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BRASIL, CVM & O FENÔMENO DA SECURITIZAÇÃO TOKENIZADA

O Brasil tem ocupado lugar de destaque no cenário mundial no que se refere à forma equilibrada com que promove a integração das tecnologias e inovações ao Mercado de Capitais. A Comissão de Valores Mobiliários (CVM) tem se posicionado de maneira receptiva às novas tecnologias que contribuem e influenciam positivamente a evolução do Mercado de Capitais, desde que sejam respeitados os parâmetros e fundamentos do ambiente regulado. A Autarquia vem sinalizando que a adoção de tecnologias deve ser feita como uma forma de ampliação de horizontes e, não, uma limitação da extensão com que direitos podem ser exercidos.

Usualmente, há em nosso país uma percepção de que as nossas escolhas e abordagens regulatórias são importações de soluções estrangeiras e, para além disso, muitas vezes há sim certa influência entre nós de aspectos regulatórios de outros países, que – como sempre digo – precisam passar por um “processo de adaptação e tropicalização” para serem utilizados no Brasil.

Não obstante, por ocasião das recentes transições na U.S. Securities and Exchange Commission (SEC), alguns caminhos adotados no Brasil, em pauta tão moderna e inédita, como é o caso da “tokenização”, têm sido observados nos EUA, em um movimento voltado à chamada “securitização tokenizada”.

A securitização tokenizada no Mercado de Capitais tem se mostrado um desenvolvimento progressivo na estruturação e negociação de ativos financeiros, ao prestigiar a tecnologia para transformar direitos creditórios e outros ativos em tokens digitais. Bem utilizado, esse modelo tem foco em pilares relevantes do nosso mercado, tal como a transparência, e, ainda, mira na eficiência, permitindo que investidores negociem frações desses ativos de forma rastreável, ágil e segura.

Atenta a este cenário contemporâneo, a CVM tem prestigiado uma posição de equilíbrio, a partir de interações com players da criptoeconomia e da valorização do papel fundamental do Estado. Por meio de uma regulação não invasiva, a Autarquia tem pavimentado caminhos seguros aos participantes aderentes às regras e, ao mesmo tempo, sinalizado que está atenta a indícios de fraudes e outros desvios de condutas.

Nesse contexto, é importante destacar o papel crescente das Finanças Digitais na transformação do Mercado de Capitais. A CVM tem atuado diante dessas inovações, avaliando impactos, riscos e oportunidades, com foco na promoção de um ambiente seguro, eficiente e inclusivo.

As Finanças Digitais, além de introduzirem novas tecnologias, ampliam a dimensão e as possibilidades de participação no mercado, reforçando princípios como transparência, proteção ao investidor e eficiência na alocação de recursos. Para além disso, há a possibilidade de redução de custos e encargos regulatórios com a diminuição da necessidade de intervenção de intermediários e outros agentes, cuja função é, em certa medida, substituída ou mitigada pelos usos da tecnologia. 

A CVM tem buscado compreender movimentos que possam promover a democratização e o crescimento do Mercado de Capitais, sendo receptiva a iniciativas de tokenização. Veja-se, por exemplo, o sandbox regulatório da CVM, a aprovação de ETFs de Cripto e, também, a admissibilidade de negociação de produtos cripto nos mercados organizados (como o caso do futuro de bitcoin admitido à negociação na B3).

Em outubro de 2022, a CVM, atenta ao seu perímetro regulatório, publicou o Parecer de Orientação 40, consolidando uma série de dispositivos normativos, recomendações e boas práticas para o funcionamento responsável da indústria, com o objetivo de gerar maior previsibilidade e segurança a ofertantes e investidores, bem como fomentar um ambiente em que os criptoativos tenham integridade e aderência à legislação e regulação.

Neste sentido, é importante destacar que incidirá a Regulação do Mercado de Capitais, notadamente, quando o criptoativo:

  1. apresentar-se como representação digital de algum dos valores mobiliários previstos, taxativamente, nos incisos I a VIII do art. 2º da Lei nº 6.385/76 e/ou previstos na Lei nº 14.430/2022 (i.e., certificados de recebíveis em geral); ou
  2. enquadrar-se no conceito aberto de valor mobiliário do inciso IX do art. 2º da Lei nº 6.385/76, na medida em que seja contrato de investimento coletivo.

Além disso, no Parecer de Orientação 40, a CVM buscou promover segurança jurídica e trazer para dentro do perímetro regulatório o segmento da criptoeconomia, no qual alguns agentes flertavam com a margem da regulação e, neste compasso, adotou abordagem funcional na classificação para enquadramento dos tokens, a fim de indicar o seu tratamento jurídico e organizar os tokens nas seguintes categorias:

  1. Token de Pagamento (cryptocurrency ou payment token): busca replicar as funções de moeda, notadamente de unidade de conta, meio de troca e reserva de valor;
  2. Token de Utilidade (utility token): utilizado para adquirir ou acessar determinados produtos ou serviços; e
  3. Token referenciado a Ativo (asset-backed token): representa um ou mais ativos, tangíveis ou intangíveis. São exemplos os “security tokens”, as stablecoins, os non-fungible tokens (NFTs) e os demais ativos objeto de operações de “tokenização”.

Como evolução de cenário no Brasil e em diversos locais do mundo, surgiram utilizações da tokenização em aspectos dos valores mobiliários tradicionais (securities tokens). Alguns exemplos práticos deste fenômeno de utilização da tokenização são os “tokens de recebíveis” e os “tokens de renda fixa”.

Sendo assim, examinando consultas específicas, e buscando fazer com que as orientações apresentadas fossem acessíveis a todos os agentes de mercado, a Superintendência de Securitização (SSE), Área Técnica da CVM, publicou os Ofícios Circulares 4 e 6, em 2023, que trataram da caracterização dos “tokens de recebíveis” ou “tokens de renda fixa” como valores mobiliários.

Ecoando o sentimento prevalecente na CVM de criar caminhos saudáveis e aderentes à regulação do Mercado de Capitais para a evolução da tokenização, a referida Área Técnica da CVM adotou postura moderna.

A SSE indicou que a “tokenização” é um processo de representação digital de um ativo ou a propriedade de um ativo, o que facilita a sua distribuição para investidores. Assim, quando um token que represente contrato de investimento coletivo em recebíveis ou uma operação de securitização for ofertado publicamente, ele poderá ser considerado um valor mobiliário, sujeito à competência regulatória da Autarquia. Em apertada síntese, fazem-se necessários – por exemplo – o registro do emissor do valor mobiliário e o registro de cada uma das ofertas de distribuição pública por ele realizadas.

Nos referidos Ofícios Circulares, a SSE também demonstrou a possibilidade de tokens serem emitidos na forma de Certificados de Recebíveis ou outros títulos e valores mobiliários de securitização, e serem, ainda, ofertados por meio de plataformas de crowdfunding, enquadrando-se, assim, nas modulações aplicáveis ao crowdfunding, segundo a Resolução CVM 88. Vale destacar que essa modalidade também permite a segregação patrimonial para os recursos aportados pelos investidores em relação aos emissores e plataformas.

Como consequência do trabalho promovido pela CVM, o ano de 2024 apresentou números recordes nas captações de recursos por meio de crowdfundings, na ordem de aproximadamente R$ 1,4 bilhão de reais.

A abordagem de regulação desenvolvimentista e não invasiva, adotada pela CVM e apresentada neste artigo, revela-se, agora, o caminho que a SEC pretende seguir, em linha com o que declarou Hester M. Peirce, Commissioner na SEC, em fevereiro deste ano:

“The Task Force will consider working with staff to recommend that the Commission modify existing paths to registration, including Regulation A and crowdfunding, so that people interested in registering token offerings will have a viable path for doing so.”

Ainda, como reflexo do posicionamento da CVM focado na democratização do Mercado, a Autarquia vem conduzindo a construção do que chamamos de Open Capital Markets, o Mercado de Capitais Aberto, que é a transposição dos conceitos das Finanças Descentralizadas e Digitais para o ambiente do Mercado de Capitais. Trata-se de um conjunto de iniciativas que visa empoderar e simplificar a jornada dos investidores, com mais direitos, proteções, entendimento, confiança e agilidade em suas operações.

O Open Capital Markets representa a extensão natural do Open Banking e do Open Finance, desenvolvidos pelo Banco Central do Brasil. É o resultado de um esforço conjunto entre instituições públicas que vêm liderando a modernização do sistema financeiro nacional, com o objetivo de ampliar o acesso aos mercados, empoderar os investidores, por meio do fortalecimento do compartilhamento de informações, da portabilidade e da interoperabilidade entre sistemas. O Brasil, por meio dessa atuação coordenada, tem se destacado como referência em inovação regulatória e desenvolvimento sustentável global.

Por falar em regulação, destaco que consta da Agenda Regulatória 2025 da CVM a publicação de Consulta Pública no âmbito do crowdfunding, com a intenção de modernizar conceitos deste segmento e buscar gradual ampliação dos limites financeiros que servem de parâmetros para as ofertas. O objetivo da Autarquia é aprimorar e dinamizar a regulamentação para refletir a evolução das práticas de securitização de recebíveis, assegurando que as operações realizadas por securitizadoras, por meio de plataformas eletrônicas de investimento participativo e tokenizadoras, sejam conduzidas dentro de um arcabouço normativo que promova ainda mais transparência, segurança jurídica e proteção dos investidores.

Registro a minha satisfação em observar que as soluções adotadas no Brasil também podem influenciar outros países. Acredito na relação saudável entre inovação e segurança, estimulando e trazendo para o ambiente regulado os bons agentes econômicos que estejam preparados para cumprir a legislação e a regulação, e dispostos a gerar oportunidades no Mercado de Capitais. Tenho a percepção de que, por meio da tokenização, das finanças digitais e da criptoeconomia, será possível promover maior inclusão de emissores e investidores, na certeza de que o Mercado de Capitais é uma ferramenta poderosa para dar cumprimento a políticas públicas em nosso país.

Por fim, e pensando à frente, seria interessante perceber, mundo à fora, em linha com a posição do Brasil e da CVM, a compreensão de oportunidades disponíveis também na Economia Verde e nas Finanças Sustentáveis, impulsionando um mundo para um futuro verde e digital.

João Pedro Nascimento
é presidente da Comissão de Valores Mobiliários - CVM.
joao.pedro@cvm.gov.br


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