Geopolítica

MUDANÇAS CLIMÁTICAS & TERRITÓRIOS: O TENDÃO DE AQUILES DA GOVERNANÇA E DA GEOPOLÍTICA CONTEMPORÂNEA

Na mitologia grega, Aquiles era invencível - exceto por seu calcanhar, o único ponto não banhado pelas águas do rio Estige. Foi ali que a flecha de Páris o atingiu, revelando que toda força carrega uma vulnerabilidade. Aquiles representava tanto o poder bruto, a velocidade e a glória, como também um personagem trágico, impulsivo, vulnerável ao orgulho e à ira. Isso nos dá uma lente rica para entender os dilemas da geopolítica e governança corporativa contemporâneas.

A geopolítica e a governança corporativa atuais operam com força semelhante: dominam mercados, moldam narrativas, influenciam destinos. Mas ignoram ou subestimam o que não podem controlar: o clima, os ecossistemas, os ciclos naturais, os limites planetários na diversidade dos seus territórios.

Em um mundo marcado por tensões geopolíticas crescentes e pela busca incessante por estabilidade econômica, a mudança climática emerge como o tendão de Aquiles — o ponto vulnerável, a fragilidade escondida que ameaça desestabilizar estruturas de poder, mercados e modelos de governança que antes pareciam sólidos.

Estamos assistindo ao colapso da lógica da geopolítica tradicional, antes centrada em disputas territoriais, recursos energéticos e influência militar, que agora se confrontada por um inimigo silencioso e fronteiriço: o clima.

Na arena internacional, vemos potencias ainda se comportando como Aquiles — confiantes em seus arsenais, suas moedas fortes, suas fronteiras bem guardadas, não percebendo que o clima escapa a essa lógica, pois tempestades não respeitam soberanias, secas não negociam tratados, degelos não seguem sanções, eventos extremos como secas, enchentes e incêndios florestais não respeitam limites geográficos, migrações climáticas pressionam fronteiras, gerando tensões diplomáticas e crises humanitárias, disputas por recursos naturais (água, terras férteis, minerais críticos) intensificam conflitos regionais.

Segundo os relatórios mais recentes da Organização Meteorológica Mundial (OMM), 2025 tem sido marcado por uma intensificação preocupante dos eventos climáticos extremos. O Ártico está aquecendo a uma taxa mais de três vezes superior à média global, com impactos severos no derretimento de gelo e elevação do nível do mar. Este degelo, por exemplo, já abriu novas rotas comerciais e interesses estratégicos entre potências globais, revelando como o clima pode e tem redefinido o tabuleiro geopolítico.

Neste contexto, a escassez de água, a desertificação, o aumento do nível do mar e os eventos extremos não apenas redesenham mapas físicos, mas reconfiguram também alianças, provocam migrações em massas e acirram disputas por recursos naturais.

Estudos recentes evidenciam que há uma relação direta entre vulnerabilidade climática e risco geopolítico. Países com maior capacidade de adaptação tornam-se polos de atração populacional, enquanto regiões vulneráveis enfrentam maior instabilidade política e social, tornando-se epicentros de crises humanitárias e conflitos por recursos.

A disputa por minerais importantes para a transição energética, como lítio, cobalto e terras raras, também tem intensificado tensões geopolíticas, especialmente em áreas ambientalmente frágeis e politicamente instáveis.

Percebe-se, entretanto, que muitos Estados ainda se comportam como Aquiles em fúria: atacando, competindo, ignorando o próprio calcanhar exposto. A diplomacia climática, antes periférica, tornou-se central, e sua ausência tem revelado a fragilidade do multilateralismo, como evidenciado nas COPs recentes.

No setor privado, a mudança climática tem desafiado também os pilares da governança corporativa tradicional. Empresas que ignoram os riscos climáticos enfrentam não apenas prejuízos financeiros, mas também perda de legitimidade social e reputacional.

Empresas globais tem também encarnado Aquiles nas posturas: ágeis, inovadoras e dominantes, tratando as mudanças climáticas como tema periférico, não estratégico.

O tendão de Aquiles corporativo reside na persistência e, ainda, na aposta de modelos de negócio extrativos, que dependem da exploração de recursos finitos, na manutenção de cadeias de suprimento profundamente vulneráveis a eventos climáticos extremos e na crítica falta de integração entre os princípios de sustentabilidade e a estratégia central do negócio.

Não reconhecer o clima como risco sistêmico, faz os modelos de governanças existentes marcharem para a guerra com o calcanhar exposto, sem perceber o quanto as mudanças climáticas impactam os balanços das suas empresas. Na Governança Corporativa, o tendão de Aquiles na prática é o risco invisível no balanço quando são ignorados os:

  • riscos físicos (danos a ativos, interrupção de cadeias produtivas);
  • riscos de transição (mudanças regulatórias, pressão de investidores, reputação);
  • riscos sistêmicos (colapso de mercados, instabilidade social, escassez de insumos).

A falta de integração entre sustentabilidade, estratégia e gestão de riscos compromete a resiliência empresarial. E em um mundo em aquecimento, resiliência não é diferencial — é condição de sobrevivência.

Atualmente, os modelos de governança corporativa já estão sendo ajustados para lidar com os riscos geopolíticos, tornando-se um instrumento de resiliência territorial e garantidoras da soberania operacional de suas empresas. Entretanto, precisam urgentemente incorporar os riscos climáticos, para que consigam lograr o desafio da resiliência territorial. A vulnerabilidade climática de um território afeta diretamente o desempenho econômico e reputacional das empresas que nele atuam.

O que temos até aqui nesta abordagem são evidências de que as mudanças climáticas não afetam o planeta de forma homogênea. Elas reconfiguram territórios, alterando ecossistemas, padrões de ocupação e até fronteiras geopolíticas. Essas transformações tornam o território um vetor de vulnerabilidade e disputa, com implicações diretas na atual geopolítica e nos modelos de governança corporativa.

De acordo com Luiz Oosterbeck (2024), os territórios são, antes de tudo, espaços de vida. Para além de fornecerem recursos, eles abrigam dimensões simbólicas, culturais e ecológicas, cujas memórias, biodiversidade e saberes tradicionais devem ser integralmente respeitados. Diante disso, torna-se imperioso desenvolver uma diplomacia da escuta, fundamentada no diálogo intercultural e no reconhecimento de que nenhuma cultura é superior a outra.

Precisamos encarar e entender o Território como elo invisível e vivo nas questões geopolíticas e corporativas atuais, por ser o tecido onde se entrelaçam os impactos da mudança climática, as decisões políticas e empresariais e os valores éticos que sustentam ou corroem a vida coletiva.

Os territórios são realidades complexas e multifacetadas, que se manifestam em quatro dimensões interligadas: são geográficos, delimitados por fronteiras, recursos naturais e infraestrutura; culturais, pois são carregados de saberes, práticas tradicionais e espiritualidades locais; ecológicos, enquanto habitat de biodiversidade única e ciclos naturais essenciais; e políticos, como espaço de disputa de poder, regulação social e construção de identidade e pertencimento.

A questão territorial coloca em xeque a própria base da ética humanista, fundada em princípios universais como liberdade, igualdade e dignidade. Embora racional, essa perspectiva se revela limitada: na ausência de uma prática relacional profunda, ela se torna 1. Abstrata e distante, ao proclamar direitos sem escutar as vozes e realidades concretas dos territórios; 2. Antropocêntrica, ao colocar o humano no centro, negligenciando a interdependência fundamental com os ecossistemas do planeta; e 3. Vulnerável ao seu "tendão de Aquiles", ao falhar sistematicamente na aplicação de seus valores universais em contextos reais marcados por complexidade e conflito.

Nesse contexto, o conceito de Humanitude, desenvolvido por Adama Samassélou, baseado em valores africanos como ubuntu, maaya e nite, que colocam o ser humano em harmonia com o meio ambiente e com os outros, a ética do “ser com o outro” - tem chamado atenção. Foca a qualidade do ser humano em sua plenitude, com abertura para ao outro, respeito à diversidade e buscas por relações não conflituosas.

A ética baseada em Humanitude é situada, relacional e regenerativa. Não há humanidade sem o outro e sem o lugar. A humanitude fala diretamente aos processos de Governança Corporativa e a suas empresas, pois exige: 1. Escuta dos territórios: empresas devem dialogar com comunidades, ecossistemas e culturas locais; 2. Coerência entre valores e práticas: não basta falar em sustentabilidade é preciso vivê-la territorialmente; e 3. Governança como propósito: decisões empresariais devem considerar o bem estar coletivo e a regeneração dos espaços onde atuam.

Ao exercitar o conceito de Humanitude como fundamento ético para a Geopolítica, transformamos o xadrez geopolítico atual, marcado por polarização, em um espaço mais humanizado e cooperativo. Nesta nova abordagem, a geopolítica deixa de ser um jogo de dominação para buscar equilíbrio entre os povos, respeitando culturas e territórios - tornando possível a transição do poder para a solidariedade. Inspirados por Luiz Oosterbeck, reconhecemos os territórios como espaços de vida plurais, exigindo que políticas territoriais respeitem integralmente as memórias, a biodiversidade e os saberes locais. Por fim, em vez de imposição, esta geopolítica ética promove o diálogo intercultural através do desenvolvimento de uma diplomacia da escuta ativa e horizontal.

A Humanitude, como propõe Adama Samassékou, é a ética do “ser com o outro”. Ela exige que líderes — empresariais e políticos — transcendam a lógica da dominação e adotem uma postura de escuta, cuidado e corresponsabilidade. É uma ética que não se impõe por força, mas se revela pela coerência entre valores e práticas. E, com isso, um novo arquétipo pode ser criado: o de lideres e lideranças conscientes e capazes de reconhecer a interdependência entre economia, sociedade e natureza; que tomam decisões com base em valores humanos, não apenas em indicadores financeiros e que assumem a crise climática como responsabilidade coletiva.

Segundo Deloitte Brasil, líderes têm papel crucial na implementação de políticas climáticas, e sua coerência entre discurso e prática é o que define a autenticidade da transformação. Já a Fast Company Brasil alerta que sem mudança de mentalidade, não haverá futuro sustentável — o perigo está à porta.

A governança corporativa contemporânea, respondendo ao Legado ESG, está incorporando na prática valores como transparência, empatia e responsabilidade social, entendendo que suas empresas têm responsabilidade na promoção do bem-estar coletivo. Está demandando lideranças mais conscientes, que tomem decisões considerando o impacto sobre todas as partes interessadas impactadas por suas atividades, o que pressupõe escuta ativa, humildade e visão sistêmica. Reforçando o que foi dito anteriormente, precisa incorporar a gestão de riscos climáticos, adaptando sua cadeia produtiva, buscando seguros ambientais e desenvolvendo planos de contingências. A vulnerabilidade climática de um território afeta diretamente o desempenho econômico e reputacional das empresas que nele atuam.

O fim de Aquiles só se tornou trágico porque ignorou sua vulnerabilidade. A postura adequada passa pelo reconhecimento de das próprias vulnerabilidades e adquirir postura adaptativa. Na geopolítica, isso significa:

  • reconhecer que nenhum país é seguro num planeta instável;
  • criar zonas de paz climática, onde a cooperação supera a competição;
  • investir em infraestruturas, territórios resilientes e regenerativos.

Já para a governança corporativa, se traduz em:

  • incorporar o clima no centro da estratégia;
  • adotar métricas de impacto real, não apenas reputacional;
  • ser agente de regeneração, não apenas de mitigação.

Aquiles ignorou sua fragilidade, e o mundo também está ignorando as suas. Não precisamos de mais heróis invencíveis. Precisamos de lideranças que saibam onde está seu tendão — e que tenham coragem de protegê-lo com inteligência, humildade e visão sistêmica.

A metáfora de Aquiles nos recorda que o poder sem consciência é ruína. Contudo, o poder que reconhece sua própria vulnerabilidade pode tornar-se profundamente transformador. Ela nos alerta que a força sem coerência é uma ilusão perigosa, e que a compreensão das mudanças climáticas como um fator estratégico central para blocos econômicos e empresas é o antídoto para essa fragilidade. Essa mudança de perspectiva é capaz de converter nossos líderes em guardiões da vida, transformar empresas em agentes de regeneração e ressignificar os territórios como espaços de escuta ativa e transformação.

Tanto a geopolítica quanto a governança corporativa na contemporaneidade detêm o potencial de converter seus pontos fracos em forças regenerativas, reorientando a transformação do planeta sob uma lógica territorialmente consciente, climaticamente responsável e eticamente coerente.

O tendão de Aquiles não precisa ser o ponto da queda — pode ser o ponto da virada, desde que reconhecido, cuidado e transformado. Governar com os territórios, não sobre eles!


Adriana de Andrade Sole
é Engenheira Eletricista. Autora de livros sobre Governança Corporativa. Conselheira Fiscal da Vale S.A. e Sociedade Mineira de Engenheiros. Conselheira de Administração certificada pelo IBGC desde 2010 e da Editora Fórum. Professora convidada da FDC, PUC Minas e KPMG. Sócia fundadora da Tradecon Business empresa de consultoria. Especialista em estruturação de governança em organizações de pequeno e médio porte.
adrianasole2021@gmail.com


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