A alocação de recursos financeiros, as decisões sobre endividamento e distribuição de lucros e os programas de remuneração por desempenho não são neutros. Quando mal calibrados, esses instrumentos podem gerar efeitos perversos que fragilizam a sustentabilidade financeira da organização e comprometem seu valor de longo prazo.
Um dos pilares da boa governança corporativa é a mitigação dos conflitos de agência, situações em que os interesses dos administradores, responsáveis pela condução da empresa, se afastam dos objetivos dos proprietários, cotistas ou acionistas. Embora amplamente reconhecido nos códigos e práticas de governança, esse princípio enfrenta desafios relevantes na sua aplicação, especialmente quando envolve a articulação entre a estrutura de capital e os mecanismos de incentivo à alta administração.
É essencial reconhecer que a forma como se estrutura o capital de uma organização e os incentivos oferecidos à sua alta administração são elementos interdependentes, que impactam diretamente o perfil de risco da companhia. Incentivos atrelados a métricas financeiras de curto prazo, como lucro por ação ou retorno ao acionista, podem estimular escolhas que comprometem a saúde financeira e a coerência estratégica da empresa. O uso de alavancagem para inflar indicadores pode elevar a exposição a riscos operacionais, de mercado e reputacionais. Cabe aos conselheiros garantir que políticas de capital e remuneração estejam alinhadas ao interesse de longo prazo, considerando não apenas retorno, mas também a resiliência e a integridade do negócio.
O caso da General Electric, no período entre 2010 e 2018, oferece uma ilustração clara de como esse desalinhamento pode ser institucionalizado dentro da própria governança da empresa. Este caso foi amplamente publicizado pelo Wall Street Journal, Financial Times e Bloomberg, corroborado por relatórios divulgados pela própria empresa, e trabalhados em estudos de caso desenvolvidos em Harvard e Yale.
A GE vinculou a remuneração variável de seus executivos a métricas como lucro por ação (EPS) e retorno total ao acionista (TSR), utilizando opções e ações restritas. Embora comuns nos mercados, essas métricas podem ser manipuladas sem geração real de valor: o EPS pode crescer com recompra de ações, mesmo com queda nos lucros, e o TSR pode refletir apenas oscilações de mercado, desvinculadas do desempenho operacional. Entre 2015 e 2017, a GE recomprou US$ 40 bilhões em ações, financiada principalmente por dívida, elevando artificialmente o EPS e acionando bônus executivos. A estratégia priorizou ganhos de curto prazo, mas comprometeu o caixa e aumentou a alavancagem sem gerar valor produtivo. Em 2018, a empresa enfrentou uma crise de liquidez, teve o rating rebaixado e precisou vender ativos. A estrutura de capital, em vez de ser gerida com prudência, foi usada para valorização momentânea, com altos custos para a companhia.
A governança da GE falhou em proteger os interesses de longo prazo da empresa e de seus acionistas. O Conselho de Administração não limitou adequadamente o endividamento e a recompra de ações, nem questionou o uso exclusivo de métricas frágeis como EPS e TSR na remuneração. Com isso, agravou-se o conflito de agência, impulsionado por incentivos distorcidos e uma estrutura de capital oportunista, legitimados pela omissão do próprio Conselho.
Noutro exemplo, a AT&T, tradicional gigante de telecomunicações dos Estados Unidos, adotou uma estratégia ambiciosa de expansão via aquisições, incluindo a compra da DirecTV (US$ 49 bilhões, 2015) e da Time Warner (US$ 85 bilhões, 2018). Essas aquisições foram fortemente financiadas por dívida, elevando significativamente o nível de alavancagem da empresa. Ao mesmo tempo, a companhia manteve pagamentos robustos de dividendos e recompra de ações, tentando sinalizar confiança ao mercado e preservar seu status como uma “ação defensiva de alto dividendo”. A combinação de aquisições alavancadas com compromisso contínuo de retorno ao acionista gerou pressões crescentes sobre o caixa e a flexibilidade financeira da empresa.
Durante o período, a remuneração dos executivos da AT&T foi baseada em métricas como lucro ajustado por ação, EBITDA e fluxo de caixa livre, favorecendo decisões de curto prazo. Analistas e investidores criticaram o modelo por incentivar crescimento imediato, sem foco na integração das aquisições ou na adaptação ao mercado digital. Com a queda no valor de mercado e dúvidas sobre sua sustentabilidade, a AT&T desfez parte das aquisições em 2021, separando os ativos da Time Warner e adotando uma estratégia mais conservadora, voltada à redução da dívida e ao enxugamento do portfólio.
Os casos analisados revelam como o conflito de agência pode ser agravado quando a estrutura de capital é utilizada de forma oportunista e os sistemas de incentivos privilegiam o desempenho financeiro de curto prazo, em detrimento da sustentabilidade estratégica. Mesmo na ausência de escândalos ou crises evidentes, o desalinhamento entre decisões financeiras, remuneração executiva e geração de valor duradouro pode comprometer seriamente a saúde organizacional. Nessas situações, o Conselho de Administração, ao se omitir diante de estratégias de alavancagem excessiva ou metas distorcidas de desempenho, deixa de cumprir seu papel fiduciário e se converte em coautor das fragilidades que pretende evitar.
A responsabilidade dos conselheiros exige mais do que a aprovação pontual de decisões financeiras ou pacotes de remuneração. Implica compreender as interdependências entre estrutura de capital, incentivos e estratégia, assegurando que os mecanismos de governança reflitam prudência, coerência e visão de longo prazo. Métricas como retorno sobre o capital investido, geração de caixa sustentável e resiliência operacional devem ser incorporadas aos critérios de avaliação executiva, evitando que a busca por valorização imediata comprometa a perenidade do negócio.
Estes exemplos demonstram que a boa governança corporativa exige mais do que controles formais: requer a aplicação efetiva de seus princípios fundamentais. A integridade e a responsabilidade demandam que a estrutura de capital seja utilizada com prudência, como instrumento de criação de valor sustentável, e não de manipulação de resultados momentâneos. A transparência impõe que metas e métricas de desempenho reflitam de fato a realidade do negócio, evitando distorções que fragilizem a confiança dos stakeholders. A equidade obriga a equilibrar os interesses de gestores e acionistas, garantindo que decisões de remuneração executiva não privilegiem ganhos pessoais de curto prazo em detrimento da perenidade da organização.
Por fim, a sustentabilidade reforça que cada escolha financeira deve considerar não apenas o retorno imediato, mas também a resiliência estratégica e a integridade do negócio ao longo do tempo. Assim, o papel do Conselho é assegurar que capital e incentivos estejam alinhados a esses princípios, mitigando conflitos de agência e preservando a legitimidade da governança.
Alexandre Oliveira, PhD, CCA, CCoAud
é Vice-coordenador da Comissão de Finanças, Fiscalização e Controles do IBGC, onde é professor do curso de formação de conselheiros. Presidente dos Conselhos Consultivos da Cebralog Educação e da Equosorriso Terapia. Conselheiro de Administração do Fundo Patrimonial Patronos. Pós-doutor em Strategic Thinking e doutor no uso de Inteligência Artificial nas Decisões Corporativas. Pós-graduado em Negócios Digitais, em Finanças e em Direito Digital. Engenheiro, mestre em Supply Chain e Especialista em Conformidade Regulatória.
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