Como a transformação do sistema tributário brasileiro redefine riscos corporativos, pressiona modelos de negócio e exige dos conselhos de administração uma atuação estratégica para proteger a perenidade, assegurar competitividade e capturar oportunidades em meio à transição.
A reforma tributária deve ser tratada pelo Conselho como um projeto de transformação transversal, que ultrapassa o campo técnico e alcança aspectos financeiros, operacionais, jurídicos e estratégicos. Nesse contexto, cabe ao Conselho assegurar a existência de um plano de transição robusto, monitorar com atenção os riscos relacionados a fluxo de caixa, competitividade e reputação, exigir a revisão de contratos e sistemas tecnológicos e garantir que a gestão esteja devidamente capacitada para identificar oportunidades, antecipar impactos e mitigar riscos ao longo de todo o processo.
O risco de liquidez e fluxo de caixa ganha destaque com a introdução do modelo de split payment, no qual os tributos incidentes sobre a operação deixam de transitar pela empresa e passam a ser recolhidos automaticamente e de forma imediata pelo fisco. Na prática, a companhia deixa de contar com aquele período entre o recebimento da receita e o pagamento do imposto, que hoje funciona como um fôlego para o capital de giro. Empresas que utilizam esse intervalo para financiar estoques ou cobrir despesas correntes precisarão buscar novas fontes de funding, renegociar prazos com fornecedores ou repensar sua gestão de caixa para se adaptar à nova dinâmica.
O risco de precificação e margens decorre da mudança para a cobrança dos tributos “por fora”, que altera a forma como o preço é apresentado e pode gerar distorções relevantes caso os contratos e tabelas de preços não sejam ajustados de maneira adequada. Essa mudança não afeta apenas a percepção dos clientes, mas também a mensuração de resultados, uma vez que a receita bruta tende a parecer menor, mesmo sem queda efetiva nas vendas. Isso pode comprometer indicadores de desempenho, impactar diretamente a apuração de bônus e influenciar negativamente decisões negligenciem a nova realidade econômica da operação.
O risco de competitividade entre setores surge da criação de regimes diferenciados e específicos que, embora necessários para determinadas atividades, produzem assimetrias na carga tributária. Empresas enquadradas em tratamentos especiais, como as de serviços de educação, hotelaria ou de planos de saúde, bem como de dispositivos médicos ou alimentos destinados ao consumo humano, poderão se beneficiar de alíquotas reduzidas, crédito presumido ou mesmo isenção, enquanto outras, fora desses regimes, permanecerão sujeitas às alíquotas de referência. Esse desbalanceamento pode comprometer a competitividade relativa de empresas que atuam em mercados próximos ou complementares, exigindo do Conselho atenção redobrada na definição de estratégias comerciais, no posicionamento de preços e na busca por ganhos de eficiência que compensem eventuais desvantagens tributárias.
O risco de desalinhamento contratual decorre do fato de que muitos instrumentos de remuneração e acordos comerciais estão atrelados ao conceito de “receita bruta”, que será alterado pela reforma tributária. Com a exclusão dos tributos destacados “por fora”, a base de cálculo utilizada nesses contratos pode ser artificialmente reduzida, gerando distorções entre o desempenho real da empresa e os valores devidos a empregados, executivos ou parceiros. Isso cria potencial para conflitos trabalhistas, questionamentos de sócios e disputas com distribuidores ou licenciados, especialmente em setores onde comissões, royalties e cláusulas de earn-out são práticas comuns. A revisão criteriosa desses contratos torna-se, portanto, uma prioridade para evitar litígios e preservar o alinhamento entre incentivos e resultados efetivos.
O risco de perda de benefícios e incentivos está associado ao fato de que a reforma tributária prevê a extinção ou adaptação progressiva de diversos regimes especiais de ICMS e ISS que, historicamente, foram decisivos para atrair investimentos e estimular a atividade econômica em determinadas regiões. Indústrias que se instalaram em estados ou municípios com base em vantagens tributárias podem ver esse diferencial reduzido ou eliminado, comprometendo a lógica econômica que sustentou seus projetos. Nota relevante para o fato de que a Zona Franca de Manaus foi contemplada como regime favorecido na reforma tributária, com proteção assegurada até 2073, ainda que a manutenção efetiva dos incentivos dependerá de regulamentações específicas e da capacidade de adaptação ao novo sistema tributário.
O risco de litígios e contingências decorre das incertezas naturais do período de transição, especialmente no que diz respeito ao aproveitamento de créditos acumulados, às regras de restituição e à interpretação das normas pelos fiscos estaduais e municipais. A complexidade do sistema federativo brasileiro faz com que cada ente possa adotar entendimentos distintos, criando espaço para disputas administrativas e, em última instância, judiciais. Empresas detentoras de volumes relevantes de créditos de ICMS deverão analisar, individualmente, a viabilidade de compensação ou utilização desses valores, considerando eventuais resistências por parte dos estados interessados em preservar sua arrecadação. Esse contexto demanda especial atenção à estratégia jurídica e fiscal da companhia, com avaliação criteriosa de provisões e garantia de transparência nas demonstrações financeiras, a fim de mitigar riscos de natureza reputacional e de governança.
O risco de compliance e sistemas está diretamente ligado às novas exigências tecnológicas da reforma tributária, que incluem layouts atualizados de notas fiscais, obrigatoriedade de informar corretamente CBS (Contribuição sobre Bens e Serviços, que substituirá PIS e Cofins) e IBS (Imposto Sobre Bens e Serviços, que substituirá ICMS e ISS), e maior sofisticação dos controles eletrônicos de arrecadação. Essa complexidade amplia a exposição das empresas a falhas operacionais e de sistemas, elevando o risco de penalidades, autuações e até interrupção de operações comerciais. Um simples erro de parametrização em um ERP, como a omissão do destaque do IBS em uma NFS-e, pode resultar na rejeição do documento fiscal, impossibilitando a emissão de notas, atrasando entregas e comprometendo a relação com clientes. Por isso, torna-se essencial que o Conselho cobre da gestão investimentos em atualização tecnológica, testes de conformidade e planos de contingência que garantam a continuidade operacional mesmo diante de mudanças tão profundas.
O risco de valuation decorre da possibilidade de distorções significativas na valorização das empresas caso os impactos da reforma tributária não sejam devidamente incorporados às análises financeiras. Créditos acumulados de tributos extintos, como PIS e COFINS, bem como regimes especiais que estão sendo revistos ou eliminados, podem inflar artificialmente o valor de uma empresa-alvo ou, ao contrário, reduzir de forma abrupta sua atratividade. Num M&A, um comprador que baseie sua avaliação apenas no EBITDA histórico, sem ajustar projeções para a incidência de CBS e IBS, corre o risco de adquirir um ativo que terá margens e fluxo de caixa menores no cenário pós-reforma, comprometendo o retorno do investimento. Esse contexto demanda especial diligência tributária, e mecanismos que protejam contra mudanças regulatórias capazes de avaliar com rigor a sustentabilidade do valor gerado pelas empresas envolvidas.
O risco estratégico de cadeia de suprimentos está relacionado ao fato de que a eficiência fiscal dos fornecedores passa a ter impacto direto na competitividade das empresas contratantes. A escolha de parceiros que não estejam em conformidade ou que apresentem fragilidades na gestão tributária pode gerar custos adicionais relevantes, seja pela impossibilidade de aproveitamento pleno dos créditos de IBS e CBS, seja pela exposição a autuações e glosas fiscais. Isso significa que a análise de fornecedores deverá incorporar critérios de compliance e aderência ao novo sistema. Cabe ao Conselho assegurar que a gestão adote processos estruturados de avaliação e monitoramento contínuo da saúde fiscal da cadeia.
A reforma tributária impõe uma agenda de transformação que extrapola a esfera fiscal e alcança diretamente a governança corporativa, exigindo dos conselhos visão estratégica, acompanhamento próximo e capacidade de mobilizar a gestão para ajustes rápidos e consistentes. Mais do que um desafio técnico, trata-se de um teste de resiliência e adaptação que pode diferenciar empresas preparadas daquelas que apenas reagem, definindo quem será capaz de preservar sua perenidade, proteger valor e aproveitar as oportunidades que surgem em meio à mudança.
Alexandre Oliveira, PhD, CCA, CCoAud
é Vice-coordenador da Comissão de Finanças, Fiscalização e Controles do IBGC, onde é professor do curso de formação de conselheiros. Presidente dos Conselhos Consultivos da Cebralog Educação e da Equosorriso Terapia. Conselheiro de Administração do Fundo Patrimonial Patronos. Pós-doutor em Strategic Thinking e doutor no uso de Inteligência Artificial nas Decisões Corporativas. Pós-graduado em Negócios Digitais, em Finanças e em Direito Digital. Engenheiro, mestre em Supply Chain e Especialista em Conformidade Regulatória.
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