Educação Financeira

DO OBJETO À EXPERIÊNCIA: O NOVO LUXO

Em março de 2001 mudei-me com a família para Montreal. Eu e minha esposa fazíamos o chamado sanduíche de doutorado. Morávamos em um apartamento minúsculo, mas com uma linda vista, perto das nossas universidades e ao lado do Parc du Mont-Royal. Projetado em 1876 pelo mesmo arquiteto do Central Park, o parque ocupa uma colina com vistas deslumbrantes da cidade. Ali passamos muitas horas em família, escorregando nas colinas nevadas no inverno e fazendo piqueniques nos dias quentes.

Com Celina e meus dois filhos ainda crianças, descobri que a maior ostentação possível é a mais simples de todas: tempo livre. Essa constatação, tão concreta e silenciosa, reordenou minha noção de valor e prepara o terreno para o que discuto adiante sobre status, propósito e o que de fato é ser rico.

Foi em Montreal, na Concordia University, que conheci a disciplina de Finanças Pessoais, que depois trouxe ao Brasil e lecionei por 21 anos. Lembro do professor repetindo uma expressão que me soou estranha: “keeping up with the Joneses”. Precisei pesquisar para entender que a expressão vinha de uma série de tirinhas iniciada em 1913, publicadas por décadas, que retratavam a luta dos McGinnis tentando imitar o estilo de vida luxuoso e inatingível dos vizinhos, os Jones. Era humor com ácido. Por trás da graça estava a obsessão pelo consumo ostentatório.

Em 2007 essa crítica ganhou outro contorno com a estreia do reality “Keeping Up with the Kardashians”, deliberadamente inspirado no título original. A sátira virou espetáculo. Em vez de acompanhar vizinhos anônimos, passamos a acompanhar uma família símbolo do consumo extremo e da cultura da celebridade. A crítica converteu-se em produto. Se Keeping up with the Joneses ridicularizava quem queria parecer rico, Keeping Up with the Kardashians celebrou uma era em que parecer virou projeto de vida global.

De lá para cá tudo ficou mais difícil, hoje tentamos acompanhar, no feed das redes, pessoas que exibem sucesso em escala planetária. A competição social migrou do portão da frente para a timeline. Não é apenas comparação; é uma tentativa de reafirmar o próprio valor em um mundo que mede prestígio por sinais externos e curtidas visíveis. Foi esse mecanismo que Thorstein Veblen nomeou consumo conspícuo, a compra que não busca utilidade, mas o valor simbólico de ostentar. O problema é que essa corrida não tem linha de chegada. Sempre haverá alguém com algo maior, mais caro ou mais raro.

O resultado costuma ser uma falsa percepção de felicidade. A satisfação da compra evapora rápido e dá lugar a um novo desejo, alimentando um ciclo de comparação e frustração que muitas vezes degenera em endividamento e perda de tranquilidade. No fundo, compra-se menos o bem e mais a ilusão de pertencimento. Quanto mais tentamos provar sucesso pelo consumo, mais nos afastamos do contentamento que nasce da coerência entre o que temos, o que somos e o que valorizamos.

É nesse ponto que entra o novo livro de Morgan Housel, A Arte de Gastar Dinheiro, lançado em outubro de 2025. Autor de A Psicologia Financeira, Housel desloca o foco do quanto ganhamos e acumulamos para a pergunta que quase nunca fazemos com honestidade: como gastamos.

Gastar bem não é mero ato financeiro; é decisão psicológica e moral. É alinhar o uso do dinheiro ao que dá significado à vida. Muita gente não quer riqueza, quer parecer rica. A diferença parece pequena, mas separa liberdade de escravidão. Trabalhar para sustentar uma imagem é viver para o espelho. Trabalhar para sustentar uma vida coerente é, de fato, viver.

Em 12 de outubro de 2025, uma reportagem da revista The Economist perguntava: “Why are the ultra-rich giving up on luxury assets”. O texto começa com a parábola do Château d’Yquem. Entre 2010 e 2023, o valor das melhores safras daquele que é considerado o melhor vinho doce do mundo aumentou, em média, 60%. Foi uma época em que todas as formas de opulência ficaram mais caras. Carros antigos, uísques envelhecidos e mansões dispararam de valor. De 2015 a 2023, um índice de investimento em luxo produzido pela Knight Frank subiu 70%.

Desde 2023, porém, o mercado de luxo começou a esfriar. O índice global cedeu, vinhos ícones de Bordeaux e Borgonha recuaram, jatos e barcos perderam preço, relógios Rolex usados valem bem menos do que no auge. Símbolos clássicos de opulência parecem perder brilho. Em paralelo, os gastos com serviços e experiências exclusivas aceleraram: viagens gastronômicas, eventos esportivos de elite, hotéis com vistas únicas. O eixo do luxo migrou do objeto para a vivência, do tangível para o intangível. Não é uma oposição perfeita: experiências são consumidas para viver, mas também, cada vez mais, para sinalizar pertencimento; o “mostrar” talvez tenha apenas mudado de formato.

O Julius Baer Global Wealth and Lifestyle Report 2025, referência global sobre o comportamento dos muito ricos, confirma a virada. O custo médio da “vida de alto padrão” recuou em dólares, e a desaceleração na compra de itens de status contrasta com o aumento dos gastos em viagens, gastronomia, saúde e longevidade. “Health as wealth” tornou-se mantra. O novo luxo privilegia autenticidade, bem-estar e tempo de qualidade.

E o Brasil, onde fica nessa história? Aqui a revolução silenciosa chegou, mas ainda fala baixo. O mercado de luxo segue crescendo a dois dígitos e movimentou perto de 98 bilhões de reais em 2024, impulsionado principalmente por moda, automóveis e imóveis. São categorias com forte componente de visibilidade pública; o chamado luxo do espelho segue sedutor. Mesmo aqui, o gasto começa a migrar, para experiências e bem-estar, mas em ritmo mais lento do que nos mercados desenvolvidos. O velho impulso de mostrar sucesso através de bens continua atrativo.

Para muitos, exibir é existir: afirmar valor por meio do consumo. É um mecanismo perverso de comparação que, não raro, transforma objetos em algo maior que o tempo bem vivido que deveriam promover.

Como sair do labirinto? Três movimentos ajudam. Primeiro, defina o que é riqueza para você em cenas concretas, como tempo com a família, flexibilidade no trabalho e saúde em dia, e não em objetos. Segundo, observe, mês a mês, quais gastos entregaram paz, significado e boas histórias, e corte sem culpa o que só rendeu likes. Terceiro, antes de grandes compras, faça a pergunta filtro: se ninguém soubesse, eu ainda compraria?

A verdadeira riqueza raramente aparece na foto. Ela costuma estar nos minutos que voltaram, nas noites bem dormidas, na conversa sem pressa, na competência de dizer não, no corpo cuidado, na curiosidade preservada, na serenidade de estar em paz com o que se tem e com o que se decidiu não ter.

Gastar bem é gastar com intenção, não com comparação. E, nesse instante, o dinheiro cumpre sua melhor função: devolver a liberdade de viver como escolhemos.


Jurandir Sell Macedo, CFP
é doutor em Finanças Comportamentais, com pós-doutorado em Psicologia Cognitiva pela Université Libre de Bruxelles (ULB) e diretor da Alento Educação Financeira.
jurasell@gmail.com


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