Por outro lado, o embasamento da condenação se deu por desvio de poder previsto no art. 154 da mesma Lei, pela ausência de comutatividade na transação que privilegiou os interesses da mutuária CEEE-GD em detrimento da CEEE-GT, atuando no interesse do controlador e com desvio de finalidade, o que foi objeto do voto divergente. Esse processo está em fase de recurso perante o Conselho de Recursos do Sistema Financeiro Nacional - C.


Rosangela Valio Camargo
é Advogada e consultora, conta com 26 anos de atuação na área jurídica empresarial corporativa, societário, contratos, M&A, governança corporativa e operações de equity e debt. Rosangela atuou em empresas de capital aberto e fechado, startup, holdings familiares, no setor elétrico, em previdência complementar, e no setor da construção civil, e foi head do jurídico societário e governança corporativa de empresa listada no Novo Mercado/B3. Rosangela foi membro do IBRI e atualmente é membro do IBGC, IBRADEMP e da Comissão Especial de Direito Bancário da OABSP, tendo sido membro do Conselho Fiscal da EnergisaPrev. Graduada em Direito pela Faculdades Integradas de Guarulhos - FIG, tem LL.M. (Direito Societário) pelo INSPER e pós-graduação em Contratos pela FGV Direito, além de formação de Conselheiros de Administração pelo IBGC. 
rosangela@valiocamargo.adv.br


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