Criação de Valor | Diversidade | Educação Financeira | Em Pauta |
Espaço Apimec Brasil | IBGC Comunica | IBRI Notícias | Liderança |
Opinião | Orquestra Societária | Ponto de Vista | Voz do Mercado |
Evolução normativa, impactos regulatórios e avanço da proteção ao investidor
O segmento dos fundos de investimento desempenha um papel central no Mercado de Capitais e no Sistema Financeiro Brasileiro, atraindo investidores de diferentes perfis, inclusive os de varejo. Ao final de 2024, o número de cotistas em fundos de investimento já tinha ultrapassado 25 milhões. No total, após uma captação líquida de R$ 60,7 bilhões em 2024, o patrimônio da indústria de fundos atingiu um recorde de R$ 9,5 trilhões, segundo dados da ANBIMA.
A indústria de fundos no Brasil passou por substanciais modernizações (i) legislativas, com a introdução dos artigos 1.368-C a 1.368-F no Código Civil, por meio da Lei de Liberdade Econômica (Lei nº 13.874/2019); e (ii) regulatórias, com o Marco Regulatório dos Fundos de Investimento, por meio da Resolução CVM nº 175/2022 (“RCVM 175”).
No contexto de tais modernizações, passou a ser permitido que o regulamento do fundo de investimento limitasse a responsabilidade dos cotistas ao valor de suas respectivas cotas (conforme o artigo 1.368-D do Código Civil e o artigo 18 da Parte Geral da RCVM 175, que é aplicável a todas as categorias de fundos de investimento). Deste modo, desde que previsto expressamente no regulamento, é possível a previsão de que a responsabilidade do cotista é limitada ao valor por ele subscrito.
Essa previsão confere maior segurança jurídica ao cotista e representa um importante mitigador de riscos aos investidores, contribuindo para maior atratividade para indústria de fundos de investimento, em especial, junto ao público de varejo. Afinal, sem essa previsão, os cotistas poderiam responder por eventual patrimônio líquido negativo do fundo e, até mesmo, serem chamados a realizar aportes de capital para honrar obrigações do fundo.
De maneira orientativa, a CVM se pronunciou sobre a responsabilidade dos cotistas nos FIIs por meio do Ofício Circular 2/2025/CVM/SSE. A autarquia ressaltou que, desde a publicação da Lei nº 8.668/93, os cotistas de FIIs possuem responsabilidade limitada ao valor integral das cotas subscritas. No entanto, a CVM alertou que essa limitação não se aplica automaticamente às obrigações que não estejam diretamente relacionadas aos imóveis e empreendimentos do fundo, como por exemplo eventuais dívidas dos FIIs com prestadores de serviços. Nessas hipóteses, para garantir a proteção dos investidores, a responsabilidade limitada precisa estar expressa e detalhada no regulamento.
Esta orientação do referido Ofício Circular é relevante tendo em vista o fato de que a ausência de previsão no regulamento pode gerar efeitos práticos importantes, incluindo a responsabilização dos cotistas e eventual chamada de capital. Por isso, a CVM recomendou que os regulamentos explicitem com clareza a extensão da responsabilidade dos cotistas, inclusive para obrigações não vinculadas aos ativos da carteira. Essa transparência é ainda mais relevante sobretudo aos investidores de varejo, que podem não estar preparados para riscos econômicos inesperados.
Para administradores e gestores, essa mudança também apresenta cenários de oportunidades e de adaptações. Em fundos com responsabilidade limitada, os prestadores de serviço não podem recorrer a aportes adicionais dos cotistas, mesmo diante de cenários de patrimônio líquido negativo. Isso impõe maior rigor na precificação, gestão de riscos e controle dos passivos, reforçando a necessidade de equilíbrio entre a segurança do investidor e a previsibilidade operacional.
Cabe, aqui, lembrar da Resolução CMN nº 5.202/2025, que seguiu a mesma lógica ao determinar que os Fundos de Investimento em Participações (FIPs) prevejam a responsabilidade limitada em seus regulamentos para captar recursos de entidades fechadas de previdência complementar (art. 23, §2º). Essa exigência reforça a importância da delimitação clara do risco dos cotistas para a segurança dos investimentos, especialmente aqueles voltados ao longo prazo.
Não obstante os avanços, vale um apontamento – e consequente reflexão – sobre a adoção da cláusula de responsabilidade limitada.
Segundo levantamento realizado pela ANBIMA, a adesão já é ampla em fundos como ETFs, cambiais, previdenciários e de renda fixa. Isso se deve a fatores como: (i) a pulverização da base de cotistas, (ii) a necessidade de previsibilidade e (iii) o fato de que a chamada de capital é, na prática, inviável nesses produtos. No caso de fundos de previdência, que envolvem aportes contínuos e compromissos de longo prazo, a mesma lógica de viabilização do produto se aplica, tendo em vista a necessidade de mitigar incertezas.
Um dos fatores que impulsionou essa adesão foi a inovação trazida pela RCVM 175 ao formalizar, pela primeira vez, a possibilidade de insolvência de um fundo com responsabilidade limitada. Caso o patrimônio líquido se torne negativo, o fundo pode ser liquidado de maneira ordenada, sem necessidade de aportes adicionais dos cotistas. Essa previsibilidade conferiu maior segurança para a adoção do regime, inclusive para fundos com estratégias de risco controlado, como aqueles que utilizam operações alavancadas ou derivativos.
Por outro lado, os fundos estruturados, como Fundos de Investimento em Direitos Creditórios (FIDCs) e FIPs, apresentam adesão à cláusula com taxas de 40% e 48%, respectivamente. Em muitos desses casos, a ausência de limitação era percebida como uma proteção adicional por investidores seniores ou prestadores de serviços, especialmente em estruturas com múltiplas classes de cotas. Além disso, a adoção da cláusula de responsabilidade limitada pode exigir ajustes relevantes em contratos, regulamentos e sistemas internos, o que tende a tornar a transição mais complexa do que em fundos padronizados.
Há também reflexões relevantes a serem feitas quanto à não inclusão da cláusula de limitação de responsabilidade nos fundos de investimento. De forma intuitiva, seria razoável supor que a maioria dos fundos optaria por adotar tal previsão. No entanto, sob a ótica dos prestadores de serviços essenciais — especialmente quando detêm maior poder de barganha na relação contratual, e não os investidores —, observa-se que esses prestadores frequentemente recusam assumir a gestão e/ou a administração fiduciária de fundos que prevejam essa limitação de responsabilidade. A análise dos dados disponíveis sobre a adaptação dos fundos demonstra que essa resistência se manifesta, de forma mais acentuada, nos fundos antigos, ou seja, constituídos antes da entrada em vigor da RCVM 175. Nesses casos, a inclusão da cláusula de limitação de responsabilidade tende a ser reativa e enfrenta maiores obstáculos, sobretudo quando os negócios vinculados ao fundo atravessam situações adversas ou apresentam resultados negativos.
Enfim, independentemente dos desafios e das características em concreto de cada fundo de investimento em suas situações específicas, a RCVM 175 busca fomentar que todos os fundos revisem os seus regulamentos e definam, de forma expressa, o regime de responsabilidade adotado. Mesmo aqueles que optarem por manter a responsabilidade ilimitada deverão refletir sobre esta escolha, o que pode gerar negociações e outros movimentos na dinâmica entre os cotistas e os prestadores de serviços essenciais.
Fato é que esse processo de transição reflete uma reestruturação mais ampla no Mercado de Capitais brasileiro. É sempre bom lembrar que o Brasil já se destaca internacionalmente por sua robusta indústria de fundos, e a RCVM 175 fortalece esse protagonismo ao modernizar a regulamentação, trazendo mais clareza jurídica e adaptabilidade operacional. Ainda, a adoção do novo regime contribui para um ambiente ainda mais transparente, competitivo e eficiente, alinhado à agenda Open Capital Market da CVM, que busca ampliar o acesso e democratizar o Mercado de Capitais.
João Pedro Nascimento
é professor da FGV Direito Rio. Foi presidente da CVM - Comissão de Valores Mobiliários, entre julho/2022 e julho/2025.
joao-pedro-nascimento@live.com