Regulação, Supervisão e Eficiência Informacional na Era das SupTechs e RegTechs
A Inteligência Artificial (IA) está promovendo mudanças na dinâmica do Mercado de Capitais. O avanço tecnológico, impulsionado por técnicas de machine learning e análise de dados, vem transformando a forma como investidores, emissores de valores mobiliários, reguladores e autorreguladores interagem.
Desde que utilizada com equilíbrio e responsabilidade, a IA tem a capacidade de ampliar a transparência, fortalecer a integridade do sistema financeiro e aprimorar a eficiência informacional dos mercados. Neste contexto, entre as principais aplicações da IA no cenário global estão as Supervisory Technologies (SupTechs), que auxiliam as autoridades reguladoras e autorreguladoras na supervisão da conformidade de participantes de mercado com as regras aplicáveis; e as Regulatory Technologies (RegTechs), utilizadas pelos próprios participantes para cumprir normas, prazos e obrigações regulatórias. Ambas utilizam a IA para automatizar processos, detectar riscos e garantir conformidade, representando uma nova fase de modernização financeira.
Nos países em que os reguladores dispõem de mais recursos financeiros e tecnológicos, a adoção dessas soluções já ocorre em ritmo acelerado, consolidando uma transformação sem precedentes na governança dos mercados.
IA no Ecossistema do Mercado de Capitais
O Mercado de Capitais produz diariamente um volume massivo de dados e informações: relatórios, demonstrações financeiras, fatos relevantes, comunicados ao mercado, avisos aos acionistas, extratos de negociações e comunicações corporativas de toda natureza. Esse volume desafia a capacidade humana de análise e processamento.
A IA surge, nesse contexto, como uma ferramenta para processar essas informações e extrair conhecimento relevante. Sistemas inteligentes conseguem identificar padrões ocultos, prever riscos e sugerir ações corretivas.
Entretanto, o uso da IA também traz novos desafios. A dependência tecnológica, os vieses algorítmicos e a opacidade dos modelos exigem governança robusta. Fato é que a tecnologia, por mais sofisticada que seja, não substitui o controle humano, e as cadeias de deveres e responsabilidades que estruturam a regulação de condutas devem ser sempre preservadas. É imprescindível assegurar responsabilidade, ética e transparência.
SupTechs: Inteligência Artificial a Serviço da Supervisão Regulatória
As Supervisory Technologies (SupTechs) representam o uso de soluções tecnológicas por parte dos reguladores para aprimorar suas atividades de supervisão. Elas permitem o monitoramento automatizado de operações e a verificação da conformidade com normas regulatórias.
No âmbito da IOSCO (International Organization of Securities Commissions), exemplos como a FINMA (Autoridade Supervisora do Mercado Financeiro da Suíça) e a ESMA (European Securities and Markets Authority) já utilizam ferramentas de IA para detectar práticas potencialmente irregulares e auxiliar no monitoramento de condutas.
Com capacidade de analisar milhões de transações em tempo real, a IA identifica anomalias estatísticas e sinaliza possíveis casos de churning, spoofing, layering e outros ilícitos típicos do Mercado de Capitais, que são especialmente monitoráveis por IA no atual contexto de eletronificação dos ambientes de negociação. Também é utilizada para examinar relatórios corporativos e verificar a consistência das informações enviadas por companhias abertas e outros emissores de valores mobiliários.
O uso de SupTechs amplia a eficiência e a abrangência das atividades de supervisão. Com apoio de algoritmos, os reguladores conseguem atuar de forma mais preventiva e orientada por dados. Ainda assim, é essencial zelar pela transparência dos modelos e pela autonomia técnica das decisões. A supervisão automatizada deve sempre preservar a capacidade de controle humano.
RegTechs: Conformidade Inteligente para os Participantes de Mercado
As Regulatory Technologies (RegTechs) aplicam a IA para auxiliar companhias abertas e emissores de valores mobiliários no cumprimento das obrigações regulatórias. São ferramentas que apoiam áreas de compliance, gestão de riscos, prevenção à lavagem de dinheiro e identificação de clientes (Know Your Customer – KYC).
Essas soluções reduzem custos operacionais e aumentam a precisão das análises, por meio do cruzamento de dados de múltiplas fontes e do monitoramento automatizado de obrigações. Em adição, a interação entre RegTechs e SupTechs cria um ecossistema regulatório mais integrado.
As informações processadas por RegTechs podem ser analisadas por SupTechs, fortalecendo a transparência e a supervisão. Essa integração aproxima reguladores e participantes, reforça a confiança dos investidores e eleva a qualidade das informações disponíveis ao mercado.
PLN e a nova Dimensão dos Dados
Uma das aplicações mais promissoras da IA no Mercado de Capitais é o Processamento de Linguagem Natural (PLN). Essa tecnologia permite que sistemas compreendam, analisem e extraiam informações de textos humanos, inclusive cruzando dados com movimentações em redes sociais.
Com o PLN, informações não estruturadas tornam-se dados pesquisáveis e comparáveis, permitindo a identificação de riscos, a verificação de conformidade e a extração de tendências. Muitos investidores e agentes de mercado já utilizam essas ferramentas para interpretar a imensa quantidade de informações em circulação.
No Brasil, a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) adotou, desde 2022, uma agenda de investimentos em tecnologia, transformação digital e soluções analíticas para aprimorar o acompanhamento do mercado. A Autarquia, que há cerca de três anos, passou a dispor de wi-fi e conectividade sem fio em alta velocidade, agora integra o edital “Soluções de Inteligência Artificial (IA) para o Poder Público”, iniciativa conjunta com o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI), a Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), o Ministério da Gestão e Inovação em Serviços Públicos (MGI) e a Escola Nacional de Administração Pública (Enap).
Essa transformação revela o esforço institucional em conduzir processos de modernização tecnológica de forma coordenada e efetiva na CVM.
Desafios de Ética, Regulação e Governança
Como toda novidade, o avanço da IA no Mercado de Capitais impõe desafios éticos, regulatórios e de governança. A opacidade dos algoritmos e o risco de vieses podem comprometer a imparcialidade das decisões automatizadas, exigindo transparência, auditabilidade e supervisão humana constante.
Também por isso, a regulação da IA deve adotar uma abordagem baseada em princípios (principle-based regulation) e não apenas em regras fixas, a fim de que se permita flexibilidade e adaptação contínua às inovações tecnológicas, sem limitar caminhos de desenvolvimento.
Assim, fica perceptível que o equilíbrio entre inovação e prudência será o grande desafio da próxima década, especialmente em um ambiente global no qual a velocidade das transformações tecnológicas redefine fronteiras e modelos institucionais.
O Futuro em Perspectiva
A Inteligência Artificial começa a trilhar um caminho de mudanças na forma de operar, supervisionar e regular o Mercado de Capitais. SupTechs e RegTechs demonstram que tecnologia e integridade podem caminhar juntas quando orientadas por princípios éticos e por uma governança sólida.
É sempre importante lembrar: o futuro do Mercado de Capitais repousa sobre um tripé essencial, formado por inovação tecnológica, responsabilidade institucional e ética. Neste sentido, reguladores e participantes precisam cooperar para manter um ambiente seguro, transparente e sustentável.
Fato é que a integração entre Inteligência Artificial e regulação financeira inaugura um novo capítulo da modernização institucional. À medida que os algoritmos aprendem e evoluem, o verdadeiro diferencial será humano: a capacidade de interpretar dados com sensibilidade, compreender contextos e agir com discernimento. Afinal, a IA não substituirá o papel do ser humano: será o instrumento que ampliará sua visão, fortalecerá sua capacidade de decisão e consolidará uma nova era de confiança e transparência no sistema financeiro.
A IA é, simultaneamente, ferramenta e desafio. Seu impacto dependerá da capacidade humana de guiá-la com sabedoria, propósito e senso de responsabilidade pública.
João Pedro Nascimento
é professor da FGV Direito Rio. Foi presidente da CVM - Comissão de Valores Mobiliários, entre julho/2022 e julho/2025.
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