A Geopolítica deixou de ser conversa de especialistas e passou a moldar resultados. Das conversas informais ao boardroom, o tema virou ativo e risco corporativo. Em uma noite qualquer, num bar de esquina, o papo entre amigos mistura cerveja, futebol e... política internacional.
Um comenta que “Trump surtou de novo e vai taxar o aço brasileiro”. Outro pergunta se o Brasil deveria mesmo estar nos BRICS+. No fundo, alguém solta: “A China vai engolir Taiwan, é só questão de tempo.” Entre um meme e outro, o grupo debate com surpreendente intensidade assuntos que, até pouco tempo, pareciam restritos aos gabinetes do Itamaraty.
Essa familiaridade crescente com temas geopolíticos não é apenas sintoma da hiperconectividade, é reflexo de um mundo onde decisões tomadas a milhares de quilômetros impactam diretamente a vida das pessoas, as decisões de negócios e, claro, o desempenho das empresas no mercado de capitais.
A boa notícia? As lideranças corporativas já estão percebendo isso. A geopolítica deixou de ser uma variável periférica nos modelos de risco e passou a ocupar espaço relevante nas discussões de gestão e governança, especialmente entre empresas expostas a mercados internacionais, cadeias globais de suprimento ou capital estrangeiro.
Tarifas, sanções, instabilidade democrática, mudanças climáticas com dimensão diplomática, guerra cibernética, reconfiguração de blocos econômicos… tudo isso está na mesa. E precisa estar.
O momento exige empresas com musculatura geoestratégica, capazes de ler o cenário global, antecipar riscos, adaptar modelos de negócio e, quando necessário, se posicionar. A gestão estratégica e os conselhos vêm assumindo esse protagonismo com maturidade crescente, mas o desafio continua: separar ruído de sinal, e transformar contexto em vantagem competitiva.
Porque se até o grupo do WhatsApp da família discute o futuro global, não há mais espaço para empresas que tratem geopolítica como nota de rodapé. O assunto não só chegou ao board, como se tornou pauta central.
O Mundo Desabando em Tempo Real
Se antes o cenário geopolítico era tratado como pano de fundo, hoje ele é o próprio palco. A velocidade com que decisões políticas, conflitos territoriais, eventos climáticos extremos e rupturas diplomáticas se desdobram e reverberam tornou a geopolítica um fator de impacto imediato e concreto nas decisões de negócios.
Não faltam exemplos recentes. A guerra prolongada na Ucrânia reconfigurou mercados de energia e fertilizantes. A tensão crescente entre China e EUA, acirrada por restrições a semicondutores e tecnologias de IA, acende alertas em empresas com cadeias de suprimento globalizadas. Os ataques a navios no Mar Vermelho elevaram custos logísticos de forma abrupta e pressionaram margens em setores exportadores. E mais recentemente, o novo tarifaço de Donald Trump, anunciado em pleno ano eleitoral, impôs barreiras adicionais a produtos brasileiros, trazendo impactos diretos a empresas listadas no Brasil e no exterior.
Esses movimentos deixaram de ser riscos teóricos e se tornaram eventos concretos, com reflexos em valuation, acesso a financiamento, percepção de risco-país e até reputação corporativa.
Na prática, estamos diante de um sistema interdependente, polarizado e volátil, onde variáveis políticas e diplomáticas se misturam às ambientais, sociais, tecnológicas e econômicas. Um conflito regional, uma fala polêmica de um candidato ou uma decisão de corte internacional pode alterar o rumo de setores inteiros, e isso exige capacidade de leitura, resposta rápida e visão integrada por parte das empresas.
Não se trata mais de “acompanhar os fatos”. Trata-se de incluir a geopolítica na equação estratégica, no radar de riscos, no discurso com investidores e, sim, na governança.
Neutralidade Não É Mais uma Opção Confortável
Durante muito tempo, empresas buscavam se blindar de temas sensíveis por meio de uma suposta neutralidade estratégica. O argumento era conhecido: "não nos envolvemos em política", "somos apartidários", "nossos riscos são operacionais e financeiros". Mas o mundo mudou, e esse tipo de neutralidade, hoje, deixou de ser um refúgio confortável para se tornar um fator de exposição.
Tomemos como exemplo o recente tarifaço anunciado por Donald Trump, em pleno ano eleitoral, com alvos diretos: China, União Europeia, México e também o Brasil. O impacto em múltiplos setores foi imediato, com revisão de contratos, volatilidade nos ativos e expectativa de retaliações. O gesto foi político, sim, mas o efeito foi profundamente corporativo.
E o cenário interno tampouco oferece estabilidade. No Brasil, a escalada de narrativas contra instituições democráticas, os ataques constantes ao Supremo Tribunal Federal e as tentativas de reconfigurar o equilíbrio entre os poderes afetam diretamente a percepção de risco institucional e, consequentemente, o apetite de investidores nacionais e estrangeiros. Empresas que atuam em setores regulados, que dependem de financiamento externo ou que operam sob marcos jurídicos sensíveis, sentem isso na pele.
Nesses contextos, não se posicionar é, na prática, se posicionar, e as lideranças empresariais já entenderam esse dilema. Em vez de discursos genéricos sobre “ambiente desafiador”, muitas organizações estão adotando posturas claras diante de ameaças à ordem institucional, defendendo o Estado de Direito como premissa para segurança jurídica e estabilidade econômica. Trata-se menos de ativismo político, e mais de governança estratégica com visão sistêmica.
O mesmo vale para crises internacionais. Empresas globais que se calaram diante de conflitos como Gaza, Ucrânia ou mesmo diante de sanções ambientais perderam reputação, valor de marca e acesso a capital. O investidor contemporâneo, especialmente os institucionais, não tolera mais omissão disfarçada de prudência.
Se há algo que a geopolítica recente ensinou à gestão e aos conselhos das empresas do mercado de capitais, é que a exposição é inevitável. A única escolha real está entre ser espectador dos efeitos ou protagonista na resposta.
ESG, Soberania e Reputação: Tudo Está Conectado
Falar de geopolítica no mundo corporativo hoje é, inevitavelmente, falar de ESG. As agendas estão entrelaçadas. Questões como mudanças climáticas, justiça social, respeito aos direitos humanos e à soberania institucional deixaram de ser campos distintos e passaram a compor o mesmo cenário de risco e de posicionamento estratégico.
Empresas que defendem práticas ambientais e sociais, mas se omitem diante de ataques à democracia ou à soberania institucional, correm o risco de serem acusadas de incoerência. É o que chamamos, cada vez mais, de governance washing: uma retórica impecável nos relatórios, mas uma postura evasiva diante de ameaças concretas ao Estado de Direito. O investidor atento já percebe o descompasso entre o discurso ESG e o comportamento real quando a tensão política se intensifica.
A defesa da soberania democrática e da institucionalidade jurídica é mais do que uma questão cívica, é um pilar para o funcionamento saudável do mercado de capitais. Não há ESG possível onde não há segurança jurídica, previsibilidade regulatória e estabilidade institucional. Em outras palavras, não há “G” sem República funcionando.
Esse vínculo também se manifesta na forma como empresas são percebidas globalmente. Em um ambiente no qual fundos internacionais filtram suas carteiras com base em critérios éticos, geopolíticos e reputacionais, a postura das organizações diante de contextos sensíveis se torna uma variável crítica de confiança. É o que vimos em casos como o da guerra na Ucrânia, onde marcas que permaneceram em silêncio ou mantiveram operações em zonas de conflito foram penalizadas publicamente e retiradas de índices de sustentabilidade.
Cada vez mais, o mercado valoriza a coerência institucional. Isso significa que a governança deve abranger, sim, uma leitura clara do papel das empresas no contexto nacional e internacional. Defender o Estado de Direito, respeitar a soberania e adotar posturas éticas diante de crises deixou de ser uma escolha ideológica e passou a ser parte da estratégia de sustentabilidade e sobrevivência.
O Conselho Precisa Deixar de Ser Ingênuo
Governança corporativa não é apenas o cumprimento de rituais, regras e comitês. É, antes de tudo, uma forma de traduzir complexidade em direção, e incerteza em estratégia. Nesse sentido, lidar com a geopolítica não é um capricho analítico, mas uma necessidade estrutural da boa governança contemporânea.
Não se trata de tornar conselheiros especialistas em política internacional. Trata-se de reconhecer que decisões de Estado, eventos climáticos extremos, redesenho de blocos comerciais e disputas de soberania afetam diretamente o ambiente de negócios — e, por consequência, a forma como empresas devem ser governadas.
A resposta que vem ganhando força no mercado é clara: repertório e antecipação. Conselhos mais preparados são aqueles que integram análise geopolítica aos seus mapas de risco, convidam especialistas para discutir cenários, fazem simulações de crise institucional e avaliam riscos reputacionais transnacionais com o mesmo rigor que analisam balanços financeiros. São aqueles que entendem que segurança cibernética é risco político. Que sabem que não se posicionar diante de ataques à democracia tem impacto no valuation. Que consideram as eleições americanas ou as decisões da ONU em seus comitês estratégicos.
Também são conselhos que reconhecem que as empresas brasileiras, especialmente aquelas listadas e expostas ao mercado global, estão sob crescente escrutínio. Fundos internacionais, agências de rating e organismos multilaterais passaram a incorporar variáveis geopolíticas e institucionais em suas análises de risco, o que eleva o nível de exigência sobre a clareza estratégica das empresas e a consistência de suas decisões.
O ponto central é que o mundo exige conselhos e C-Levels com visão de mundo. O tempo da neutralidade operacional está ficando para trás. A empresa que pretende competir globalmente precisa pensar geopoliticamente. Ser apartidário não é ser apático. Ser técnico não é ser cego. E ser estratégico, hoje, é também saber navegar em mares que não estão, e talvez nunca mais estarão, calmos.
O Brasil no Tabuleiro: COP30, BRICS+ e o Dilema da Omissão
O Brasil volta ao centro do mapa geopolítico internacional, desta vez com holofotes voltados para temas de impacto global: clima, governança multipolar e o futuro da economia verde. A realização da COP30 em Belém, em pleno coração da Amazônia, carrega peso simbólico, diplomático e reputacional, e projeta o país como possível protagonista de uma nova narrativa climática.
Mas o contraste entre o discurso e a infraestrutura é gritante. A escolha de uma cidade historicamente negligenciada pelo poder público escancarou, para o mundo, não apenas a importância da Amazônia, mas também a precariedade estrutural de uma das regiões mais estratégicas do planeta. Belém, hoje, não possui infraestrutura básica para receber um evento dessa magnitude: aeroportos limitados, rede hoteleira insuficiente, saneamento deficiente, mobilidade urbana comprometida e conectividade instável.
A COP30, nesse cenário, deixa de ser apenas um encontro climático e assume contornos de teste de estresse institucional. É também uma vitrine, não só da biodiversidade, mas das nossas contradições enquanto nação. E para o mercado de capitais, isso é tudo, menos irrelevante.
Empresas brasileiras, sobretudo aquelas expostas a investidores internacionais, serão observadas de perto. Sua presença, posicionamento, nível de compromisso e capacidade de articular propostas concretas serão lidos como sinal de maturidade estratégica e alinhamento à nova governança global. A omissão, por outro lado, será percebida como fragilidade, ou, pior, como indiferença.
Paralelamente, o fortalecimento do bloco BRICS+, a discussão sobre uma moeda alternativa ao dólar e os novos acordos comerciais com a União Europeia colocam o Brasil diante de um novo xadrez diplomático. As implicações são diretas: riscos cambiais, ajustes regulatórios, exposição a normas extraterritoriais e novas exigências de compliance geopolítico. Empresas que operam internacionalmente precisam repensar sua inserção global com mais sofisticação e menos reatividade.
O fato é que a geopolítica passou a testar não só a narrativa, mas a capacidade de entrega do Brasil, em infraestrutura, em diplomacia e em coerência. E o setor empresarial não pode se esconder atrás de neutralidade ou desconhecimento.
O mercado já entendeu que o futuro não será decidido apenas em salas de reunião, mas também em cúpulas climáticas, fóruns multilaterais e arenas geoeconômicas. A única pergunta que resta é: as empresas brasileiras estarão à altura do palco em que o país está sendo colocado?
Conclusão – Uma Nova Consciência Estratégica
A geopolítica já não é uma abstração distante. Ela está no algoritmo que influencia os investidores, na volatilidade dos insumos, nas câmaras legislativas, nas falas dos candidatos, nos tratados climáticos, nas sanções comerciais, nos tweets que derrubam bolsas e nos julgamentos que desafiam a institucionalidade. Está também, cada vez mais, na cabeça dos executivos, nos relatórios dos fundos, nos questionamentos dos acionistas e nos critérios dos investidores ESG.
Não se trata de modismo, nem de tendência passageira. O que está em curso é uma reconfiguração profunda da forma como o mundo opera e, portanto, de como as empresas precisam pensar e agir. A velha separação entre o que é “externo” e o que é “estratégico” se dissolveu. O que acontece no Mar Vermelho, em Washington, em Pequim ou em Brasília já não pede licença para impactar a operação, o valuation, a reputação e a governança das companhias.
As lideranças corporativas mais preparadas já incorporaram esse novo olhar. Entenderam que posicionamento não é militância, que visão de mundo é parte da inteligência estratégica e que governar com maturidade institucional é também proteger o interesse dos acionistas no longo prazo.
Porque, no fim das contas, geopolítica deixou de ser um capítulo distante dos relatórios de risco. Ela está na mesa. Não só na do bar mas, felizmente, também na dos conselhos, nos comitês executivos e nas decisões de quem entendeu que navegar no mundo atual exige muito mais que bússola e mapa: exige lucidez, coragem e contexto.
E se até o grupo do WhatsApp da família discute Trump, STF e BRICS+, talvez o mercado de capitais brasileiro esteja mais preparado do que muitos imaginavam. Agora é hora de transformar esse debate em estratégia. E essa estratégia em protagonismo.
Marcelo Murilo
é Co-Fundador e VP de Inovação e Tecnologia do Grupo Benner, Palestrante, Mentor, Conselheiro, Embaixador e membro do Senior Advisory Board do Instituto Capitalismo Consciente Brasil, Embaixador e Membro da Comissão ESG da Board Academy BR e Especialista do Gerson Lehrman Group e da Coleman Research – Fala sobre Inovação, Governança e ESG.
marcelo.murilo@benner.com.br