Enfoque

FUNÇÃO SOCIAL DA EMPRESA & O CONSTITUCIONALISMO CONTEMPORÂNEO

A verdadeira segurança jurídica não reside na imutabilidade normativa, mas na previsibilidade de que o ordenamento todo se curve aos princípios constitucionais legitimamente constituídos.

Desde os primórdios do século XX, a empresa deixa sua posição de mero arranjo contratual entre sócios ou instituição fundada por acionistas, para se afirmar como centro de poder social, político e simbólico. Nesse século, observamos o crescimento de um capitalismo caracterizado pela “financialização”, entendida aqui, em sentido não técnico, como “a crescente importância dos motivos financeiros, dos mercados financeiros, dos atores financeiros e das instituições financeiras na operação das economias domésticas e internacionais”, no sentido consolidado por Gerald Epstein em “Financialization: There’s something happening here”, texto em que o autor descreve o adensamento do poder financeiro sobre as decisões econômicas e políticas.

Esse capitalismo financializado se apoia em cadeias globais de produção e em plataformas digitais, nas quais grandes corporações moldam condições de trabalho, estruturas urbanas, fluxos informacionais, políticas socioambientais e, até mesmo, a qualidade do debate democrático e filosófico em torno do status quo da vida laboral e empresarial, do consumo consciente, dos limites planetários e do necessário equilíbrio entre o uso dos recursos da natureza e sua capacidade de regeneração.

A pergunta contemporânea já não é se a empresa possui função social, mas como essa função é juridicamente densificada à luz do constitucionalismo moderno, que não tolera poderes privados imunes aos valores fundamentais da humanidade. Esses valores são afirmados, de modo paradigmático, pela Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, cujo preâmbulo e cujo artigo 1º recordam que todos os membros da família humana possuem dignidade, direitos iguais e inalienáveis, nascem livres e iguais em dignidade e direitos, são dotados de razão e consciência e devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade. É esse léxico – igualitário, universalista, racional – que serve de pano de fundo para a leitura constitucional da empresa. As alegações sobre eventuais “disfuncionalidades” da função social, quando examinadas de perto, costumam expressar a resistência de interesses fracionados e estritamente privados diante dos direitos difusos e coletivos acolhidos pelo constitucionalismo contemporâneo.

O constitucionalismo contemporâneo desloca o eixo clássico “Estado versus indivíduo” e passa a observar cuidadosamente os poderes privados que condicionam, de fato, o gozo dos direitos. Cass Sunstein, em The Second Bill of Rights: FDR’s Unfinished Revolution and Why We Need It More Than Ever (2004), e Owen Fiss, em Liberalism Divided: Freedom of Speech and the Many Uses of State Power (1996), mostram como desigualdades estruturais, concentração econômica e controle privado dos meios de comunicação podem esvaziar a promessa meramente formal de liberdade e igualdade, exigindo que o direito público penetre zonas tradicionalmente consideradas “privadas”. Bruce Ackerman, em We the People, Volume 1: Foundations (1991), ao tratar das “constituições em camadas”, sugere que os pactos constitucionais se renovam justamente quando são capazes de enquadrar novos centros de poder que emergem na sociedade. Nesse quadro intelectual, a empresa deixa de ser “figura neutra” da economia para ser reconhecida como ator constitucionalmente relevante, tanto sob a perspectiva de interesses privados típicos quanto sob a perspectiva de interesses sociais amplos.

Na tradição alemã, o princípio constitucional da eficácia horizontal dos direitos fundamentais (Drittwirkung), desenvolvido pela jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal e aprofundado pela doutrina, indica que a Constituição permeia a ordem privada. Peter Häberle, em Peter Häberle on Constitutional Theory: Constitution as Culture and the Open Society of Constitutional Interpreters (2015), descreve a Constituição como expressão cultural aberta, interpretada por uma “sociedade aberta de intérpretes constitucionais”, na qual também se situam as grandes empresas. Jürgen Habermas, em Between Facts and Norms: Contributions to a Discourse Theory of Law and Democracy (1996), recusa a ideia de que corporações possam operar como espaços normativos autônomos, imunes às exigências de justificação pública que vinculam o Estado. Sob esse prisma, a função social da empresa não é adorno retórico, mas fundamento de legitimidade do seu poder econômico: o exercício desse poder é permanentemente avaliado à luz dos direitos fundamentais e da preservação de um espaço público racional. É a racionalidade – e não a força bruta de interesses econômicos – que estrutura essa lógica constitucional.

Na França, a emergência do devoir de vigilance, consagrado por legislação que impõe às grandes empresas deveres de identificação, prevenção e mitigação de riscos sociais, ambientais e de direitos humanos ao longo de todas as suas cadeias globais de valor, revela uma densificação normativa da função social. Alain Supiot, em L’Esprit de Philadelphie: La justice sociale face au marché total (2010), lembra a Declaração da Filadélfia de 1944, documento fundante da Organização Internacional do Trabalho, que orienta a ação internacional em torno da ideia de que uma paz duradoura depende de justiça social e antecipa a linguagem dos pactos de direitos humanos e das convenções fundamentais da OIT. É dessa matriz que deriva a crítica à “mercantilização” do trabalho e a defesa contemporânea de princípios como o “trabalho decente”. Supiot denuncia a “irresponsabilidade organizada” quando a forma jurídica da empresa é utilizada para fragmentar obrigações e diluir responsabilidades ao longo de estruturas societárias e contratuais complexas. Dominique Rousseau, em Six Thèses pour la démocratie continue (2022), insiste que o constitucionalismo vivo não se esgota nas instituições estatais clássicas, devendo alcançar também “poderes que fazem a lei de fato”, entre os quais se incluem as grandes empresas transnacionais. Em entrevista ao ConJur (9.7.2022), Rousseau sintetiza essa preocupação: a crise contemporânea não é da democracia em si, mas da forma representativa da democracia, na qual cidadãos votam e, em seguida, “são convidados a ficar calados”, percebendo, eleição após eleição, que seu voto não transforma suas vidas e que representantes estão frequentemente mais atentos aos próprios interesses e aos interesses dos grandes grupos econômicos e financeiros. Daí o afastamento das urnas, a acusação genérica de corrupção do “sistema” e a erosão da legitimidade democrática. Nesse contexto intelectual e político, a função social torna-se critério jurídico que submete a corporação à razão pública: direitos humanos, proteção ambiental, transparência e lealdade passam a compor o núcleo normativo da atuação empresarial.

No pensamento inglês e anglo-americano, ainda que a expressão “função social” nem sempre seja utilizada explicitamente, a aproximação entre empresa e princípios constitucionais é evidente. Ronald Dworkin, em Law’s Empire (1986), ao sustentar que direitos têm peso e que a integridade do direito exige coerência entre princípios públicos e decisões concretas, impede uma cisão esquizofrênica entre o “mundo constitucional” e o “mundo societário” regido exclusivamente pela maximização do valor acionário – lógica tornada ainda mais intensa pelo capitalismo financeirizado. Martin Loughlin, em The Idea of Public Law (2003), mostra como entes privados podem exercer funções públicas ou quase governamentais, o que torna insustentável tratá-los como atores meramente contratuais ou institucionais, como se fosse possível ignorar o poder normativo de grandes corporações estadunidenses ou globais. Kent Greenfield, em The Failure of Corporate Law: Fundamental Flaws and Progressive Possibilities (2006), critica o modelo tradicional de shareholder primacy e propõe uma arquitetura jurídica na qual deveres fiduciários passam a incorporar, de modo transparente, impactos sociais relevantes. A convergência teórica, nessa tradição, é clara: onde o poder privado possui magnitude estrutural, ele não pode ser imune às razões constitucionais.

Nessa moldura representativa de visões do constitucionalismo em países centrais do capitalismo (Reino Unido, França, Alemanha e Estados Unidos), torna-se possível descrever o conteúdo moderno da função social da empresa a partir de cinco eixos.

Em primeiro lugar, os direitos fundamentais funcionam como limite interno, e não externo, à empresa. Não se trata de impor, “de fora”, um verniz social, mas de reconhecer que a própria validade da atividade empresarial depende de sua compatibilidade com a dignidade da pessoa humana, com a igualdade possível, com a participação efetiva de minorias historicamente invisibilizadas, com a proteção dos vulneráveis, com a integridade do meio ambiente e com a concorrência leal. A função social converte-se em critério para avaliar produtos, processos, cadeias produtivas e estratégias financeiras, tornando-se um acréscimo - e não um obstáculo - às funcionalidades típicas do capitalismo, como eficiência, inovação e retorno financeiro a acionistas, credores e demais partes interessadas (stakeholders). Entretanto, essas funcionalidades, por si, não contêm – nem podem conter – os valores sociais da modernidade: precisam ser permanentemente requalificadas à luz do vocabulário constitucional de direitos.

Em segundo lugar, a empresa deixa de ser compreendida como propriedade exclusiva de acionistas e passa a ser vista como comunidade de interesses. A lógica moderna de governança corporativa incorpora a noção de que trabalhadores, consumidores, credores, comunidades locais e até mesmo o meio ambiente assumem riscos substanciais sem participarem formalmente dos centros de decisão. A função social, aqui, orienta a aplicação de modelos de stakeholder governance, nos quais os deveres fiduciários deixam de ser cegos aos impactos sociais, culturais e ambientais. O lucro não é abolido como objetivo legítimo, mas é juridicamente qualificado: deixa de ser fim absoluto e passa a ser finalidade condicionada, compatível com a preservação de direitos fundamentais.

Em terceiro lugar, a função social implica responsabilidade pelas externalidades, isto é, pelos impactos e riscos sistêmicos associados à atividade empresarial. A B3, ao definir externalidades, recorda que se trata de efeitos de atividades que, mesmo involuntariamente, geram benefícios ou impõem custos a terceiros, sem que estes tenham a possibilidade de impedir tais efeitos, nem a obrigação de pagar pelos benefícios ou o direito de serem ressarcidos pelos custos. Benefícios constituem externalidades positivas; danos, externalidades negativas. Em um cenário de cadeias globais opacas, plataformas digitais dominantes, setores extrativos de alto risco e circulação intensa de dados pessoais, a mera observância de um “mínimo legal” formal já não basta. Relatórios como o Global Risks Report 2025 do Fórum Econômico Mundial, que sintetizam a percepção de centenas de especialistas, evidenciam riscos sistêmicos ligados à escalada de conflitos, à multiplicação de eventos climáticos extremos, à polarização social e política e ao uso de tecnologias que aceleram a difusão de desinformação. Documentos como os United Nations Guiding Principles on Business and Human Rights: Implementing the United Nations “Protect, Respect and Remedy” Framework (2011) e as OECD Guidelines for Multinational Enterprises expressam a gramática jurídico-política segundo a qual grandes empresas devem estruturar deveres de diligência, prevenção, mitigação e reparação proporcionais ao seu poder e à extensão de suas externalidades.

Em quarto lugar, governança, transparência e integridade compõem o núcleo operacional da função social. Não há função social autêntica quando a corporação falseia demonstrações financeiras, captura órgãos reguladores, manipula informações ao mercado ou produz relatórios de sustentabilidade destituídos de aderência fática. A função social exige acionistas controladores e conselhos de administração diligentes, controles internos efetivos, auditoria corajosamente independente, programas de integridade substantivos e canais de denúncia capazes de acolher críticas internas com segurança e sem retaliações. A retórica “social” dissociada dessas estruturas é precisamente o tipo de estetização que o constitucionalismo, em sua essência, tem por missão desmascarar – ainda que persistam tentativas de reduzir tais exigências a supostas “disfuncionalidades” meramente aparentes.

Por fim, a preservação da empresa em crise é dimensão condicionada da função social, não salvo-conduto. Em determinados contextos, a continuidade da empresa – e dos empregos, contratos e serviços que a cercam – constitui bem jurídico relevante. Mas essa preservação não pode significar anistia estrutural a acionistas controladores e administradores irresponsáveis nem a socialização de prejuízos depois de um longo período de privatização de lucros. A função social opera, aqui, como cláusula de equilíbrio: legitima soluções de soerguimento quando acompanhadas de transparência, repartição equitativa de sacrifícios, responsabilização por condutas ilícitas e reformas de governança que impeçam a repetição dos desvios. Longe de ser armadilha para a liberdade, a função social é um dos mecanismos pelos quais se busca o equilíbrio entre esse valor central do liberalismo e as exigências de justiça socioambiental, econômica, jurídica e política que marcam o nosso tempo.

A objeção mais frequente é conhecida: uma leitura robusta da função social introduziria insegurança jurídica, “politizaria” o Direito Empresarial e afastaria investimentos. O constitucionalismo contemporâneo responde com maior honestidade intelectual: não existe zona neutra; a pretensão de neutralidade costuma ocultar escolhas de distribuição de poder e de riqueza. Também é escolha política declarar intocável a maximização do valor acionário a qualquer custo e aceitar, como dano colateral inevitável, desigualdade extrema, precarização estrutural, destruição ambiental e cultural ou manipulação informacional. A verdadeira segurança jurídica não reside na imutabilidade normativa, mas na previsibilidade de um ambiente em que princípios constitucionais são levados a sério também dentro das empresas.

Um Direito Empresarial à altura do nosso tempo não trata a função social como exceção patológica, mas como linguagem comum através da qual a sociedade exige que poderes privados se justifiquem, assumam seus riscos e honrem as promessas que fazem ao se apresentar como motores do desenvolvimento.


Francisco Petros
é economista, advogado especializado em governança corporativa, compliance e crises corporativas. Atualmente é conselheiro de administração independente da Petrobras e Caixa Econômica Federal. É membro do Conselho Diretor do Instituto dos Advogados de São Paulo (IASP). Foi Presidente da ABAMEC-SP (Associação Brasileira dos Analistas do Mercado de Capitais), atual APIMEC.
francisco.petros@gmail.com

Daniela de Avilez Demôro
é advogada especializada em Direito Econômico, Sustentabilidade, Governança Corporativa e Compliance, árbitra em Câmaras nacionais e internacionais, e conselheira de administração. É Membro do Conselho Consultivo do Instituto Brasileiro de Economia Circular (IBEC) e Fundadora e Presidente Executiva do Global Arbitration & Sustainability Forum. (GLAS).
daniela.demoro@dad.adv.br


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