Em Pauta

APARTHEID CLIMÁTICO: O MUNDO ESG DIVIDIDO EM DOIS

De um lado, a Europa exige asseguração externa e double materiality. Do outro, os EUA enterram suas regras climáticas. O sonho de um padrão global de ESG virou pesadelo de arbitragem regulatória - e o Brasil está no meio do fogo cruzado.

Março de 2025 ficará na história como o mês em que o ESG morreu nos Estados Unidos. Não com estrondo apocalíptico, mas com o suspiro burocrático de uma SEC que simplesmente desistiu de defender suas próprias regras climáticas. Enquanto isso, do outro lado do Atlântico, a Europa acelerava implacavelmente a implementação da CSRD, criando o maior experimento de divergência regulatória da era moderna.

O timing não poderia ser mais irônico. Enquanto Davos ainda ecoava com discursos pomposos sobre "capitalismo stakeholder" e "transição energética", Washington enterrava silenciosamente a pretensão americana de liderar a agenda climática corporativa. O resultado? Um mundo onde a mesma multinacional opera sob regras diametralmente opostas, dependendo apenas da geografia de seus relatórios.

Bem-vindos à era do apartheid climático regulatório, onde sustentabilidade virou questão de CEP, não de consciência.

OS FATOS INCONTESTÁVEIS
Em março de 2024, a SEC havia adotado suas regras de disclosure climático com fanfarra regulatória, prometendo "transparência padronizada" para investidores. As empresas teriam que reportar riscos climáticos materiais, emissões de Escopo 1 e 2, e impactos financeiros de eventos climáticos extremos. Wall Street reclamou, mas se preparou. Consultorias celebraram novos contratos bilionários.

Exatos doze meses depois, a mesma SEC anunciava que não defenderia mais essas regras em tribunais. A pressão foi implacável: líderes congressuais republicanos, procuradores-gerais de estados conservadores, e uma avalanche de lobbying empresarial. O golpe de misericórdia veio com a nova administração, que transformou o que deveria ser política pública em teatro político.

O timing da capitulação revela tudo. Enquanto a SEC recuava, a primeira onda de relatórios CSRD começava a ser publicada na Europa em 2025. Empresas europeias gastavam milhões em asseguração externa e double materiality assessments, criando o mais detalhado retrato de riscos ESG já visto. Do outro lado do oceano, suas concorrentes americanas respiravam aliviadas com a liberdade regulatória recém-conquistada.

Os números são brutais: compliance com CSRD pode custar entre €500 mil e €5 milhões por empresa, dependendo do porte. Multiplique isso por milhares de corporações europeias, enquanto americanas competem sem esse "imposto verde". A pergunta incômoda ressoa: quem está sendo punido por fazer o certo?

O APARTHEID CLIMÁTICO EM AÇÃO
O conceito é simples, mas suas implicações são devastadoras: vivemos agora em dois mundos regulatórios distintos, cada um com suas próprias regras sobre o que significa ser uma empresa responsável. É a materialização de um apartheid climático que fragmenta o capitalismo global em velocidades incompatíveis.

No Bloco ESG, liderado pela União Europeia, a CSRD não é sugestão ou best practice. É lei. Empresas devem conduzir avaliações rigorosas de materialidade dupla, reportar centenas de métricas padronizadas, e submeter tudo à asseguração externa independente. O Reino Unido caminha na mesma direção com padrões ISSB, enquanto a Califórnia mantém suas leis climáticas estaduais intactas, exigindo disclosure de emissões até Escopo 3.

Do outro lado da fronteira invisível, emerge o Bloco Anti-ESG. Os Estados Unidos federais lideram essa resistência, mas não estão sozinhos. Outras jurisdições observam atentamente se conseguem atrair capital e empresas oferecendo "paraísos regulatórios" livres do fardo ESG. A arbitragem regulatória nunca foi tão explícita.

O resultado prático é perverso. A mesma Apple que publica relatórios CSRD detalhados na Europa pode operar com disclosure mínimo nos EUA. A mesma Unilever que investe pesado em compliance para atender Bruxelas compete contra rivais americanas desobrigadas desses custos. É como permitir que alguns atletas usem doping enquanto outros seguem regras antidoping. O esporte deixa de fazer sentido.

Multinacionais inteligentes já descobriram o atalho: estruturar operações para minimizar exposição ao Bloco ESG enquanto maximizam presença no Bloco Anti-ESG. O capital segue o caminho de menor resistência regulatória, não necessariamente de menor risco climático.

AS CONTRADIÇÔES DEMOLIDORAS
A fragmentação regulatória expõe contradições que desafiam a lógica básica de mercados eficientes. Como precificar adequadamente o risco ESG quando as regras de evidenciação variam conforme a jurisdição? Como comparar o valuation de concorrentes que operam sob frameworks regulatórios opostos?

Tomemos um exemplo concreto: duas montadoras globais, uma europeia e outra americana. A primeira gasta milhões reportando emissões detalhadas, riscos de transição energética, e impactos de biodiversidade sob CSRD. A segunda, focada no mercado americano, reporta o mínimo necessário. Qual oferece melhor risco-retorno? Qual é mais "sustentável"? Os números se tornam incomparáveis.

A ironia é devastadora. Empresas europeias, ao cumprirem religiosamente as exigências ESG, podem estar se colocando em desvantagem competitiva contra rivais que simplesmente ignoram essas métricas. É como se houvéssemos criado um sistema que pune a transparência e recompensa a opacidade.

Fundos de investimento enfrentam o dilema impossível: como aplicar critérios ESG consistentes em portfólios globais quando metade das empresas opera sob regras rigorosas e a outra metade navega em águas regulatórias livres? O risco é real de que "investimento responsável" se torne código para "evite empresas europeias".

O mercado de capitais deveria ser um mecanismo de alocação eficiente de recursos, mas a fragmentação ESG introduz distorções artificiais que nada têm a ver com fundamentos econômicos. Estamos financiando empresas com base em onde estão sediadas, não em quão sustentáveis realmente são.

O BRASIL NO FOGO CRUZADO
A CVM brasileira enfrenta agora o dilema regulatório mais complexo de sua história: seguir o modelo americano de flexibilidade ou abraçar o padrão europeu de rigor? A escolha não é apenas técnica, é geopolítica, e define com qual bloco o Brasil quer se alinhar no novo mundo multipolar.

Nossa reguladora já sinalizou preferência pelos padrões internacionais ao adotar IFRS S1 e S2, ecoando a abordagem europeia de harmonização global. Mas a pressão competitiva americana é real: empresas brasileiras competindo globalmente podem argumentar que exigências ESG rigorosas as prejudicam contra rivais americanas desobrigadas.

O paradoxo brasileiro é ainda mais agudo: muitas de nossas multinacionais têm operações significativas na Europa, forçando-as a cumprir CSRD independentemente do que Brasília decida. Enquanto isso, empresas americanas operando aqui podem navegar com exigências mínimas. É uma assimetria regulatória que distorce a competição no próprio mercado doméstico.

A pergunta que a CVM precisa responder é incômoda: regulação ESG é sobre proteger investidores e promover sustentabilidade, ou sobre não prejudicar a competitividade das empresas nacionais? Se for a primeira, o caminho é claro. Se for a segunda, talvez seja hora de admitir que ESG sempre foi mais sobre política que sobre princípios.

AS PERGUNTAS QUE NINGUÉM QUER RESPONDER
Se o maior e mais sofisticado mercado de capitais do mundo desiste de exigir transparência rigorosa quanto a questões climáticas, isso nos diz algo fundamental sobre a natureza do ESG? Talvez a resposta seja desconfortável: que sustentabilidade corporativa funciona melhor como diferencial competitivo voluntário do que como obrigação regulatória universal.

A fragmentação atual força uma questão ainda mais incômoda: estamos financiando greenwashing sofisticado ou sustentabilidade genuína? Empresas europeias produzindo relatórios CSRD de centenas de páginas são automaticamente mais sustentáveis que americanas que investem em tecnologia limpa sem alarde regulatório? A burocracia ESG virou indicador confiável para impacto ambiental real?

Há também a dimensão política impossível de ignorar. Se regulação climática varia conforme quem está no poder em Washington, isso revela que ESG é mais sobre ideologia política que sobre risco financeiro objetivo. Mercados eficientes não deveriam ser reféns de ciclos eleitorais, mas o apartheid climático atual sugere exatamente isso.

A pergunta final é a mais desafiadora: se não conseguimos harmonizar regras ESG básicas entre as maiores economias do mundo, como esperamos coordenar uma resposta global às mudanças climáticas? O apartheid regulatório pode ser o prenúncio de que dividimos não apenas mercados, mas também destinos ambientais.

CONCLUSÃO
O apartheid climático regulatório nos coloca diante de uma questão incômoda que vai além de ideologia: qual é o nível ótimo de transparência ESG que protege investidores sem inviabilizar empresas? A preservação do planeta é urgente e inegociável, mas iniciativas que não fazem sentido econômico estão fadadas ao fracasso. A sustentabilidade só se sustenta quando é sustentável financeiramente.

A capitulação da SEC versus o avanço implacável da CSRD cria um experimento natural fascinante. De um lado, a Europa aposta que burocracia detalhada e asseguração externa produzem melhores resultados ambientais e maior proteção aos investidores. Do outro, os Estados Unidos argumentam que liberdade regulatória permite mais inovação e eficiência na transição energética. Quem está certo?

A resposta só virá com o tempo, mas o custo da fragmentação é imediato. Empresas desperdiçam recursos navegando múltiplos frameworks, investidores não conseguem comparar riscos adequadamente, e capital migra por razões regulatórias, não fundamentais. Talvez o maior risco não seja ter transparência demais ou de menos, mas não ter padrão algum.

O dilema brasileiro espelha o global: quanto de burocracia ESG é prudência regulatória e quanto é teatro performático? A CVM precisa encontrar o ponto de equilíbrio entre proteger investidores de riscos climáticos reais e não sobrecarregar empresas com relatórios que ninguém lê. Porque se ESG virar sinônimo de compliance inútil, perdemos a chance de usar o mercado de capitais para financiar a transição que o planeta precisa. E isso, sim, seria uma tragédia irreversível.

Marcelo Murilo
é Co-Fundador e VP de Inovação e Tecnologia do Grupo Benner, Palestrante, Mentor, Conselheiro, Embaixador e membro do Senior Advisory Board do Instituto Capitalismo Consciente Brasil, Embaixador e Membro da Comissão ESG da Board Academy BR e Especialista do Gerson Lehrman Group e da Coleman Research – Fala sobre Inovação, Governança e ESG.
marcelo.murilo@benner.com.br


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