A Lei nº 6.404/1976 (“LSA”) estabelece um descritivo regime dos deveres dos administradores, conforme artigos 153 a 157. A seguir, o legislador estabelece os pressupostos gerais para a responsabilização dos administradores (art. 158) e para a proposição de ação de responsabilidade civil (art. 159). O objetivo primário do regime legal de deveres e responsabilidades imposto aos administradores das companhias é criar incentivos para que estes agentes exerçam suas atribuições no interesse da companhia e das pluralidades acionárias, mitigando problemas de agência.
Os problemas de agência surgem como desdobramento da segregação entre patrimônio e gestão, em que as atividades de gestão são delegadas a um agente, que será responsável por administrar patrimônio alheio (o patrimônio social).
As normas de Direito Societário buscam induzir o alinhamento de interesses entre acionistas (principal) e administradores (representantes), reduzindo problemas de agência e posicionando a companhia para lograr o seu fim social. A lei societária estabelece padrões de comportamentos (modelos de conduta) esperados dos administradores, que impõem prestações, ativas ou omissivas, na condução dos negócios da companhia, a fim de assegurar o exercício de suas funções no melhor interesse da companhia.
A relação estabelecida entre administradores e a companhia tem natureza fiduciária, na medida em que pressupõe a confiança (ou fidúcia) de que a atuação dos membros da administração será pautada pelo interesse social. Os administradores não assumem obrigações em nome próprio, tampouco encontram-se vinculados aos interesses dos mandatários que lhe elegeram para o cargo. Os administradores devem exercer seus poderes de forma alinhada com a confiança que lhes foi depositada e nos limites delineados pela lei e pelo estatuto social.
A administração é órgão da companhia, cuja atuação é orientada pelo interesse social (não pelo interesse individual dos sócios ou dos próprios administradores). O interesse social é o interesse comum dos sócios (enquanto sócios), concentrado prioritariamente na geração dos lucros, na valorização dos investimentos e na maximização de ganhos econômicos para a sociedade.
O desvio dos modelos de conduta em violação à relação de fidúcia com a companhia pode ensejar a responsabilização dos administradores. Para este fim, o julgador deverá determinar em que medida a atuação concretamente se distanciou do modelo de conduta esperado naquelas circunstâncias.
Deveres Fiduciários e Shareholders Primacy
As companhias viabilizam a coordenação de capitais para a produção e circulação de bens e serviços, permitindo equacionar eficientemente uma multiplicidade de riscos e interesses entre os agentes envolvidos. A coexistência de núcleos distintos de direitos e interesses suscita discussões sobre como os administradores devem exercer as suas atribuições de modo a servir à companhia. Tal reflexão é ainda mais pertinente nos casos em que os interesses externos à companhia entram em rota de colisão com o interesse primordial dos acionistas. A existência desta multiplicidade de interesses demanda esforço de avaliação e compatibilização por parte dos administradores.
A posição teórica prevalecente é a shareholder primacy (primazia do acionista), que estabelece que os deveres fiduciários dos diretores e conselheiros são devidos essencialmente à companhia e aos seus acionistas.
A missão central da administração é identificada com a maximização dos interesses dos seus acionistas (com a presunção de que atuando desta forma estes também estarão indiretamente maximizando o bem-estar de stakeholders em geral).
Não se quer com isso afirmar que a administração deve ser indiferente às externalidades da atividade empresária ou desconsiderar as repercussões que decisões de gestão têm sobre os direitos e interesses de stakeholders da companhia. Todavia, com esta abordagem técnica, o que se pretende é reconhecer que metodologicamente a fidúcia dos administradores é devida em relação à companhia e aos acionistas, pois são estes os titulares do patrimônio social que foi confiado à gestão pelos administradores.
A companhia lida com uma multiplicidade de interesses, que envolvem mais do que apenas o interesse privado dos sócios na obtenção do lucro. Na dinâmica moderna do direito societário, não é possível ignorar a existência de polos de interesses externos à estrutura empresarial, que também precisam ser considerados.
A própria lei societária imprime uma dinâmica de conciliação de interesses nas sociedades anônimas ao prescrever que o acionista controlador deve usar o poder com o fim de fazer a companhia realizar o seu objeto e cumprir sua função social. Reconhece-se a existência de deveres e responsabilidades para com a pluralidade dos acionistas, seus trabalhadores e a comunidade em que atua.
Contudo, nortear o sistema de deveres e responsabilidades dos administradores em torno da maximização dos interesses dos acionistas é a medida legislativa e regulatória mais adequada a promover o bem-estar social. A utilização do direito societário para encampar e tutelar os interesses de partes externas à estrutura empresarial deve sempre ser harmonizada e compatibilizada com o objetivo de maximizar o valor da própria sociedade perante seus acionistas e investidores.
Em regra, os deveres fiduciários dos administradores são devidos exclusivamente à companhia e aos seus acionistas (não havendo de se falar em extensão da relação de fidúcia perante stakeholders). As atribuições dos administradores são exercidas de modo a lograr os fins e no interesse da companhia. O atendimento de outros interesses é mediato, desde que compatíveis com o interesse social.
Responsabilização de Administradores por violação de Deveres Fiduciários
A inobservância dos deveres fiduciários pode ensejar a responsabilização dos administradores em diferentes esferas. Não existe uma cartilha capaz de antecipar as condutas concretas que devem ser adotadas pelo administrador diligente. De forma geral, espera-se que o administrador empregue, no exercício de suas funções, o cuidado e diligência que todo homem ativo e probo costuma empregar na administração dos seus próprios negócios. Eventual desvio dos padrões de comportamento esperado deve ser avaliado casuisticamente, utilizando-se os parâmetros fornecidos por autoridades julgadoras em suas respectivas matérias de competência.
O mero insucesso da atividade empresarial e a ocorrência de falhas pontuais não implicam, necessariamente, em violação do dever fiduciário atribuível aos seus administradores. O risco é intrínseco à atividade empresarial. O insucesso é um dos resultados possíveis do empreendimento, que pode vir a ocorrer até mesmo nos casos em que houve atuação diligente e prudente de seus administradores.
Em princípio, o administrador não é responsável por atos ilícitos de outros administradores, salvo nas hipóteses de conivência, negligência e omissão. Caso tome conhecimento da existência de ilícitos, o administrador leal não pode se omitir em impedir a sua prática, intervindo em defesa dos interesses da companhia.
Exime-se de responsabilidade o administrador dissidente que faça consignar sua divergência em ata de reunião do órgão de administração ou, não sendo possível, dela dê ciência imediata e por escrito ao órgão da administração, no Conselho Fiscal, se em funcionamento, ou à Assembleia Geral.
É amplamente consolidado o entendimento segundo o qual a função de administrador encerra uma obrigação de meio (e não de resultado). Os administradores obrigam-se a envidar esforços razoáveis e adequados para buscar atender o interesse social, não se comprometendo necessariamente com o sucesso da companhia.
Legitimidade
De um lado, a própria companhia, mediante prévia deliberação da Assembleia Geral, é legitimada originária para propor a ação social de responsabilidade civil contra o administrador, pelos prejuízos causados ao seu patrimônio (art. 159). O acionista também pode figurar como legitimado extraordinário para propor a ação social contra os administradores, visando à reparação dos prejuízos suportados pela companhia em decorrência da conduta ilícita.
De outro lado, a lei societária também prevê a ação individual de responsabilidade civil contra administradores de companhia, por acionista ou terceiro diretamente prejudicado por ato de administrador (art. 159, §7º). O critério distintivo entre a ação social e a individual é a titularidade do patrimônio diretamente atingido pela atuação ilícita dos administradores.
A ação social é o instrumento processual adequado para reparar danos diretamente experimentados pela companhia, visando a recompor o patrimônio social. Neste caso, a titularidade compete primariamente à companhia, ainda que possa ser proposta pelos acionistas, no interesse da companhia.
A ação individual será cabível quando tratar-se de dano sobre o patrimônio do acionista, ou de terceiro, com relação causal com a atuação desviante dos administradores. As ações de responsabilidade civil de administradores têm índole reparatória, em que o titular pleiteia a recomposição de seu patrimônio (social ou individual) ante o prejuízo causado pela atuação da administração.
A legitimidade é uma condição da ação (requisito para o processo possa prosseguir para o seu fim normal, com o julgamento do mérito da pretensão do autor). Trata-se, portanto, de juízo anterior à análise do mérito da ação, a serem verificadas com base nas asserções do demandante. A legitimidade deve ser examinada como qualquer outra “condição da ação”, com base nas alegações feitas pelo demandante na petição inicial.
A autoridade julgadora deverá avaliar, preliminarmente, a pertinência subjetiva das partes em relação à controvérsia tratada na ação. O juízo de legitimidade ativa e passiva pressupõe uma análise acerca da aptidão de determinada pessoa, natural ou jurídica, para figurar no polo ativo ou passivo da relação processual, respectivamente.
Os deveres fiduciários dos administradores são devidos exclusivamente à companhia e aos seus acionistas. Não há de se falar, em regra, em violação de deveres fiduciários perante stakeholders. Não se ignora que a LSA orienta a atuação da administração ao atendimento de certos objetivos de interesse da coletividade e da comunidade em que a companhia atua. O caput do art. 154 prescreve que o exercício das atribuições dos administradores deve buscar a satisfação das exigências do bem público e da função social da empresa. Em acréscimo, o Conselho de Administração ou a Diretoria podem autorizar a prática de atos gratuitos razoáveis em benefício dos empregados ou da comunidade de que participe a empresa, tendo em vista suas responsabilidades sociais (art. 154, §4º). Contudo, tais previsões legais não têm o condão de constituir uma relação fiduciária entre a administração e pessoas ou instituições externas à companhia.
O que se conclui é que a companhia é a parte legítima primária para ingressar com ação diante de uma violação de deveres fiduciários, agindo em interesse próprio. Os acionistas da companhia são legitimados extraordinários para propor a ação social, em defesa dos interesses da companhia. Terceiros externos à companhia não podem propor ação por violação dos deveres fiduciários dos administradores, limitando-se à possibilidade de ingressar com ação individual buscando a reparação de prejuízos experimentados em sua esfera patrimonial individual, com base no art. 159, §7º, da LSA.
No âmbito administrativo, a sanção possui fundamento no descumprimento de normas administrativas a que se sujeitam os administradores, que não se confunde com o fundamento da ação de responsabilidade civil (dano). Assim sendo, um processo administrativo sancionador instaurado perante a CVM não se presta a atender qualquer pretensão de reparação de prejuízos, seja por parte da companhia, seja por parte de acionista lesado. A sanção administrativa é identificada com outros objetivos, tais como a dissuasão e a punição de práticas ilícitas e o estímulo à conformidade às regras aplicáveis.
Com certa frequência, a CVM julga processos administrativos sancionadores envolvendo a responsabilização de administradores por violações de seus deveres fiduciários. Um dos debates centrais envolve a legitimidade passiva dos administradores para responder por violações a seus deveres fiduciários na condução dos negócios sociais.
A responsabilidade em sede de processo administrativo sancionador é pessoal e subjetiva. Impõe-se um ônus de individualização de condutas por parte da acusação, refletindo os diferentes papeis e atribuições na estrutura administrativa. A individualização das condutas é um requisito para o processo administrativo sancionador ser considerado válido, sem o qual a peça acusatória torna-se inepta.
A área técnica da CVM responsável pela peça acusatória deve indicar precisamente os elementos conclusivos de autoria e materialidade, reunindo elementos probatórios que estabeleçam uma conexão direta entre os acusados e as acusações a eles imputadas.
Conforme consta do art. 6º da Resolução CVM nº 45/2021, a análise de autoria das infrações apuradas é requisito essencial do termo de acusação. Tal análise deve contemplar a individualização da conduta dos acusados, fazendo-se remissão expressa às provas que demonstrem sua participação nas infrações apuradas.
A análise da legitimidade passiva no processo sancionador também deve considerar a posição ocupada pelo agente na estrutura administrativa e a compatibilidade entre os fatos narrados na peça acusatória e o escopo de atuação do administrador em questão. Na maior parte dos casos, é importante que exista contemporaneidade entre os fatos narrados na peça de acusação e o mandato dos administradores.
Culpabilidade
Os administradores não devem ser automaticamente responsabilizados por todas as falhas e prejuízos decorrentes da condução dos negócios da companhia. A avaliação da responsabilidade exige um juízo subjetivo da medida de diligência exigida naquelas circunstâncias e das atribuições específicas de cada integrante da administração.
De acordo com o art. 158 da LSA, o administrador poderá responder, civilmente, pelos prejuízos que causar, quando proceder: (i) dentro de suas atribuições ou poderes, com culpa ou dolo; (ii)com violação da lei ou do estatuto social.
A imputabilidade de administrador nas ações de responsabilidade civil depende da existência de um liame entre a falha da administração (causa) e o dano suportado pela companhia (resultado). Em suma, a responsabilidade civil subjetiva prevista no art. 158 da LSA tem como pressupostos (a) o dano, (b) a conduta culposa e (c) o nexo de causalidade entre o dano e a culpa.
Em inúmeros ilícitos administrativos, deve haver também a demonstração da culpa lato sensu para justificar a aplicação de sanção. O direito administrativo sancionador incorpora princípios e garantias processuais. Consagra o princípio da responsabilidade subjetiva e individual, rejeitando-se uma noção de responsabilidade objetiva e solidária em matéria de infração administrativa. A aplicação das penalidades administrativas somente será cabível caso venha a ser demonstrada a infração da norma e a culpabilidade do agente.
A potencial responsabilização por violação de deveres fiduciários deve sempre considerar a atuação concreta e os limites de suas atribuições e responsabilidades dos administradores, tendo em vista as atribuições legais e estatutárias aplicáveis ao administrador em específico e de forma subjetiva.
A avaliação do julgador deve ter em conta as circunstâncias e o processo decisório (iter decisional), analisando aspectos prévios, contemporâneos e/ou posteriores em relação à atuação do administrador e/ou à decisão tomada, a fim de verificar se o administrador agiu de acordo com o padrão de diligência esperado.
A aplicação dos deveres fiduciários dos administradores deve ser pautada pela razoabilidade e proporcionalidade, devendo considerar fatores como: (i) o tipo de atividade exercida pela companhia, bem como a sua dimensão e importância; (ii) os recursos disponíveis; (iii) o momento e as circunstâncias presentes e consideradas no âmbito de determinada decisão; e (iv) todas as demais particularidades, inclusive as qualidades do administrador que serviram de base para sua nomeação.
O administrador pode buscar desconstituir os pressupostos de responsabilização com a apresentação de elementos probatórios suficientes para infirmar a tese acusatória. Por exemplo, pode-se demonstrar que a falha imputada deriva de um erro de tipo ou de proibição, hipótese em que a culpabilidade estará afastada. De igual forma, pode-se comprovar que a ilicitude não era de conhecimento da administração como um todo (e nem deveria ser) ou, ao menos, que não havia ciência ampla em todos os níveis da estrutura administrativa.
O administrador sempre poderá afastar a culpabilidade ao demonstrar que envidou os esforços necessários e razoavelmente compatíveis com as suas atribuições e que as falhas identificadas ocorreram a despeito de sua atuação diligente. Em certas circunstâncias, a adoção de um processo decisório informado e adequado poderá imunizar as decisões negociais do administrador de eventual responsabilização. Para tal propósito, é fundamental que o administrador mantenha a documentação adequada de seus atos e processos decisórios (paper trail), bem como faça consignar eventuais divergências.
Por fim, vale tecer alguns comentários acerca da dimensão institucional dos deveres fiduciários. As diretorias podem implementar estruturas de governança para o desempenho das suas funções executivas, principalmente nos casos a área é encarregada de tarefas e atribuições complexas e abrangentes. A criação de comitês de assessoramento, a delegação de atribuições a um corpo técnico especializado e a contratação de avaliações independentes configuram boas práticas de governança corporativa.
No entanto, a existência de tais estruturas não exime o administrador responsável de seu dever de fiscalizar e/ou monitorar aqueles que, na prática, os realizam, a fim de que eles atuem com a diligência e a lealdade esperadas. É dizer, a delegação de atribuições a assessores não isenta o delegante de suas responsabilidades legais e estatutárias.
Conclusão
O sistema de deveres e responsabilidades imposto aos administradores equilibra os incentivos para que os administradores exerçam suas atribuições no interesse da companhia. A relação fiduciária entre administradores e companhia consubstancia uma série de prestações, ativas ou omissivas, na condução dos negócios da companhia.
A responsabilização, seja na esfera cível ou administrativa, por desvios do padrão de comportamento esperado de um fiduciário deve observar pressupostos materiais e processuais. De maneira geral, os administradores não devem ser automaticamente responsabilizados por todas as falhas e prejuízos decorrentes da condução dos negócios de uma companhia. A responsabilidade deve ser avaliada a partir de juízo subjetivo da medida de diligência razoavelmente exigida naquelas circunstâncias e das atribuições específicas de cada integrante da administração.
A pretensão de responsabilização deve considerar a pertinência subjetiva das partes em relação à controvérsia e a medida de culpabilidade individual de cada administrador, evitando-se uma abordagem que trate a administração como um bloco. O fundamento essencial da responsabilização dos administradores por violação de seus deveres fiduciários deriva existência de um desvio do padrão de conduta, que afeta diretamente a própria companhia e suas pluralidades acionárias.
A avaliação da conduta dos administradores em observância dos seus deveres fiduciários deve ser sempre pautada pela razoabilidade e evitar um viés retrospectivo, assegurando um equilíbrio entre a necessária culpabilidade dos administradores e a segurança jurídica indispensável à gestão empresarial.
João Pedro Nascimento
é professor da FGV Direito Rio. Foi presidente da CVM - Comissão de Valores Mobiliários, entre julho/2022 e julho/2025.
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