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Em 1864, durante a guerra civil norte-americana, houve uma batalha naval importante entra a Marinha da União e a dos Confederados (os rebeldes) em Mobile Bay, Alabama. O vice-almirante das forças Federais, David Glasgow Farragut, colocou os seus navios em duas fileiras paralelas para entrar na baía. De repente, o primeiro navio de uma das colunas foi atingido por um “torpedo” (na verdade, uma mina boiando na água) dos Confederados e afundou em menos de um minuto. Os marinheiros em volta do Farragut, com medo de que batessem em mais “torpedos”, perguntaram qual seria a sua ordem. “Damn the torpedoes!” ele ordenou, “Full speed ahead.”. Ou seja, danem-se as minas, sigam a todo o vapor.
Esta ordem, que se tornou famosa nos Estados Unidos, foi dada na verdade porque o Farragut tinha pouca margem para manobrar os seus navios. A baía estava cheia de minas. Os navios tinham que seguir em frente de qualquer jeito e acabaram vencendo a batalha de Mobile Bay, ajudando a acabar com a escravidão naquele país.
A mesma ordem pode se aplicar às iniciativas ESG no Brasil após a eleição de Donald Trump à presidência dos Estados Unidos.
Sim, é certo que a maior economia do mundo vai sair novamente do Acordo de Paris sobre mudanças climáticas. Sim, é certo que indústrias norte-americanas do setor de combustíveis fósseis vão receber, de novo, apoio do governo. E, sim, é certo que a guerra comercial entre os Estados Unidos e a China vai se acentuar, especialmente em torno de tecnologias de baixo carbono. Mas nada disso deve diminuir o ritmo das iniciativas ambientais, sociais e climáticas das empresas brasileiras e do governo do Brasil. As grandes corporações brasileiras e o governo já investiram numa série de ações socioambientais que têm sua lógica interna. Assim como as colunas de navios do Farragut, essas corporações têm pouca margem para manobras de saída, pois podem bater em “torpedos”.
Há vários motivos. E aqui não há julgamento sobre se o Trump está certo ou errado. É uma análise geopolítica.
Primeiro, não vai se realizar o grande temor no Brasil em relação à retirada dos Estados Unidos do Acordo de Paris: que ela retardaria as iniciativas de reduzir as emissões de gases efeito estufa (GEE) pelos setores de indústria e energia.
O Congresso brasileiro acaba de aprovar o Projeto de Lei 182/2024 (sim, com muito atraso) que vai criar um sistema de “cap and trade” das emissões GEE pelo qual haverá um comércio interno dessas emissões em um mercado cada vez mais restrito. Este mecanismo deve cobrir cerca de 15% das emissões GEE do País, justamente nos setores de indústria pesada e de energia.
Já existe uma dinâmica política interna em marcha para fazer esta lei “pegar”. Entre outros fatores, houve apoio da bancada ruralista: o agro não foi incluído como setor a ser regulado pelo Sistema Brasileiro do Comércio de Emissões, como a indústria foi incluída, e os proprietários de terras que comprovarem práticas de produção que absorvem carbono poderão se beneficiar de créditos no mercado voluntário. Por exemplo, se o agricultor implementar práticas de agricultura regenerativa, associada à Integração Lavoura Pecuária Floresta (ILPF), em que, na mesma propriedade se cria gado, produz alimentos e cultiva árvores, e se o produtor conseguir comprovar, via medição científica, que ele está captando carbono, conseguirá vender créditos, além de vender gado, milho e madeira. É uma situação ganha-ganha que independe da presença dos Estados Unidos no Acordo de Paris.
No setor financeiro, é provável que muitas das iniciativas socioambientais da Securities and Exchange Commission (SEC) sejam revertidas, livrando empresas listadas na Bolsa de Nova York de obrigações para reportar sobre como as mudanças climáticas podem afetá-las, entre outras informações ao mercado. Em 2023, a Comissão de Valores Mobiliários (CVM), por meio da sua Resolução 193, tornou obrigatória a divulgação de informações financeiras relacionadas à sustentabilidade por companhias abertas, fundos de investimento e empresas securitizadoras. O Brasil foi o primeiro país a exigir isso. O Banco Central, há alguns anos, obriga os bancos a realizarem análises de risco socioambiental e climático. Ou seja, Wall Street pode deixar os poluidores enganarem os investidores, mas na Faria Lima isso já está mais difícil.
O segundo motivo é que o principal desafio ambiental e climático do Brasil não é carvão mineral nem petróleo. É o desmatamento e sua relação com a falta de titularidade das terras, com a pobreza e com o crime organizado. A chegada do Trump na Casa Branca terá pouco impacto na resolução ou prolongamento destas dinâmicas.
É nesta área que nosso agribusiness está investindo pesado em iniciativas para reduzir ou eliminar o desmatamento na sua cadeia de fornecimento, principalmente em função de pressão da Europa e, em medida menor, dos Estados Unidos. O governo Trump, mais adepto ao protecionismo, não vai afrouxar as restrições ambientais sobre importações vindo do Brasil, sejam elas para o agro ou para outro setor. Portanto, as iniciativas corporativas contra o desmatamento devem seguir “full speed ahead”.
O terceiro motivo é que o Brasil possui um “trump card”, com t minúsculo. Um trump card, expressão antiga que antecede a ascensão do empresário com o mesmo nome, é “uma vantagem que torna o jogador mais propenso a ter sucesso do que outros, especialmente algo que outras pessoas não conhecem”, segundo o Cambridge Dictionary. Este trump card é a matriz energética brasileira. Nada menos que 93% da geração de eletricidade no País é renovável, graças às usinas hidrelétricas, eólicas, solares e de biogás. E a cada ano a fatia destes últimos três aumenta.
E quando voltamos nosso olhar à matriz energética, a frota de veículos roda com etanol. O Brasil é o segundo maior produtor e consumidor de biocombustíveis no mundo, atrás apenas dos Estados Unidos, cujo PIB é dez vezes maior. O setor de biocombustíveis, inclusive o biodiesel produzido a partir da soja, conta com o incentivo RenovaBio, que estimula financeiramente a eficiência e boas práticas socioambientais na produção. Centenas de milhares de agricultores utilizam a técnica de plantio direto na lavoura, prática que gera bem menos carbono do que o plantio usado na Europa e nos Estados Unidos. Fazem porque é mais eficiente. E as siderúrgicas brasileiras usam carvão vegetal, de plantações renováveis de eucalipto, ao contrário do carvão mineral usado na maioria dos outros países.
As decisões que sairão de Washington para beneficiar os setores de petróleo e carvão mineral, portanto, terão pouco ou nenhum efeito no Brasil.
A chegada do Trump na Casa Branca será noticiada, pela imprensa mais favorável às iniciativas ESG, como desastrosa, inclusive para o Brasil. Podemos assistir a medidas que podem ser consideradas como retrocessos, assim como o Farragut viu um dos seus navios afundar repentinamente. Muitos marinheiros de primeira viagem, ou até experientes em ESG, podem se questionar sobre o que fazer.
Nestes momentos, a ordem do vice-almirante permanece válida: “Damn the torpedoes! Full speed ahead”.
Christopher Wells
é consultor em risco socioambiental. Trabalhou 22 anos no Santander Brasil como superintendente da área de risco socioambiental, chegando a ser head global com responsabilidades sobre outros países.
christopher.wells.br@gmail.com