Nos últimos cinco anos, fomos profundamente impactados pelo tsunami ESG – movimento que foi acelerado e legitimamente fortalecido durante a pandemia. Hoje, na minha avaliação, esse impulso vem perdendo força devido ao cenário geopolítico, mas seu legado permanece indelével, transformando de maneira definitiva as estruturas de governança corporativa em todo o mundo.
O termo ESG surgiu no meio do Mercado de Capitais nos anos 2000, quando a Bolsa de Londres lançou a carteira FTSE4GOOD, que avalia as maiores empresas da bolsa inglesa sob olhar do rating ESG. O termo ganhou força em 2004, como parte de uma iniciativa do Pacto Global da ONU, por meio do relatório chamado "Who Cares Wins" (“Ganha quem se importa”), resultado de uma provocação feita por Kofi Annan, então secretário-geral da ONU, a 50 CEOs de grandes instituições financeiras. Ele os convidou a refletir sobre como integrar critérios Ambientais, Sociais e de Governança ao Mercado de Capitais. Esse documento foi reforçado em 2008 com os 8 Objetivos do Milênio e redesenhado em 2015 com os 17 Objetivos do Desenvolvimento Sustentável.
Em dezembro de 2019, ganhou evidência corporativa quando um dos maiores fundos de investidores institucionais do planeta, BlackRock, por meio de seu fundador e CEO, Larry Fink, lançou a sua primeira carta de CEO para CEO, indicando a priorização de investimentos em empresas e projetos aderentes à agenda ESG. Nesta orientação, ficou clara a atenção fortemente voltada para a transição verde planetária e DEI: Diversidade, Equidade e Inclusão.
Em março de 2020, avançou a pandemia de Covid-19, provocando não só uma crise sanitária global, mas também reconfigurando o cenário geopolítico mundial. Essa crise sanitária enfraqueceu economias e sistemas políticos, criando um ambiente propício para ações agressivas. Embora o conflito Rússia x Ucrânia tenha estourado em 2022, suas raízes e impactos foram intensificados pela pandemia.
A Covid-19 desorganizou cadeias de suprimento globais, afetando a produção e distribuição de alimentos e combustíveis. Ao mesmo tempo, criou uma ambiência que ascendeu a China, reafirmando sua posição como potência global por meio de sua abordagem assertiva e agressiva conhecida com Wolf Warrior Diplomacy, enquanto observou-se o declínio da hegemonia anglo-saxã, acelerando o desgaste da liderança global dos Estados Unidos e Reino Unido, já assolados por crises internas e polarização política.
Com o direcionamento da BlackRock na transição Verde e DEI, aliado à violência da pandemia, o E e o S da agenda ESG ficaram evidenciados, escancarando vulnerabilidades Sociais, Ambientais e de Governança que já existiam, mas que se tornaram impossíveis de ignorar a partir daquele momento. A resposta dos governos, das bolsas de valores, dos órgãos de controle internacionais e do mundo corporativo foi rápida.
Essa convergência de forças multilaterais desencadeou uma enxurrada de novos requisitos e diretrizes que impactaram o mundo dos negócios. De forma contundente, as empresas tiveram sua resiliência testada durante a crise, revelando não apenas seu poder institucional, mas também confrontando-as com suas responsabilidades nos territórios onde atuam. A sociedade civil global, em postura claramente ativista, passou a cobrar e julgar com rigor sem precedentes o desempenho corporativo nesses aspectos.
Nesse contexto, a agenda ESG ganhou relevância como instrumento de influência e cooperação, quando mudanças climáticas afetaram recursos naturais, migrações e segurança alimentar no meio de disputas entre países por acesso a água, terras férteis e tecnologias verdes.
A partir de 2023, a agenda ESG deixou de ser o centro das atenções, sendo sobreposta pelas questões geopolíticas, mas deixou o seu legado. Como qualquer legado, seu impacto será duradouro. É indiscutível a profunda transformação cultural e estratégica que a agenda ESG provocou quando as questões representadas pelas três letrinhas “ESG” deixaram de ser periféricas e passaram a integrar o núcleo da estratégia empresarial. A agenda ESG também provocou uma mudança de paradigma corporativo, quando as empresas ampliaram o foco para além do lucro, a fim de entender e assumir sua responsabilidade com stakeholders e agente de sustentabilidade; por último, a agenda ESG funcionou como um grito ético da sociedade civil, clamando por reputação corporativa. Provocou e conseguiu a regulação ESG quando os países adotaram legislações próprias sobre dados, carbono e transparência, criando desafios de compliance global. Esse legado é irreversível!
Metaforicamente, podemos entender a Agenda ESG como um meteoro.
A geopolítica atual está marcada por uma série de polaridades que moldam o cenário internacional e impactam diretamente governos, empresas e sociedades. Essas polaridades refletem disputas de poder, valores e modelos de desenvolvimento. Chamamos a atenção para:
1. Ocidente vs Oriente: Estados Unidos e União Europeia enfrentam crescente competição com China e Rússia, especialmente em áreas como tecnologia, segurança e influência global.
2. Globalismo vs Nacionalismo: países e líderes estão divididos entre fortalecer instituições multilaterais, como ONU e OMC, ou adotar políticas mais fechadas e protecionistas.
3. Regulação vs Supremacia em Tecnologia e IA: a disputa entre EUA e China pela supremacia tecnológica é central neste embate, e a corrida pela liderança em Inteligência Artificial que criou blocos geopolíticos distintos: alguns focam em inovação acelerada e outros, em regulação ética e segurança.
4. Norte Global vs Sul Global: países como Índia, Brasil, África do Sul e Turquia ganham protagonismo, desafiando a hegemonia tradicional, redefinindo alianças e dando voz a novas agendas, como justiça climática e soberania econômica.
5. Democracias vs Regimes autoritários: a polarização entre modelos políticos se intensifica, com democracias liberais enfrentando o avanço de regimes autoritários que promovem instabilidade interna à custa de liberdades civis. Essas polaridades não são apenas geográficas ou ideológicas — elas influenciam decisões econômicas, estratégias empresariais e até comportamentos sociais.
O entendimento e a correlação entre as polaridades geopolíticas e a governança corporativa passam a ser cada vez mais estratégicos. Em um mundo fragmentado e instável, os modelos de Governança e seus respectivos Conselhos de Administração precisam entender como essas tensões moldarão os riscos, oportunidades e decisões.
Estamos em um momento de transição e de redesenho geopolítico sobre os quais os modelos e as instâncias de governança estão sendo convidados a transcenderem as boas práticas e se tornarem um instrumento de sobrevivência e diferenciação competitiva. Os Conselhos estão sendo convidados também a atuar como radares avançados, antecipando ameaças, identificando oportunidades em meio à volatilidade, garantindo a resiliência e protegendo a reputação organizacional.
Faz-se necessário desenvolver competências específicas na direção de:
No início do século XXI, a Governança Corporativa funcionava como um farol que iluminava o caminho corporativo, sinalizando perigos e oferecendo um ponto de referência claro. Nos processos de governança, o farol representava as normas, as boas práticas e diretrizes consolidadas.
A partir de 2020, a Governança Corporativa funcionou como uma bússola que apontava o norte a ser seguido. A bússola foi representada nos processos de governança, como os valores, propósitos e discernimentos estratégico orientando decisões empresariais em territórios desconhecidos.
Com o xadrez geopolítico atual, a governança precisa funcionar como um astrolábio estratégico. Astrolábio, instrumento ancestral de navegação e observação celeste que permitia ler as estrelas para entender tempo, posição e movimento. Não apontava caminhos, mas revelava padrões maiores, conectando o navegante ao espaço. O astrolábio não é um GPS. Ele exige leitura, interpretação e consciência. Não mostra o caminho, mas revela o céu e o espaço. Portanto, nossos Conselhos não ditam ações, mas inspiram decisões com consciência, enxergando o papel da empresa nesse mundo fragmentado.
Metaforicamente temos até aqui: o farol não se move, mas te mostra aonde não naufragar; a bússola não te diz aonde ir, mas te ajuda a não se perder; e o astrolábio não mostra o caminho, mas revela o espaço. Para a governança geopolítica atual, isso significa reconhecer o papel da empresa no mundo, inspirando decisões com consciência.
O framework final sintetiza as principais correlações entre Astrolábio x Governança e funções e principais atribuições do Conselho no xadrez geopolítico.
Framework Tríplice: Astrolábio × Governança × Conselho
FUNÇÃO DO ASTROLÁBIO | PROCESSO DE GOVERNANÇA CORPORATIVA | ATRIBUIÇÃO DO CONSELHO DE ADMINISTRAÇÃO |
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Ler os astros para entender tempo e espaço | Análise de cenários e tendências macroeconômicas e geopolíticas | Antecipar riscos e orientar a estratégia de longo prazo. |
Traduzir complexidade em coordenadas navegáveis | Gestão de riscos e compliance | Aprovar políticas e supervisionar controles internos. |
Conectar o indivíduo ao cosmos | Integração ESG e propósito organizacional | Garantir alinhamento entre estratégia, valores e impacto social. |
Orientar com base em padrões celestes | Monitoramento de desempenho e indicadores | Avaliar resultados e ajustar rotas estratégicas |
Instrumento de sabedoria, não apenas de direção | Cultura ética e transparência institucional | Ser guardião da reputação, da integridade e da perenidade da empresa. |
Adriana de Andrade Sole
é Engenheira Eletricista. Autora de livros sobre Governança Corporativa. Conselheira Fiscal da Vale S.A. e Sociedade Mineira de Engenheiros. Conselheira de Administração certificada pelo IBGC desde 2010 e da Editora Fórum. Professora convidada da FDC, PUC Minas e KPMG. Sócia fundadora da Tradecon Business empresa de consultoria. Especialista em estruturação de governança em organizações de pequeno e médio porte.
adrianasole2021@gmail.com