Enquanto muitos usam IA para cortar custos e fazer o mesmo com menos, poucos a usam para podar com intenção. Podar é preparar para crescer, liberar potencial e fazer mais com o mesmo. A diferença está na visão de futuro.
No mundo corporativo, poucas decisões são tão rápidas quanto as que envolvem cortes. Quando a crise bate à porta, abre-se a planilha, convoca-se o comitê, compartilha-se o PowerPoint, e entre fórmulas e discursos técnicos, vidas são impactadas. Cortar virou sinônimo de eficiência. É preciso fazer mais com menos. É preciso enxugar.
Mas há um outro caminho, bem mais exigente: o da poda. Enquanto o corte é movido por urgência, a poda exige visão. Poda não é eliminar o que está sobrando, é remover com intenção aquilo que, mesmo fazendo parte da estrutura, está impedindo o florescimento. O jardineiro não corta por acaso. Ele poda para fortalecer.
Essa metáfora nos serve perfeitamente para refletir sobre o uso da inteligência artificial nas empresas. Estamos diante de uma ferramenta poderosa, transformadora e, ao mesmo tempo, ambígua. A IA pode ser usada para cortar custos, eliminar funções e acelerar decisões automatizadas, ou pode ser usada para podar ineficiências, liberar talentos e abrir espaço para a inovação.
Esse dilema silencioso já está se apresentando aos conselhos de administração. Em nome da eficiência, muitas organizações estão adotando IA como uma ferramenta de substituição, reduzindo estruturas sem reimaginar processos. Outras, ainda poucas, estão percebendo o potencial de usar a IA como uma alavanca estratégica, não apenas para fazer mais rápido, mas para fazer melhor.
É aqui que nasce a pergunta central deste artigo: sua empresa está usando IA para cortar o que sobrou ou para podar o que impede o crescimento?
O uso predominante da IA hoje: eficiência ou estratégia?
A adoção da inteligência artificial pelas empresas vem crescendo rapidamente, impulsionada por promessas de ganhos de produtividade, automação de tarefas repetitivas e redução de custos. Relatórios recentes mostram que a grande maioria das organizações inicia sua jornada com foco quase exclusivo em eficiência operacional. A lógica é simples e sedutora: algoritmos trabalham mais rápido, sem descanso, e não exigem folha de pagamento.
Mas essa lógica, embora eficiente no curto prazo, carrega um risco estratégico. Quando a IA é usada apenas para substituir trabalho humano, a empresa troca complexidade por desempenho imediato, mas deixa de explorar seu real potencial transformador. Automatizar processos é só a superfície. O valor mais profundo da IA está em ampliar a capacidade humana de pensar, decidir, criar e antecipar o futuro.
A McKinsey aponta que, apesar do entusiasmo generalizado, apenas uma minoria das empresas consegue extrair valor em escala das suas iniciativas com IA. E isso acontece não por falta de tecnologia, mas por ausência de clareza estratégica, cultura adequada e liderança engajada. Sem esses elementos, o uso da IA se limita a replicar modelos antigos com ferramentas novas, uma transformação digital mais estética do que estrutural.
É por isso que a distinção entre cortar e podar é tão relevante. Cortar é buscar alívio imediato. Podar é preparar o terreno para o que vem depois. A primeira decisão economiza. A segunda, transforma.
Cortar ou podar: intenção e impacto
Cortar é uma decisão de defesa. Quando o cenário aperta, a planilha vira bússola. Reduz-se pessoal, terceiriza-se funções, simplificam-se estruturas. O foco está em proteger margens, reduzir despesas e preservar o caixa. Em certos momentos, essa resposta é até necessária. Mas ela é reativa, feita com base no presente, ou pior, no passado.
Podar, por outro lado, é uma escolha de intenção. Exige olhar para o que está travando o crescimento, mesmo que esteja funcionando. Implica renunciar a velhas práticas, processos obsoletos, camadas organizacionais desnecessárias ou formas de operar que não escalam. A poda não elimina por eliminar. Ela remove com propósito: para dar espaço, luz e energia ao que pode crescer.
A diferença entre um corte e uma poda está na pergunta que os líderes se fazem. Cortar pergunta: “o que podemos tirar para sobreviver?” Podar pergunta: “o que precisamos ajustar para florescer?” Uma empresa que poda está pensando em futuro. Uma empresa que corta, muitas vezes, está tentando apenas manter-se viva no presente.
A inteligência artificial, nesse contexto, tanto pode ser instrumento de corte como de poda. A tecnologia é a mesma. O que muda é a intenção por trás do uso. A mesma IA que automatiza um atendimento e reduz headcount também pode identificar gargalos, liberar talentos para tarefas mais estratégicas e acelerar a capacidade de inovar. Depende de como ela é aplicada e de quem decide isso.
É aqui que o papel dos conselhos se torna ainda mais crítico. Porque a tecnologia, por si só, não tem ética, propósito nem discernimento. Ela faz o que foi programada para fazer. Quem define o "para quê" somos nós. E isso faz toda a diferença.
O papel do conselho: supervisionar com propósito
A inteligência artificial não é apenas uma pauta técnica. É uma pauta estratégica. E, como tal, deve estar no centro das discussões do conselho. Não se trata de aprovar investimentos em tecnologia, mas de questionar com profundidade: por que estamos adotando IA? A serviço de que visão de futuro? Com que impacto sobre pessoas, processos, cultura e propósito?
Muitos conselhos ainda se posicionam como espectadores da transformação digital, delegando as decisões sobre IA à área de tecnologia ou à diretoria executiva. Mas a maturidade digital de uma organização está diretamente ligada à maturidade do seu conselho. Um board que compreende as implicações da IA é capaz de fazer perguntas melhores, enxergar riscos invisíveis e identificar oportunidades antes dos concorrentes.
Supervisionar com propósito significa, antes de tudo, garantir alinhamento entre o uso da IA e os valores da empresa. Uma tecnologia tão poderosa não pode ser implantada apenas com foco em eficiência ou redução de custos. É preciso avaliar se ela contribui para os objetivos estratégicos, se respeita os preceitos do ESG, se amplia, e não compromete, a inteligência coletiva da organização.
Cabe ao conselho evitar a armadilha do "AI-washing", o uso raso, apressado e sem responsabilidade da inteligência artificial, travestido de inovação. Também é papel do conselho assegurar que a adoção de IA não reproduza desigualdades, enviesamentos ou destrua valor no longo prazo. Afinal, governança é, antes de tudo, um compromisso com o futuro.
E é justamente por isso que conselhos conscientes devem ser os jardineiros da transformação digital. Não para aplaudir cortes bem-feitos, mas para orientar podas bem pensadas. A tecnologia pode ser veloz. Mas cabe ao conselho garantir que ela também seja sábia.
Instruções práticas: como um conselho pode orientar o uso estratégico da IA
O conselho de administração tem um papel insubstituível na forma como a inteligência artificial é incorporada às decisões da empresa. Não basta aprovar orçamentos ou acompanhar relatórios de progresso. É preciso fazer as perguntas certas, cobrar as premissas corretas e garantir que o uso da IA esteja a serviço de um propósito claro, ético e alinhado à estratégia.
A seguir, algumas diretrizes práticas para conselhos que desejam orientar o uso inteligente e consciente da IA:
A atuação do conselho como guardião estratégico da IA não é um luxo. É uma necessidade. Porque toda tecnologia poderosa carrega em si o risco do mau uso e, também, a chance de nos levar mais longe, se usada com sabedoria.
Conclusão: crescer exige poda, não corte
A inteligência artificial é, sem dúvida, uma das ferramentas mais poderosas já colocadas à disposição das empresas. Mas seu impacto dependerá menos da tecnologia em si e mais da intenção com que ela é aplicada. Cortar é fácil, rápido, muitas vezes inevitável. Mas cortar não prepara ninguém para o futuro. Só a poda faz isso.
Poda exige olhar estratégico, coragem de mexer no que está estabelecido, e compromisso com o que ainda está por vir. Poda não é sobre eliminar. É sobre permitir que algo maior cresça no lugar. Uma empresa que poda com inteligência está criando espaço para a inovação, a criatividade e a colaboração florescerem.
Conselhos que assumem essa visão atuam não como guardiões do orçamento, mas como arquitetos do futuro. São eles que ajudam a empresa a atravessar a transição tecnológica com ética, clareza e ambição. Não para fazer o mesmo com menos, mas para fazer mais com o mesmo.
A pergunta que fica é simples, mas definitiva: sua empresa está usando IA para cortar o que sobrou ou para podar o que impede o crescimento?
Marcelo Murilo
é Co-Fundador e VP de Inovação e Tecnologia do Grupo Benner, Palestrante, Mentor, Conselheiro, Embaixador e membro do Senior Advisory Board do Instituto Capitalismo Consciente Brasil, Embaixador e Membro da Comissão ESG da Board Academy BR, colunista da HSM Management e Revista RI e Especialista do Gerson Lehrman Group e da Coleman Research – Fala sobre Inovação, Governança e ESG.
marcelo.murilo@benner.com.br