Opinião

COOPERAÇÃO E CONCORRÊNCIA: RESPONSABILIDADE PRIVADA EM TEMPOS DE DESAFIOS GLOBAIS

Em 2020, logo nos primeiros meses da Covid-19, quando a incerteza predominava e ninguém tinha clareza sobre o que nos aguardava, José Roberto de Castro Neves me convidou para escrever um capítulo do livro que ele então organizava: O Mundo Pós-Pandemia – Reflexões sobre uma Nova Vida. Minha tarefa era refletir sobre políticas de governo no cenário pós-pandemia.

Confesso que hesitei antes de aceitar o lisonjeiro convite. Como lançar luz sobre algo, naquele momento de isolamento? Ainda assim, escrevi o capítulo intitulado Colaboração, Resiliência e Recuperação: Políticas Públicas e Responsabilidade Privada, inspirado por reflexões pessoais ao longo de três anos como diretora do BNDES. Ali, percebi o enorme poder do banco de estimular ações sociais e ambientais, assim como boas práticas de governança corporativa, não pela filantropia, mas pela coordenação de iniciativas e pelo uso estratégico do mercado de capitais para impulsionar empresas comprometidas com boas práticas. Já naquela época, parecia evidente que nenhum setor isolado — público ou privado — teria condições de enfrentar sozinho os enormes desafios sociais e ambientais que afligem a nossa economia.

Passados alguns anos, acredito que aquelas reflexões permanecem atuais — talvez até mais urgentes. A cooperação entre empresas de um mesmo setor, muitas vezes concorrentes diretas, pode se tornar um poderoso instrumento para enfrentar alguns dos desafios globais. Essa forma de atuação dialoga diretamente com os princípios da ONU, em especial o ODS 17, que trata de parcerias e cooperação, e liga-se à ideia de que quanto maior a empresa, maior também sua responsabilidade diante da sociedade — expressão da chamada licença social para operar.

Naquele momento inicial da pandemia, discutia-se muito a metáfora dos "cisnes cinzas", em contraponto ao conceito de Nassim Taleb dos "cisnes negros": eventos previsíveis, mas negligenciados, que podem gerar crises. Hoje, com o avanço da inteligência artificial generativa, surge uma nova figura: o "cisne vermelho", conceito cunhado por Silvio Meira para expressar riscos que a tecnologia pode acelerar ou potencializar.

Os avanços tecnológicos, se por um lado ampliam a produtividade e a eficiência, por outro levantam dilemas éticos, sociais e ambientais de grande escala e significativos efeitos: uso indevido de dados, riscos de desinformação, impacto no emprego e até pressões adicionais sobre o consumo de energia. Em um contexto de restrição fiscal, reduz-se a capacidade do setor público de enfrentar esses desafios de forma efetiva. Torna-se necessária, portanto, a cooperação do setor privado para ajudar a mitigar aqueles efeitos. Daí a importância da cooperação público-privada para assegurar que o progresso tecnológico caminhe lado a lado com objetivos sociais e ambientais.
É nesse espaço, em que a concorrência convive com a colaboração, que emerge o conceito de "coopetição". Trata-se da prática pela qual empresas competem no mercado, mas colaboram em áreas de interesse social específico, em face de riscos sistêmicos — mudanças climáticas, escassez hídrica, perda de biodiversidade e crises sanitárias.

Não se trata de negar a concorrência, mas de reconhecer que certos desafios globais exigem respostas coordenadas. Empresas líderes, ao unirem forças visando objetivos sociais relevantes que por outra forma não podem ser enfrentados efetivamente, ampliam a capacidade de impacto e fortalecem a legitimidade de sua atuação perante a sociedade. Essa abordagem está alinhada ao conceito de Capitalismo Consciente, filosofia segundo a qual empresas devem ir além da busca exclusiva pelo lucro, integrando interesses de todos os stakeholders e cultivando lideranças éticas. A coopetição é um instrumento prático de afirmação do capitalismo consciente.

Exemplos concretos já apontam esse caminho: compromissos voluntários de combate ao desmatamento no setor agrícola, que estabelecem padrões comuns de rastreabilidade e reduzem riscos de reputação; pactos de redução de emissões em setores de alta intensidade de carbono, nos quais empresas competem, mas alinham metas mínimas conjuntas; e alianças pela circularidade de insumos, como coalizões em embalagens ou reciclagem, que reduzem custos e fortalecem a imagem coletiva. Empresas com boas práticas de compliance também adotam regras mais rigorosas para fornecedores, muitas vezes antecipando normas trabalhistas e ambientais — como o combate ao trabalho infantil, o respeito aos direitos sociais, os cuidados sanitários e a gestão de resíduos. Essas práticas não eliminam a concorrência, mas estabelecem um "mínimo civilizatório" comum, sem o qual todo o setor perde reputação, mercado e, em última instância, relevância.

Grandes empresas, investidores e consumidores têm poder diferenciado para induzir mudanças. Exigir rastreabilidade socioambiental, tratamento adequado de resíduos, preservação ambiental e padrões trabalhistas mais rígidos em cadeias de valor pode implicar custos adicionais, mas também redefine o patamar competitivo, forçando o mercado a se adaptar. No curto prazo, pode haver aumento de preços se comparado a produtos e serviços que não observem tais requisitos. Nos médio e longo prazos, contudo, o mercado se ajusta e eleva a barra para todos: empresas que se adaptam ganham valor, enquanto as que resistem perdem espaço.

Durante a pandemia, vimos exemplos claros de coordenação entre empresas, que atuaram para manter cadeias de suprimento funcionando, compartilharam protocolos sanitários, desenvolveram soluções conjuntas para logística ou produção de insumos críticos. Em momentos de crise, a lógica de "cada um por si" se mostra frágil, e a cooperação se revela não apenas desejável, mas essencial.

Eliane Aleixo Lustosa
é economista, atuando como Conselheira de Administração há mais de 20 anos. Foi executiva C-level em empresas públicas e privadas.
eliane.lustosa@elmoinho.com.br


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